"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

O desafio do Islã - a origem (Parte 05/07)

Profeta Maomé recitando o Alcorão em Meca
(gravura do século XV).

A fuga - No ano 622, pouco mais de uma década depois de Muhammad ter iniciado sua missão profética, a cidade de Meca encontrava-se profundamente dividida. Herdeiro das tradições monoteístas do judaísmo e do cristianismo, o islamismo cindira a população local. Jesus afirmou que sua mensagem provocaria a divisão entre os homens, colocando o filho contra o pai, a filha contra a mãe, a nora contra a sogra. O mesmo se dava com a pregação de Muhammad, que seus adeptos consideram ser o sucessor espiritual de Abraão, Moisés e Jesus. Enquanto as revelações comunicadas pelo profeta atraíam um número crescente de adeptos, em sua maioria, jovens, mulheres e pobres, os homens poderosos da comunidade permaneciam impenetráveis e hostis.
A hostilidade manifestava-se no próprio interior da tribo (Quraysh), do clã (Bani Hashim) e até mesmo da parentalha mais próxima de Muhammad. Por isso, quando os líderes do Quraysh se reuniram em assembléia para decidir o que fazer, seu rico tio Abu Lahab ausentou-se propositalmente, deixando os inimigