"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

Feliz Ano Novo - III


Que no Ano Novo que se aproxima, 
possamos viver intensamente cada momento 
com muita Paz, Amor e Esperança, 
pois a vida é uma dádiva 
e cada instante é uma benção de Deus!

FELIZ ANO NOVO !
PARA VOCÊ E TODA SUA FAMÍLIA !

Com carinho fraterno,
Prof. Tony Mendes.

Feliz Ano Novo - II

Feliz Ano Novo - I

O cinema e uma nova percepção (Parte 09/09)

Paul Valéry (1871-1945)

Estética da atração

É certo que o cinema, diante das exigências do mercado em vista do consumo, acabou por produzir obras voltadas para a grande massa. E o que essa grande população consumidora do filme quer? Ação, violência, cenas chocantes, romances arrebatadores, lágrimas, susto, horror, enfim, cenas que revelem a vida com toda a sua força e dramaticidade. Esse espetáculo ou “cinema de atrações”, como denomina Tom Gunning em seu texto O Cinema das origens e o Espectador (in)Crédulo, se desenvolveu sobre esse jogo de ilusão e realidade, de medo e suspense, do impacto, que causa um prazer escópico, uma excitação no limite do terror. O cinema de atração, de show e espetáculo mantém o espectador atento “(...) enfatizando o ato da exibição. Satisfazendo essa curiosidade, ele distribui uma dose geralmente breve de prazer escópico.” (GUNNING, 1995, p. 54)

Obviamente que, com esses filmes explosivos, a experiência estética, vista do ponto de vista tradicional, de contemplação do belo, fica prejudicada. Mas não quer dizer que a arte tenha acabado por conta disso. A arte assumiu novas formas, e o cinema, vinculando as várias formas de expressão (imagem, som, palavra), gera também uma nova linguagem. Essa nova linguagem que o cinema desperta não ficou restrita somente às telas, mas trouxe repercussões também nas outras formas de expressão artísticas que, ampliaram não somente suas técnicas de elaboração, mas a diversidade de visões da realidade. O homem é um ser curioso e sempre disposto à novidade. Esse desejo de novidade se desenvolveu muito mais a partir do crescimento das cidades, do desenvolvimento das indústrias e do mercado de consumo. Sempre se está querendo algo novo para comprar e, quanto mais forte, mais impressionante, diferente, esquisito, mais chama a atenção, mais incita e desperta a curiosidade, logo, se vende mais.

As aberrações a que se assiste, as explosões impressionantes, aquela forte história de amor, o despreendimento do mocinho, os atos de coragem e bravura do herói, tudo isso faz o público experimentar uma vida, numa dimensão imaginária, claro, mais dinâmica do que a simples rotina diária de trabalhar-produzir-reproduzir-consumir. Essa estética das atrações, ao mostrar cenas de lugares diferentes e paradisíacos expressa o desejo de consumirmos o mundo pelas imagens. O prazer de gritar diante da locomotiva que se aproxima, de um carro que explode ou de um estrangulador em frente à sua vítima indica “(...) um espectador cuja experiência cotidiana perdeu a coerência e a imediatez tradicionalmente atribuídas á realidade: é esta ausência de experiência que cria o consumidor faminto de emoções” (Idem, p. 58)

Paul Valéry, filósofo, escritor e poeta francês (1871-1945) no início do texto A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução, escrito em 1935 por Walter Benjamin, faz uma observação que pode ser útil na reflexão sobre a relação entre desenvolvimento tecnológico, arte e a maneira como vemos a realidade.

Segundo Valéry as transformações da era da técnica, além de modificarem a produção e a invenção da arte, modificaram o acesso cotidiano às informações, sons e imagens do mundo: os lares são alimentados diariamente, sem muito o nosso esforço ou controle, com o gás, a água, a energia e, principalmente, com imagens visuais e auditivas.

O homem moderno é fragmentado, isto é, não consegue viver plenamente todas as suas dimensões e fica reduzido a pequenos prazeres, geralmente associados ao consumo, que nunca o satisfazem ou preenchem o sentido de sua existência. O choque, causado pela força das imagens, mostra, pelo contraste, a pequenez e insignificância da vida moderna. Mas, ao mesmo tempo, é uma espécie de denúncia, e de convite ao corpo para manifestar-se, para sentir-se. É um grito de reconhecimento do corpo. “A experiência de impacto torna-se um choque de reconhecimento.” (Idem, p. 59).

O mundo que se descortina num filme é algo que se vislumbra, que se deseja ou se repele, mas que diz sobre o homem. Dispõe-se a entrar no jogo da ilusão a que o filme propõe mantendo uma distância consciente daquilo que se passa na tela. Não se confunde totalmente a realidade com a fantasia. Mas por um momento se deixa, conscientemente, entrar no jogo ilusório das imagens, dos sons, do roteiro. Essa distância abre espaço para o inconsciente aflorar e, então, desejos e sonhos parecem encontrar sua visibilidade.

Arte incita, excita e faz emergir a criatividade e a imaginação. Mesmo que tudo isso se reduza à diversão, com valor apenas de consumo e, desse modo, reduza também seu potencial mágico e expressivo, a arte sempre está em via de subverter qualquer ordem e padrão. Nela o homem vê-se, lê-se, analisa-se, espelha-se, projeta-se, pensa-se, enfim, nela o homem expressa-se, por ela o homem cria e se recria, elabora novos modos de expressão, a partir de novas percepções que se desenvolve. Dessa forma o ser humano recria novos espaços e novos mundos, nos quais e aos quais pode debruçar-se em sua contemplação.

O cinema e uma nova percepção (Parte 08/09)

Cinematógrafo

Aparelho desenvolvido pelos irmãos August e Louis Lumière, a partir do Cinetoscópio, criado por Thomas Edison, que já projetava algumas imagens em movimento em 1890.


Apenas Distração?

A partir do desenvolvimento das formas de reprodução técnica das artes, pode-se compreender melhor como a relação entre a obra e o público também sofreram alterações. As obras de arte não se dão mais à contemplação pura e abstrata como se pensava na visão tradicional e acadêmica. Parece que o público está muito mais interessado atualmente em diversão. Mas será que a arte reduziu-se então ao puro divertimento, sem nenhuma outra importância ou função maior?

Quando se vai ao cinema, ao teatro, ao show, se faz isso por pura diversão? Apenas por distração ou esquecimento das preocupações cotidianas? O que nos move a freqüentar, consumir ou criar arte? No caso do cinema, por exemplo, mesmo sabendo que o filme seja apenas uma fantasia ou uma ilusão, ainda assim, vale a pena pagar o ingresso?

Sabe-se que não há movimento num filme. O movimento é uma ilusão criada pela rápida seqüência de imagens colocadas em ordem. Além dessa ilusão do movimento, há ilusão de sentido da cena que, na verdade, acontecem juntas e que produzem o sentido do filme como um todo. As descrições das primeiras exibições de filmes no Salon Indien do Grand Café, em Paris, pelos irmãos Lumiére, dão conta do espanto

e terror que os espectadores sentiram quando observaram a imagem de um trem vindo em sua direção. Conta-se que alguns chegaram a pular de suas cadeiras e correr para o fundo da sala. Esse espanto todo é comparável ao espanto que qualquer pessoa tem com uma descoberta tecnológica, mas, nesse caso, há um detalhe a mais: o espanto se transformou em terror. A imagem parecia viva, real, mesmo sabendo que ela era ilusão. Afinal de contas, Lumiére expunha as imagens anteriormente sem movimento. Somente depois, aquela máquina começa a dar vida ao trem. Essa dúvida, ou “meia dúvida”, é que fascina o espectador. Sabe-se que tudo aquilo é uma ilusão, mas acredita-se nesta ilusão por alguns momentos. Uma ilusão que deixa o espectador espantado, emocionado, comovido e que o remete a dimensões de tempos e espaços diferentes do cotidiano, do corriqueiro.

A partir dessa fascinação e encanto que o cinema proporciona pode-se pensar em que condições essa experiência esclarece essa nova forma de ver o mundo, de representá-lo e percebê-lo. Essa ilusão, esse encanto que instiga o espectador a mergulhar não apenas no enredo, na história, mas num clima, num tempo, num espaço, numa paisagem diferente daquilo que vivencia cotidianamente. Essa confusão que se sente diante da tela, do real e do irreal, do medo e da certeza, da angústia e do prazer, mostra que nosso conhecimento intelectual ou técnico não é tão determinante quanto se pensa. Não basta construirmos teorias e explicações racionais e técnicas para desmentir a farsa montada num filme. Ele, no ato mesmo de sua exibição, tem o poder de iludir, de provocar, de questionar e deixar o espectador desconfortado.

O cinema e uma nova percepção (Parte 07/09)

Albert Einstein (1879-1955)

A Teoria Especial da Relatividade

Além dessas transformações da psicologia moderna que exigem repensar o ser humano em suas múltiplas dimensões, a Física também fez algumas revoluções que, por um lado, resultaram nesse grande avanço tecnológico e, por outro, também nos fizeram repensar a situação humana no mundo. A Teoria da Relatividade, elaborada pelo físico alemão Albert Einstein, foi uma dessas descobertas que revolucionaram a maneira de pensar o funcionamento do universo e da nossa posição no espaço e no tempo.

Na Física de Newton, as noções de tempo e de espaço são tomadas como absolutas, isto é, não dependem de nenhuma variante. Uma vez que se pode medir uma unidade de tempo ou de velocidade, estas são entendidas como as únicas e as verdadeiras, graças a crença na mecânica universal, que garantia a constância e o padrão. Mas, se essas noções produziram ótimos resultados na Mecânica (aviões, carros e máquinas comprovam isso), não resolviam os problemas que se colocavam a partir das experiências eletromagnéticas: a crença de que era no éter, o meio mecânico que a luz se propagava, não estava mais dando conta. A visão mecânica e absoluta do tempo e do espaço – do universo, enfim – pareciam ser questionáveis.

Após dar suas contribuições às pesquisas sobre moléculas e sobre energia, Einstein, em 1905, com 26 anos, publicou, em 30 páginas, sua “teoria especial da relatividade”. Se os cálculos podem ser complicados, os exemplos e resultados são mais simples de se compreender. Basicamente essa teoria afirma que a idéia de movimento não é a mesma para todos e em qualquer lugar. Tudo depende de onde se está. Imagine-se na seguinte situação: no banco de trás de um ônibus em movimento, faço rolar uma bola de futebol pelo chão até chegar à catraca do cobrador. Para aquele que jogou, a velocidade da bola é x (por exemplo, 2 metros por segundo). Mas, para outra pessoa, que supostamente visse essa mesma cena pelo lado de fora do ônibus, que viajava a 50 metros por segundo, essa mesma bola seria percebida a 52 metros por segundo. O mesmo fato, visto de pontos diferentes, são percebidos de modos diferentes. Se levarmos em conta que, estamos por sobre a superfície da terra e podem existir outros seres nos observando de um outro ponto no espaço, a velocidade percebida por eles seria outra. A velocidade de algum objeto deve ser medida sempre em relação a um referencial e não há um referencial privilegiado sobre o qual se possa garantir a verdade última e única sobre um fato. “As leis da natureza são as mesmas em todos os sistemas de coordenadas que se movem com movimento uniforme relativamente um ao outro” (REITZ, 1982, p. 468), afirma o primeiro postulado da relatividade de Einstein. Isso quer dizer que a noção de velocidade muda de acordo com a posição onde o sujeito se encontra. Da mesma forma como ocorre com o tempo: não há velocidade nem tempo absolutos, eles são relativos às condições especiais, dentro das quais eles são percebidos. A única constante é a velocidade da luz, como afirma o segundo postulado de Einstein: “A velocidade da luz no espaço vazio é a mesma em todos os sistemas de referência e é independente do movimento do corpo emissor” (Ibidem).

Se estas conclusões podem servir para pesquisas científicas específicas, distantes da experiência cotidiana (nas pesquisas microscópicas dos átomos, por exemplo, ou nas macroscópicas, sobre a expansão do universo), o princípio da relatividade trouxe conseqüências de várias ordens (morais, teológicas, psicológicas, sociais, e outras) para o mundo contemporâneo. A relatividade vem questionar as noções de tempo, espaço, movimento, matéria, enfim, demonstrar que o mundo é aquilo que percebemos e que não há formas absolutas de lermos e interpretarmos a realidade. Percebemos sempre dentro do mundo, de acordo com nossas perspectivas.

Big-Bang

O cinema e uma nova percepção (Parte 06/09)


O Sentido da Imagem

Pode-se aplicar essa estrutura interpretativa da sensibilidade na explicação das cores, por exemplo. Não é a inteligência que atribui cores aos objetos. Elas são percebidas na própria visão, no próprio ato de olhar. E mais: a cor não é somente captada pelo olhar. Enquanto que, na psicologia clássica, os cinco sentidos eram tidos como unidades separadas que eram coordenadas pelo intelecto; na psicologia moderna os sentidos formam uma unidade. Exemplo disso é o fato de que as cores não possuem elementos apenas captados pela visão, mas também por outros sentidos: tato, olfato, audição. Por isso pode-se perceber as cores não apenas com os olhos, mas com outros sentidos do corpo: a cor preta pode ser sentida como “quente”, por exemplo.

Isso nos revela que não há um mundo fora da mente que se organiza internamente. Mas tudo se dá na relação entre sujeito e objeto. As cores são percebidas não apenas pela visão. Elas não estão nem no objeto propriamente, nem no sujeito internamente, mas na relação entre sujeito e objeto. Essa relação é permeada pelo sentido que se constrói no mundo, não apenas racionalmente. O homem é dentro do mundo, não está separado dele. É na relação que tem com as coisas e os outros que o sentido e o significado se dão, eles se configuram na própria percepção mesma. Perceber não é algo apenas do olhar, mas do corpo como um todo, e não apenas do corpo físico, mas da constituição existencial do sujeito, como afirma Merleau-Ponty: “Minha percepção, então, não é uma soma de dados visuais, táteis ou auditivos: percebo de modo indiviso, mediante meu ser total, capto uma estrutura única da coisa, uma maneira única de existir, que fala, simultaneamente a todos os meus sentidos”. (Idem, p. 19-20)

Da mesma forma como a percepção do mundo é algo que não ocorre de um modo separado do seu sentido e significado, as emoções não estão apenas em nossa mente, interiormente guardadas em gavetas separadas, às quais tiramos à medida que as sentimos. As emoções também são manifestações do ser de cada um, dentro do mundo, e elas se alteram de acordo com as relações que se estabelecem. A emoção não é externalização física de um conteúdo interno, como se pensava na psicologia clássica, mas “... uma variação de nossas relações com outrem e com o mundo, legível em nossa atitude corporal...” (Idem, p. 24). O corpo também se emociona, é emocionado, expressa emoção. O outro, o sujeito humano, não é um robô que calcula e escolhe a partir de seus registros internos qual é a emoção ou expressão que irá responder aos apelos da realidade. As palavras, os gestos, a inteligência, os sentimentos, ocorrem no corpo, constituem uma totalidade, inserida no mundo, nas relações com os outros. Essa nova psicologia ensina a ver no homem “(...) não mais uma inteligência que constrói o mundo, mas um ser que, nele, está lançado e, a ele, também ligado por um elo natural.” (Idem, p. 25) Esse mundo, por conseqüência, não pode ser visto mais como algo exterior ao sujeito, mas “(...) com o qual estamos em contato, através de toda a superfície de nosso ser...” (Ibidem)

Aqui está o ponto de interligação com o cinema. Quando vemos um filme não lhe atribuímos sentido somente por meio de uma construção intelectiva e abstrata. Sentimos o filme, as cenas, há uma produção de ilusão que é própria do filme. Essa ilusão não se dá apenas na história contada pelo filme, mas pela seqüência das cenas, pela superposição de imagens, sons, silêncio, música, na projeção, como uma linguagem. Também o sentido de um filme e adesão à viagem

imaginativa que ele propõe se dá pela identificação da obra com a realidade vivida pelo espectador. Por isso pode-se compreender porque determinados filmes agradam a uns, e não a outros.

O cinema é, portanto, uma forma de produção de sentido com a força da imagem. Nele se tem a possibilidade privilegiada de discussão sobre a relação entre pensamento e técnica, uma vez que fazer cinema não implica somente num saber técnico – e quando se resume a isso o cinema se empobrece – mas na compreensão da relação entre linguagem e pensamento, entre o individual e universal.

O cinema e a filosofia, segundo Merleau-Ponty, dividem a tarefa de expor e discutir visões de mundo. Na medida em que o cinema, não somente enquanto arte para as massas, ou veículo ideológico, com fins políticos e econômicos (embora não se possam excluir completamente essas dimensões da produção cinematográfica ou de qualquer forma de arte), mas como linguagem, como forma visual de um mundo de significados, que o homem percebe, intui e representa, se torna uma das formas de arte características da modernidade. Nessa ênfase ao visual o cinema não apenas expressa, comunica, ou diverte. Ele faz pensar, solicita as emoções, reproduz e produz sentidos e reinventa significados.

Vênus de Milo com gavetas
Salvador Dali - 1964
Estátua de bronze com 814 quilos.

Observe nessa estátua, uma representação de como a racionalidade moderna acabou por dividir o homem em partes separadas. Cada pedaço do corpo (que já está posto separado da alma, do espírito, da mente ou do intelecto, desde os medievais e bem mais nitidamente com os modernos), serve para determinadas funções, possui uma utilidade finita, como um grande armário (ou máquina) que funciona a partir de uma engrenagem própria.

O cinema e uma nova percepção (Parte 05/09)

Husserl (1859-1938)

Fenomenologia

Embora o termo já tenha sido utilizado por Hegel, em sua obra Fenomenologia do Espírito, onde o termo designa aparição ou manifestação do Espírito, é com o filósofo alemão Edmundo Husserl que o termo assumiu o peso de um método próprio de se pensar, de se fazer filosofia, ou ainda de se fazer ciência. Para Husserl, não se pode ter certeza de qualquer teoria se ela não for construída em solo seguro, em algum dado indubitável, numa evidência que não se possa questionar. Essa evidência, segundo ele, é a da consciência, ou seja, algo que possamos conhecer, pensar, dizer, sentir, enfim, qualquer idéia ou representação que se faça do mundo, se dá, antes de tudo, na consciência. O homem se define não apenas por ser racional, mas fundamentalmente, por ter consciência de si e do mundo.

Consciência, aqui, não significa um “saber o que estou fazendo”, em termos psicológicos como contrário de inconsciente. Também não se pode pensar consciência como um fato puramente mental, em oposição ao corpo, ao físico. Consciência deve ser compreendida como modo próprio do homem ser e perceber o mundo, enquanto totalidade física, mental, espiritual, emocional, racional e qualquer outra dimensão que se queira associar aqui. Consciência não é apenas um meio pelo qual algum objeto (o homem) conhece uma coisa (o mundo), como instâncias separadas. Portanto, não há uma realidade pura, isolada do homem, mas a realidade enquanto ela é percebida, que se dá à consciência humana. A partir disso é que se pode raciocinar, calcular, poetizar, agir, etc...

A consciência é sempre consciência de alguma coisa, reza o princípio fundamental da Fenomenologia. Ela estuda a consciência em si mesma, no ato do conhecimento. Ela é, num sentido mais geral, a descrição de um conjunto de fenômenos que se dão no tempo e no espaço e que se dispõe à consciência humana. Os empiristas diziam que a essência das coisas é inacessível ao pensamento, e que este se constrói a partir de experiências.

O risco do empirismo é de cair na falta de certezas absolutas, válidas universalmente, ou seja, num ceticismo, além de retirar da mente, da razão, um papel preponderante no ato do conhecimento. Os idealistas, ao contrário, admitiam que o pensamento pode chegar a contemplar a essência, pois a mente humana possui condições a priori (as categorias de Kant, por exemplo), isto é, anterior a qualquer experiência, que a possibilita pensar conceitos universais. O seu risco é deixar o conhecimento à mercê da mente humana, numa atividade puramente psicológica (psicologismo). A fenomenologia, por seu turno, quer superar esse dualismo. Segundo Husserl, tanto a experiência, quanto as universalizações da metafísica, só fazem sentido e se organizam enquanto representações na consciência humana. Portanto, é a partir dela que devemos compreender como se dá o conhecimento.

Se na concepção clássica, seja no empirismo ou no idealismo, o sujeito está separado do objeto no ato do conhecimento, para a Fenomenologia, eles estão numa relação indissociável. A consciência está entrelaçada com o mundo. Perceber é perceber o mundo, no mundo. Não é apenas um ato imaginativo, psicológico; nem uma pura recepção de sensações advindas da experiência, ou ainda um ato reflexivo-racional. Perceber é um movimento, uma atividade, é uma contemplação, com forte caráter emotivo. Isso quer dizer que a percepção do mundo sempre se dá com um caráter motivado: percebo aquilo que mais me chama a atenção, aquilo que quero. O mundo é captado, segundo Husserl, sempre em perspectiva, ou seja, sempre em relação a... e nunca absolutamente. A percepção não consegue, por esse motivo, apreender a realidade em sua totalidade.

O cinema e uma nova percepção (Parte 04/09)

Merleau-Ponty

Merleau-Ponty e o Cinema como Expressão de Visão de Mundo

Dentro do terreno da fenomenologia, o filósofo francês Merleau-Ponty (1908-1961), no seu texto O Cinema e a nova Psicologia, confronta os discursos da psicologia clássica e os da psicologia moderna, a Gestalt, com relação à formação do campo visual e da sensibilidade e suas implicações na produção e percepção do cinema. Merleau-Ponty procura esclarecer a constituição da sensibilidade moderna. Trata-se de uma sensibilidade que assume uma dimensão no campo visual e isso tem relação com o modo como a sociedade moderna se constituiu. O campo visual é o campo de nossa inserção no mundo, é a perspectiva da qual observo e sou observado.

Na psicologia clássica, de cunho mecanicista-racionalista, pensa o mundo de um modo mecânico, automático. Vê o conhecimento como algo lógico e racional somente, o campo visual era descrito como um mosaico de sensações despertadas pelo estímulo na retina. O sentido desse mosaico – partes separadas que o olho recebe e que são justapostas, coladas pelo intelecto – é dado pela inteligência e pela memória. À medida que recebe as imagens, a inteligência, alimentada pela experiência, faz a “colagem”, isto é, a organização desse material. Segundo a psicologia tradicional, a visualização do mundo e o sentido que as coisas possuem, na verdade são dados e montados por uma mecânica de estímulo-resposta e de racionalização do que se percebe. As coisas são vistas separadamente e montadas pelo intelecto.

Já no terreno da psicologia moderna, a Gestalt, fundamentada na fenomenologia, procura compreender a percepção como um conjunto no qual prevalece a visão. A percepção, segundo essa teoria, se dá de uma vez só, ou seja, o trio cérebro-retina-estímulos não estão separados e montados numa máquina chamada “mente humana”. O processo não é matemático ou automático como se pensava e calculava a psicologia clássica. A percepção do mundo não se dá de maneira intelectiva. Ela acontece já na própria sensibilidade do campo visual, a partir da inserção do sujeito no mundo, ou seja, na percepção está implícita a situação no espaço e no tempo em que o sujeito está inserido. Quando vejo algo, já faço com sentido, isto é, a percepção se dá num todo organizado, numa determinada ordem, que não é necessariamente a ordem lógica ou cronológica, mas que obedece à configuração pela qual posso ler, interpretar, significar, de acordo com sentimentos, com a história de vida, com o contexto social, com os valores morais, enfim, a todo o universo de representações nas quais estou inserido.

O perceber é também significar, organizar é representar mentalmente com sentido. Os objetos se apresentam à percepção e à mente sempre motivados, como que magnetizados intuitivamente, a partir de algum ponto que chama a atenção. Isso explica porque, duas pessoas, ao observarem a mesma cena ou objeto, “escolhem” determinados pontos centrais, que mais lhe chamam a atenção, ou ainda, como fixamos nossa visão em fundo e figura. Isso não se dá apenas por uma questão de escolha racional, lógica, mas por uma questão de sentido – enquanto organização do campo visual e significado – enquanto ligação emotiva e sentimental, que cada uma constrói no ato mesmo de percepção.

Quando observo uma paisagem, por exemplo, não busco ou construo sentido num momento posterior ao da retina receber a informação. A percepção não se dá em dois momentos distintos, como se pensava tradicionalmente. Isso tudo acontece ao mesmo tempo em que a observo. A nossa retina é cega e não sabe o que vê, nem escolhe o que ver. Quem faz essa composição, quem dá essa homogeneidade é a percepção mesma. Ao invés de um mosaico de representações temos um sistema de configurações.

A racionalização do que se percebe, isto é, a construção de teorias abstratas sobre o que se vê, é algo posterior à percepção. A racionalização ou teorização imaginativa é orientada pelas regras lógicas, dedutivas, mas o pensamento analítico e reflexivo é secundário nesse processo. Mais primitivo e natural é a percepção do todo com sentido: “Quando percebo, não imagino o mundo: ele se organiza diante de mim.”, afirma Merlau-Ponty. (PONTY, 1983, p. 22)


Observe como as cabeças, nesta litografia, parecem se entrecruzar, sem que saibamos exatamente onde começa ou termina uma e outra. Ao mesmo tempo em que nos percebemos, trocamos informações, conteúdos, idéias, sentimentos, nos mesclando, nos interferindo, multiplicando nossas faces e nossas possibilidades.

Bond of Union, (1956). Litografia do artista neerlandês M.C. Escher (1898-1972).
Galeria Nacional do Canadá. www.printstore.com

Gestalt

“Configuração” ou “forma” em alemão. Esta corrente da psicologia, surgida no início do século XX, com idéias de psicólogos alemães e austríacos, se opõe à psicologia tradicional que via o conhecimento e a percepção do mundo como partes separadas, que a mente, racionalmente juntava e dava significado. A Psicologia da Forma afirma que temos uma tendência mental de configurar, de dar forma, de compor significativamente aquilo que se percebe. Quem de nós nunca brincou de olhar para o céu e buscar nas nuvens desenhos (formas) que já são conhecidas (com sentido)?

O cinema e uma nova percepção (Parte 03/09)


As Novas Técnicas de Reprodução: Fotografia e Cinema

Não é de hoje que o ser humano procura apreender e controlar o movimento em alguma forma material. Desde o Egito antigo brinquedos eram inventados para reproduzir imagens (de animais ou de homens) em movimento. E mesmo antes dos egípcios, nos primeiros desenhos encontrados nas cavernas, dentro da lógica mágico-religiosa, da qual faziam parte, também já se encontrava a tentativa de controlar o movimento da natureza (dos animais, por exemplo), pois pretendiam invocar aos deuses a inspirá-los na caça. Com o decorrer do tempo, outros objetos foram inventados com o mesmo objetivo, mas foi com a fotografia e, posteriormente, com o cinema que ele foi alcançado com maior êxito.

Primeiramente a fotografia, no final do século XIX, na Europa, que revolucionou a forma de imprimir as imagens, de registrar os fatos, ou de retratar a maneira como se vê o mundo. Imagine que, com a fotografia, muitos pintores ficaram preocupados com o fim de sua arte ante uma técnica mais aprimorada, que fixava as imagens com mais realismo, objetividade e riqueza de detalhes.

Num primeiro momento, a pintura tentou imitar a fotografia ao refinar suas técnicas, aprimorando o realismo de suas imagens, até como uma forma de se recuperar da crise e evitar o seu final trágico diante da nova máquina; num segundo momento, a fotografia provou que se tratava de mais uma linguagem artística, cuja característica principal era de ampliar a capacidade de visão do olho humano, e que em nada pretendia tirar o mérito da pintura. Essa ampliação da visão não apenas no sentido do alcance físico, mas como uma forma de olhar a própria realidade com um outro cuidado, com novas perspectivas, numa nova dimensão de tempo, efeitos e com outros recursos, foi o que a fotografia permitiu.

Com o surgimento do cinema, no início do século XX, na Europa, essa conquista do movimento nas telas, obteve uma repercussão maior. Além de registrar com mais precisão as imagens, as câmeras também podiam, agora, registrar, apreender, guardar, reproduzir e controlar, o movimento, ou pelo menos a sua ilusão. Imagine como ficaram os músicos, poetas e outros artistas com essas novidades! Elas podem ser caracterizadas como arte, ou como uma boa arte? Elas não acabam com aquilo que comumente chamamos de arte? Era o que muitos se perguntavam.

“As árvores têm braços. As pessoas, ramos. E continuam em pé, inexplicavelmente em pé, sob um céu desamparador.” (Eduardo Galeano)

“A areia bebeu a água do Lago Faguibin, o maior da África Ocidental. Os homens migraram em busca de trabalho, deixando para trás mulheres, velhos e crianças. Mali, 1985.” (Contextualização sobre a foto. Texto do site).

Sebastião Salgado, entre 1984 e 1985, fotografou as vítimas da fome no Sahel (África), como voluntário do grupo humanitário francês Médecins sans Frontières (Médicos sem Fronteiras).


Observe como a fotografia é uma forma diferente de mostrar a realidade. É uma máquina, mas que guarda amplas possibilidades de mostrar, denunciar, expressar, criticar, criar a realidade que nos cerca.

O cinema e uma nova percepção (Parte 02/09)


Novos Caminhos

Essa relação entre arte e consumo é uma das questões que se discute em Estética, principalmente a partir do século XIX. O desenvolvimento tecnológico ajudou a provocar e questionar a concepção de arte que até o século XIX estava associada à idéia de beleza clássica, isto é, de ordem, simetria, harmonia e proporção, inspirada na imitação e representação da natureza.

A partir do século XX, entretanto, as diversas manifestações artísticas que surgiram, parecem confundir essa noção de beleza e de arte, defendidas pelas academias ou por uma arte restrita a poucos. A criação dessas novas linguagens artísticas também pode ser entendida como uma forma de alerta, ou de fuga, no sentido da busca de novas formas de expressão, diante do desenvolvimento tecnológico e da lógica do consumo, que colocariam em risco as próprias formas tradicionais de arte. A arte, na perspectiva de crítica social e autocrítica, apresenta-se em várias tendências, como nas propostas impressionistas, com suas leves pinceladas e total despreocupação com a nitidez de suas linhas. Volta mais para o volume do que para as formas e, através de estudos sobre a luz, procuravam registrar tonalidades diferentes da luminosidade e os contrastes das sobras. Nos surrealistas, com suas imagens oníricas e fantasiosas, de denúncia à falta de sentido da sociedade contemporânea. Com o dadaísmo, que surgiu como reação à Primeira Guerra e às contradições do sistema capitalista, interrogando a própria legitimidade ou estatuto da arte ao questionar a idéia de estilo e de padrão estético. No futurismo, que procurou dar novas formas visuais às descobertas tecnológicas e ao desenvolvimento da sociedade. Enfim, essas novas linguagens artísticas são alguns dos exemplos desses novos modos de produzir e de pensar a arte. Elas não se limitaram, no entanto, à pintura, mas encontraram eco também na música, na escultura, na literatura, no teatro e no cinema reformulando seus modos de expressão.

Como entender essa multiplicidade de expressões artísticas, esses “ismos” todos que tornam mais complexo o universo das artes? Compreender essa dinâmica das artes contemporâneas é um dos desafios da Estética atualmente.

O cinema é uma dessas novas formas de expressão que possibilitaram uma mudança nas perspectivas da arte contemporânea. A força das imagens, aliada ao som e à idéia de movimento, ampliaram a percepção do mundo contemporâneo.

É importante que se compreenda melhor o fascínio que o cinema desperta e de que forma ele permite ampliar as expectativas e percepções da realidade.

 
O Dadaísmo colocou-se como a anti-arte ou uma arte de vanguarda ao ousar, em suas obras feitas com objetos comuns, de uso cotidiano (ready-made), como por exemplo, Marcel Duchamp, em 1913, com uma roda de bicicleta colocada em cima de um tamborete.

O cinema e uma nova percepção (Parte 01/09)


“Quinze minutos de fama
mais um pros comerciais
quinze minutos de fama
depois descanse em paz
O gênio da última hora
É o idiota do ano seguinte....
... o maior sucesso de todos os
tempos entre os dez maiores fracassos
não importa contradição
o que importa é televisão
dizem que não há nada que você não se acostume
cala a boca e aumenta o volume então...”

“A melhor banda de todos os tempos da última semana”
Titãs (2001) - Composição: Branco Mello/ Sérgio Britto.


A força da mídia na produção e comercialização de arte é um fato bastante notório. Pode-se questionar, no entanto, até que ponto isso não afeta, para melhor ou pior, justamente essa produção da arte. Como explicar que, na música, por exemplo, há um grande rodízio de sucessos e que, alguns artistas, no auge da fama, amanhã já não subirão mais o degrau das celebridades? Isso é uma amostra do grande potencial artístico humano ou é apenas uma questão de produção industrial da arte, voltada apenas para o consumo? Até que ponto essa comercialização e consumo de arte não limitam a criatividade e o próprio acesso da maioria da população brasileira a grandes obras da tradição cultural?

Texto produzido por Luciano Ezequiel Kaminski para a Secretaria de Estado da Educação do Paraná.

Natal: tempo de benevolência

Um Feliz Natal !

O Presépio

Feliz Natal Digital

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Necessidade ou fim da arte ? (Parte 09/09)


A Rede” – Gustave Courbet

Na forma romântica, a mais espiritual das três, temos a pintura, a música e a poesia, como tipos específicos de arte mais elevados, pois desprendem-se da materialidade e passam a expressar, a partir das suas formas, os conteúdos ideais. A subjetividade, o conteúdo volta-se para si próprio “(...) reentregando a liberdade à exterioridade que, por sua vez, regressa a si mesma, quebra a união com o conteúdo, torna-se- lhe estranha e indiferente” (Idem, p. 166). A arte romântica volta-se para as volições humanas, isto é, para a realidade do ser humano: “(...) a representação artística terá doravante por objeto as mais variadas subjetividades nos seus movimentos e viventes atividades, ou seja, o vasto domínio dos sentimentos, das volições e das inibições humanas.” (Idem, p. 167). E os três elementos materiais que exprimem esse conteúdo são a luz, a cor e o som, na sua forma musical ou na palavra. Esses elementos possibilitarão uma visibilidade do tempo e do espaço, nessas três formas de arte. A luz e a cor são trabalhadas pela pintura que consegue apreender abstratamente o espaço. O som e a apreensão do espaço são elementos da música, que “...exprime o despertar e a extinção do sentimento e forma o centro da arte subjetiva, a passagem da sensibilidade abstrata para a espiritualidade abstrata”(Idem, p. 168). A poesia, “(...) a mais espiritual das artes românticas” (Idem, p. 169), a forma mais perfeita de arte, portanto, que é a expressão do puro sentimento, não subjetivo-individual, mas é a representação das idéias. Na poesia o som “(...) se transforma na palavra articulada, destinada a designar representações e idéias (...)” (Ibidem)

Mas enquanto arte, a forma romântica também possui limitações: “(...) a arte porfia em exprimir, com uma forma concreta, o universal, o espírito (...)” (Idem, p. 159). Há uma distância entre espírito e sua representação. O espírito “(...) constitui a infinita subjetividade da idéia que, enquanto interioridade absoluta, se não pode exprimir livremente, manifestar completamente na prisão corporal em que fica encerrado” (Ibidem). A arte não atinge essa expressão mais pura da verdade que é própria do Espírito: “A idéia, segundo sua verdade, só existe no espírito, pelo espírito e para o espírito” (Ibidem). Essa unidade só se realiza no espírito, na intuição espiritual, livre da representação sensível. Mesmo com essas limitações a arte, para Hegel, oferta a verdade divina à luz da contemplação intuitiva ao sentimento.

A arte está limitada à necessidade da verdade de se revelar diretamente à consciência, isto é, no próprio espírito. A arte, portanto, seria superada quando seria eliminada a necessidade da arte, isto é, o Espírito não teria mais a necessidade de formas sensíveis para expressar-se. Num tempo onde a sociedade civil estaria sob o império das leis e os ideais estariam sendo vividos completamente, a arte se confundiria com a própria vida. Onde os sujeitos estariam regulados pelo Estado (visto como a superação das necessidades individuais) e perderiam sua importância criativa, isto é, suas criações particulares não teriam sentido. A Filosofia sintetizaria as limitações da arte e da religião e arte teria importância apenas na memória das pessoas: “(...) neste grau supremo, a arte ultrapasse-se a si mesma para se tornar prosa, pensamento” (Idem, p. 171). Como nos versos de Hölderlin, poeta alemão, característico dessa arte romântica, que expressa em seus versos a relação, essa proximidade entre poesia e pensamento:



Sócrates e Alcebíade

Por que, divino Sócrates, insistentemente
Veneras este jovem? Não conheces nada maior?
Por que, tal como sobre deuses, voltas
Com amor teu olhar sobre ele?
(...) Quem o mais profundo pensou, ama o mais vivo
Quem olha fundo no mundo, este compreende a elevada juventude
E muitas vezes, ao fim, os sábios se inclinam diante da beleza.
(In: HEIDEGGER, 2002, pg. 119)

Necessidade ou fim da arte ? (Parte 08/09)


Hegel afirma que a arte romântica “(...) nasceu da ruptura da unidade entre o real e a idéia e do regresso da arte à oposição que existia na arte simbólica.” (Ibidem) Enquanto a arte clássica atingiu o seu ser máximo enquanto arte, a romântica atingiu o seu ser máximo enquanto idéia. Mas a arte romântica, entretanto, quer ultrapassar-se a si própria: “(...) o romantismo consiste num esforço da arte para se ultrapassar a si própria em, todavia, transpor os limites próprios da arte.” (Idem, p.160) Evidencia-se aqui a idéia de fim da arte, em Hegel: não é o fim no sentido de morte da arte, mas é a sua realização plena dentro do processo dialético de auto-conhecimento do Espírito. Aqui a idéia está livre e o sensível “(...) aparece, então, como que à margem da idéia espiritual, subjetiva, deixa de ter necessidade; mas fica, por sua vez, livre na esfera que lhe é própria, na esfera da idéia.” (Ibidem)

Na arte romântica há predomínio do saber, do sentimento, da idéia, da alma. Nesse nível o sensível se torna indiferente, transitório, acidental, mas continua como caminho para o espiritual. A forma – o visível da obra – ganha liberdade e é condição para essa expressão pura da idéia. Há necessidade da forma no romantismo sim, mas esses elementos formais-materiais não têm tanta importância, são perecíveis, uma vez que o espiritual está livre: “A arte simbólica ainda procura o ideal, a arte clássica atingiu-o e a romântica ultrapassou-o”, afirma Hegel. (Idem, p. 162)

Hegel ainda relaciona as diversas artes particulares a cada forma de arte exposta acima. Essa divisão acompanha a idéia de que a perfeição de uma obra de arte está na sua ligação mais próxima com seu conteúdo próprio, isto é, “(...) o verdadeiro conteúdo do belo não é senão o espírito.” Isto quer dizer uma obra de arte será tanto mais perfeita quanto mais despreendida das formas materiais, quanto menos presa estiver nossa sensibilidade à natureza e mais próxima da contemplação de Deus, do Espírito Absoluto, da Idéia.

Nesse sentido a arquitetura, segundo Hegel, é a arte própria da forma simbólica, pois a relação entre conteúdo e forma são confusas, ainda muito ligadas à natureza inorgânica. A escultura é a arte própria da forma clássica, onde conteúdo e forma se desligam da natureza e se identificam entre si. Por outro lado o grande mérito da escultura é de poder expressar um mundo interno, espiritual, ma, por estar presa às formas materiais, guarda sua limitação.

Necessidade ou fim da arte ? (Parte 07/09)

A segunda forma de arte é a Clássica. É “(...) a da livre adequação da forma e do conceito, da idéia e da manifestação exterior (...)” (Idem, p. 157). Representa o ideal da arte, pois “(...) a figura, o aspecto natural, a forma que a idéia utiliza, deve conformar-se, em si e para si, com o conceito” (Ibidem). Aqui, figura e forma correspondem ao conceito. Não apenas uma correspondência entre conteúdo e forma, mas dos dois à idéia. Diferentemente do que no simbolismo, nesta forma de arte o mundo é desnaturalizado, “(...) o sensível, o figurado, deixa de ser natural.” (Ibidem). O homem deixa de ser algo completamente ligado à natureza ao adquirir consciência de si. Quando tem consciência que é animal, deixa de sê-lo. Essa consciência nos remete à participação do espiritual. Não somos puramente animais. Não somos mais passivos diante da natureza.

É pelo homem que o espírito se manifesta: “(...) o espiritual, enquanto manifesto, só o é revestindo a forma humana” (Ibidem). O espírito existe e existe sensivelmente na forma humana, onde pode realizar a beleza perfeita. O espírito é sensível ao humano e é na forma humana que o conceito se desenvolve. Arte é personificação do espiritual “... só humanizando-o [o espiritual] a arte pode exprimir o espiritual de modo a torná-lo sensível e acessível à intuição, porque só encarnado no homem o espírito se nos torna sensível.” (Idem, p. 158) Mas essa humanização não é uma pura identificação com o ser humano. O espírito não se deixa absorver, identificar com o físico, corporal. A forma é espiritual, purificada, desembaraçada dos laços com a matéria, com a finitude. Por isso o espírito não se perde na expressão da forma humana.

Essa forma de arte, entretanto, também é limitada. A manifestação do Espírito fica reduzida ao contexto da arte, presa à matéria. Eis aí a fraqueza dessa segunda forma de arte. Ela se mostra insuficiente e frágil. O Espírito se particulariza, não fica absoluto e eterno. Só na matéria ele não pode expressar-se com plenitude, precisa da espiritualidade pura.

Na terceira forma de arte acontece a superação. É a arte Romântica. Aqui ocorre a ruptura do conteúdo e da forma. Eles, que estavam separados, uniram-se e, agora, separam-se novamente. Uma volta, um regresso, mas que significa um avanço. É bom lembrar aqui da circularidade que é própria dessa evolução dialética.
 
Michelangelo, Criação do Homem. Capela Sistina.

Uma de suas obras mais conhecidas, a pintura do teto da capela Sistina, nesse recorte especificamente, apresenta o toque da criação divina. Deus, que faz o homem à sua imagem e semelhança. A arte clássica traz ao homem a representação da divindade, do espiritual, da idéia, da interioridade humana. Deus, ou o Espírito Absoluto para Hegel, estariam bem próximos de uma representação clara, consciente, pelo homem através da arte clássica, que já se desvencilharia da necessidade de visualização de um objeto físico (um templo ou alguma escultura, por exemplo), deixando o espírito humano livre para a contemplação da idéia. No entanto, ainda essa arte carece de perfeição, segundo Hegel, uma vez que precisa fazer uso da imagem, o que torna ligada à dimensão concreta da realidade.


Necessidade ou fim da arte ? (Parte 06/09)


As diversas formas de Arte para Hegel

Segundo Hegel, existem diversas formas de arte que precisam ser entendidas no movimento de posição e reconhecimento do Espírito Absoluto. Cada forma busca apreender, conceber e representar o Espírito de uma forma diferente. O ser humano, para o filósofo, tem uma demanda natural de “(...) aspiração à unidade absoluta (...)” (Idem, p. 154). Essa unidade é a perfeita união entre forma e conteúdo. O belo artístico é para Hegel é “(...) concebido como uma representação do Absoluto.” (Idem, p. 149) A beleza ocorre como adequação da realidade ao conceito – verdade. Beleza “(...) representa a unidade do conteúdo e do modo de ser do conteúdo, que resulta da apropriação, da adequação da realidade ao conceito” (Idem, p. 154)

De acordo com a concepção de processo histórico e dialético da Idéia na história, Hegel analisa a evolução dessas diversas formas de arte, dividindo-a em três os momentos ou formas: Simbólica, Clássica e Romântica.

Assim como o homem possui uma inquietação para o espiritual, a Idéia também carrega uma necessidade da determinação, isto é, de objetivação na concretude, na busca de uma matéria que lhe seja conveniente à sua forma, na “(...) sua inquietude e insatisfação, a idéia evolui e expande-se nesta matéria, procura torná-la adequada, apropriá-la” (Idem, p. 155). Essa determinação ocorre de acordo com a evolução da história, história que é do Espírito e ao mesmo tempo do homem, como ser que é capaz, pela sua ciência, de pensar e representar o Absoluto, o espiritual.

A primeira forma de arte é chamada de Simbólica. Nela a apropriação da matéria pela idéia ocorre de uma maneira que não lhe convém, violenta, contundida. De um lado a idéia abstrata; de outro a matéria que não lhe é adequada. O conteúdo é mais ou menos impreciso, sem determinação. A forma é exterior e indiferente, direta e natural. É a primeira forma de determinação que “(...) extrai o seu aspecto figurado da natureza imediata” (Ibidem). É uma arte imperfeita, pois nela “(...) estabelece-se uma correspondência puramente exterior, abstratamente simbólica” (Idem, p. 156), como se os elementos da natureza contivessem o universal, absoluto. Esse simbolismo ocorre pela “(...) diferença entre o fora e o dentro, por uma falta de apropriação entre a idéia e a forma incumbida de a significar, pelo que esta forma não constitui a expressão pura do espiritual” (Idem, p. 157). Um exemplo de arte que exemplifique essa idéia são as estátuas de deuses, que procuram personificá-los, como se a divindade estivesse ali de fato. É uma forma de arte na qual a relação do homem com a natureza e com Deus é mediada pela distância e pelo medo. A dificuldade que o homem possui de conceituar, compreender a divindade faz com que as representações que ele faz de Deus sejam pobres, muito próximas dos elementos da natureza, o que as distanciam do ideal.

Necessidade ou fim da arte ? (Parte 05/09)


Arte e a Manifestação do Espírito


Para Hegel, a arte é a primeira manifestação do Espírito Absoluto, já no seu terceiro momento, isto é, o de “retorno-a si”. A arte faz parte da tomada de consciência de si que o Espírito realiza no homem (subjetivamente na sua alma, na razão e no seu espírito; e objetivamente no direito, na moral e na ética) agora de forma absoluta, isto é, pela Idéia. Além da arte, a segunda forma de auto-conhecimento do Espírito é a Religião e a terceira é a Filosofia, uma superando a outra. Elas são três formas de apreensão do Espírito, de sua auto-consciência, e são responsáveis de levar a consciência do homem ao absoluto. A arte é forma sensível de fazer isso.

A arte é a forma sensível pela qual a verdade se dá à consciência humana. Em sua obra Preleções sobre Estética Hegel define a arte como “(...) uma emanação da idéia absoluta (...)” (HEGEL, 1997, p. 149), cujo conteúdo é a “(...) idéia representada numa forma concreta e sensível...” (Ibidem). Sua finalidade é a “(...) representação sensível do belo (...)” (Ibidem) e sua função é de a “(...) conciliar, numa livre totalidade, estes dois aspectos: idéia e a representação sensível.” (Ibidem). Arte faz parte desse processo de autoconhecimento do Espírito que, pelo homem, pode representar, sensivelmente, o belo. Para tanto existem conteúdos que são mais apropriados para a representação artística. Esses conteúdos não podem ser completamente abstratos, pois precisam de uma representação sensível. Mas por ser natural e sensível esse conteúdo não deixa de ser também espiritual, isto é, a natureza não está longe ou oposta ao Espírito, como já afirmamos anteriormente. Há uma unidade entre o geral e o particular, entre o espiritual e o material em Hegel.

Essa unidade é concreta e representável pela arte. A terceira exigência de uma obra de arte é que ela seja figurativa, individual. Qualquer obra tem sua forma material (circular ou quadrada, por exemplo) e seu conteúdo material (madeira ou ferro, por exemplo). Mas na obra de arte ainda existem uma forma espiritual e um conteúdo espiritual. Essas é que dão identidade à obra de arte, isto é, a diferem de qualquer outro artefato feito pelo homem. O específico da arte é essa união entre conteúdo e representação que se encontram numa forma concreta: a obra de arte.

Portanto, não é qualquer forma que pode servir para qualquer conteúdo. Existe uma comunicação, um ligação íntima, na obra de arte, entre a forma e conteúdo. Ambos existem correlatamente, isto é, um não vive sem o outro e não seria a mesma coisa se uma forma exibisse um conteúdo que não lhe fosse apropriado. Observe mais adiante, no desenvolvimento das várias formas de arte, como essa relação entre conteúdo e forma se constrói no curso da criação artística. Se a arte é um meio de tornar acessível um conteúdo, e sobre isso afirma Hegel que “(...) a função da arte consiste em tornar a idéia acessível à nossa contemplação, mediante uma forma sensível e não na forma do pensamento e da espiritualidade pura em geral (...)” (Idem, p. 151), então é preciso que conteúdo e forma estejam de acordo com a idéia a ser expressa. Idéia aqui não significa puramente uma mensagem, mas um conteúdo espiritual. Espiritual, aqui, não se resume ao religioso. Uma vez que Espírito e matéria estão em unidade, então o mundo concreto também é manifestação do espírito. É um espiritual concreto.

Mas a arte, sozinha, não é o melhor meio de apreender o espiritual concreto. A arte precisa do pensamento, que por mais teórico que seja, possibilita que a matéria conforme-se com a verdade. A qualidade de uma obra de arte depende “(...) do grau de fusão de união existente entre a idéia e a forma” (Ibidem). É isso que fundamenta, para Hegel, a hierarquização das diversas formas de arte que ele mesmo vai realizar. As artes mais perfeitas são aquelas que expressão melhor, ascendem mais para a verdade, num processo evolutivo. Essa evolução é evolução do Espírito na tomada de sua consciência própria. Há “uma evolução das representações concretas da arte, das formas artísticas, que, decifradas, dão ao espírito a consciência de si próprio” (Ibidem). A perfeição de uma obra de arte, segundo Hegel, se dá quanto “(...) mais corresponder a uma verdade profunda o conteúdo e a idéia dela” (Idem, p. 153)

Necessidade ou fim da arte ? (Parte 04/09)



Hegel e o Espírito Absoluto

O filósofo alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel, também pensou a respeito da arte. Mas a idéia de Hegel sobre esse assunto é que, embora a arte seja necessária ao homem como forma de ascensão ao Espírito absoluto, a arte terminaria em pensamento, se confundiria com a Idéia e não seria mais necessária ao final desse processo de manifestação do Espírito. Suas considerações a respeito desse assunto precisam ser compreendidas à luz de algumas idéias que fundamentam o todo de sua teoria.

É fácil notarmos que a realidade está em constante transformação. Essa transformação, no entanto, não ocorre apenas no nível das aparências, ou seja, no envelhecimento dos animais ou na queda das folhas das árvores, por exemplo. A realidade como um todo é dinâmica em sua essência, ela é processo, é atividade, isto é, movimento. Esse dinamismo próprio da realidade, segundo Hegel, não nos permite pensá-la simplesmente como uma matéria inerte ou separada de alguma substância maior, espiritual ou transcendente. Para Hegel, a realidade é manifestação do Espírito infinito ou Absoluto. Mas o que é esse Espírito?

Não se pode entender o Espírito hegeliano como uma simples entidade religiosa (a alma de alguém que reencarna, por exemplo). Segundo Hegel, o Espírito que se manifesta na e pela realidade é a unidade. A grande quantidade de seres e de coisas no universo não está em desarmonia, como seres separados uns dos outros. Eles formam um todo. Essa unidade é o Espírito que torna a multiplicidade de seres numa totalidade. Sendo assim, o Espírito enquanto unidade que compacta a realidade, é Absoluto, totalizante.

E como é que esse Espírito se manifesta na realidade? Ele é movimento, é dinâmico e natureza reflete esse dinamismo. O Espírito se manifesta e se reconhece no mundo, nas coisas. Ao criá-las o Espírito cria a si próprio. Esse movimento revela uma característica fundamental tanto do Espírito, quanto da realidade (afinal eles são lados da mesma moeda): a circularidade dialética.

Para Hegel, essa dinâmica do Espírito guarda três momentos distintos: 1) o “ser em si”; 2) o “ser do outro”; 3) “retorno a si”. Como ocorre isso? O Espírito é, primeiramente, ele próprio, idêntico a si mesmo. Depois ele se reflete naquilo que ele mesmo cria, isto é, no mundo, que é a sua negação, ou seja, o seu “outro”. Finalmente recupera-se, quando essa realidade volta a reencontrar-se enquanto Espírito. O movimento da fertilidade é um exemplo disso: a semente que, primeiramente é em si mesma e essencialmente uma flor, precisa morrer, negar a si própria, para que a flor possa surgir. Esses três momentos da circularidade dialética do Espírito são identificados por Hegel como “Idéia”, “Natureza” e “Espírito”, respectivamente. Veja, portanto, que Espírito e Idéia são o mesmo ponto: um de partida e outro de chegada, formando o círculo. Dessa forma, a natureza, o ponto intermediário, o “fora-de-si”, seria também uma forma diferente de ser da própria Idéia, enquanto ser-em-si e do próprio Espírito, enquanto superação ou retorno-a-si. Percebe-se então a concepção idealista da realidade que é a marca do pensamento de Hegel. Realidade e pensamento, espírito e matéria, são idênticos segundo o filósofo: “Somente o espiritual é o efetivamente real.” (HEGEL, 1999, p. 306)

Então esse Espírito Absoluto se revela na dinâmica da realidade. Realidade que também é movimento, é processo. Processo que é histórico e, também, dialético. Isto quer dizer que a história, para Hegel, é o desenrolar dessa manifestação do Espírito. Na medida em que uma determinada época da história entra em crise, ela encontrará sua negação, sua contrariedade e, sucessivamente essa a negação se deparará também com uma negação que superará as duas anteriores.

Assim também se dá com o conhecimento, segundo Hegel: uma teoria (tese) encontra sua negação (antítese) e, desse conflito, elabora-se a superação das duas (síntese). As idéias, enquanto conhecimento humano, evoluem num desenrolar espiral da mesma forma que a história. E o que temos nisso tudo é o movimento do próprio Espírito, isto é, da Idéia que se desenvolve na natureza, em função do reencontro, da retomada de si, da sua auto-consciência. A história dos homens é a história do Espírito Absoluto, portanto.

Essa exposição simples não completa todo o emaranhado de idéias sobre as teorias de Hegel. Mas elas já nos fornecem um suporte necessário para compreender o pensamento do filósofo sobre a arte.

Necessidade ou fim da arte ? (Parte 03/09)


Ernest Fischer (1899-1953)
Necessidade da Arte

Pode-se afirmar, portanto, que arte é uma forma do homem se relacionar com o mundo, forma que se renova juntamente com a produção da vida. O homem, que nunca está contente com a sua condição porque é finito e incompleto, busca sempre novas possibilidades de existência, busca transcender, ultrapassar e descortinar novas dimensões da realidade.

Segundo Ernst Fischer, poeta, filósofo e jornalista austríaco, em seu livro A Necessidade da Arte, o homem está sempre à procura de relacionar-se com uma dimensão maior do que a sua própria vida particular, individual. Está sempre em busca de um algo a mais, que supere sua condição individual, solitária e parcial. Procura em objetos e seres exteriores a si mesmo, uma totalidade que o completa. Cada um é, segundo Fischer, um “(...) ‘Eu’ curioso e faminto de mundo (...)” (FISCHER, 1987, p. 13). Na arte o homem une-se com o todo da humanidade, sente-se nela, “(...) torna-se um com o todo da realidade.” (Ibidem) Ela é, portanto, uma atividade que redimensiona o homem, tirando-o da simples individualidade para a coletividade. Arte é muito mais do que apenas uma diversão, distração ou um produto a ser comercializado com vistas de enriquecimento, segundo Fischer, como é próprio das sociedades contemporâneas, onde ela se torna mais um objeto de consumo.

A arte é parte intrínseca do processo pelo qual o pensamento vai se construindo a partir da inter-relação homem e mundo. Deixa-se de apenas responder aos instintos e agir por pura impulsividade e passa-se a elaborar, idealizar, projetar aquilo que se precisa e se deseja. A criatividade e a imaginação foram capacidades que se desenvolveram no ser humano e que permitiram-no não apenas produzir, o simplesmente, o necessário e o útil, mas enriquecê-lo, adornando os objetos construídos para o uso cotidiano. Esses adornos também estão relacionados a uma dimensão mágica das ações humanas, como por exemplo, as pinturas corporais feitas em rituais de dança das tribos e de diversos grupos em diversas épocas da história.

Quando a sociedade brasileira, principalmente os jovens estudantes, foram às ruas para pedir o impeachment do então presidente Collor, em 1992, também pintaram seus rostos. Pinturas que não serviam para enfeitar simplesmente, mas para identificar e fortalecer aquele ritual simbólico de luta política.

A arte é uma práxis. O homem, ao realizar, fabricar e produzir a vida pela sua criatividade, imaginação, conhecimento, técnica e linguagem, aprofunda-se em seu conhecimento próprio, amplia sua visão de mundo e transforma-se ao transformar a natureza. Ao agir na natureza o homem ocupa seu espaço no mundo, constitui cultura e, desse modo, se refaz como ser humano. Aprende novas formas de ser ele mesmo, tornando a natureza algo próximo de sua imagem e de sua compreensão. No entanto, essa humanização não se dá sempre de maneira respeitosa, ou seja, muitas vezes nesse processo a natureza passa a ser objeto de exploração e dominação abusivas. Basta observar a violência ao eco-sistema e do homem com o seu semelhante. A arte pode ser resposta, reflexão, denúncia a esse uso tão desumano da natureza e do próprio homem. Muito embora também na própria arte essa desumanização lançou seus estilhaços, quando ela se torna um simples objeto de consumo ou acúmulo de riquezas, a arte também pode trazer propostas contrárias a essa exploração da natureza, da arte e do próprio homem.

Necessidade ou fim da arte ? (Parte 02/09)


Karl Mannheim (1893 – 1947)

Arte e Sociedade

A arte parece fazer parte da nossa vida. A história da cultura mostra que o ser humano não conseguiu se desenvolver apenas produzindo objetos úteis. Procurou-se algo mais. Produziu-se arte. E produziu-se em sociedade.

Karl Mannheim

O sociólogo alemão Karl Mannheim afirma que a arte está intimamente ligada à história e à cultura. A arte não brota apenas de indivíduos isolados do mundo. Ela não é algo restrito à vida privada ou não é independente do contexto social. Um artista pode até produzir solitariamente, mas não só para si. O processo de criação pode, e para muitos deve, ser solitário. Mas o artista estará sempre pensando em sua condição de vida dentro de um mundo, de uma realidade que os cerca, que o toca intimamente, que ele sente de um jeito especial e que é capaz de dar uma forma sensível.

Isso não quer dizer que o artista, ao expressar sua sensibilidade diante da realidade, não se lança em prol de uma transformação, apontando novos caminhos e rumos que se possam seguir. Apontar para um futuro, um projeto, ainda que utópico, mas possível enquanto um projeto realizável, no dizer de Mannheim, é também tarefa da arte. O artista ainda pode retomar propostas e idéias do passado, reformulando-as ao seu modo e atribuindo-lhes novos significados. A arte, portanto, não está completamente presa, amarrada pelas condições sociais, culturais ou históricas. Ela guarda consigo essa capacidade de superar essas condicionantes, muito embora não consiga existir sem elas.

Como aponta a letra da música que abre esse texto: o ser humano tem necessidade de arte. Não vive apenas com coisas frias, com objetos sem sentido existencial ou emocional. O homem é agente significante no e do mundo. Por isso a arte é uma forma de buscar uma compreensão – que não deve ser apenas pela via do conhecimento científico, técnico, racional – mas por meio da imaginação, da criatividade, em conteúdos que são inseridos dentro de formas que parecem ter vida e consistência própria.

Podemos perceber a arte não em paralelo, ao lado ou por fora do mundo. E não parece estar no fim de sua linha. Se a arte não está distante da realidade social e histórica que a comporta e se ela não pode abster-se de procurar formas próprias de existir então podemos pensá-la como sempre presente nas maneiras de configurarmos e representarmos o mundo. É sobre esse fundo, a condição humana, que qualquer manifestação artística se coloca.

Necessidade ou fim da arte ? (Parte 01/09)


“A gente não quer só comida a gente quer bebida, diversão e arte...”
“Comida” (1987)
Interpretação: Titãs.
Composição: Marcelo Fromer / Arnaldo Antunes / Sérgio Britto

Você já imaginou passar a vida inteira sem ouvir músicas, assistir a filmes, desenhar, pintar ou escrever um poema? Nem sequer um assovio ou um sussurro em voz baixa do sucesso do momento? Conseguiríamos viver sem arte? Seríamos capazes de resumir nossa vida ao trabalho e às necessidades básicas? Ou será que a arte não é uma delas?


Benedito Calisto de Jesus (1853 1927) 
Auto-retrato.
Acervo Museu de Arte Moderna de São Paulo.
Texto produzido por Luciano Ezequiel Kaminski para a Secretaria de Estado da Educação do Paraná.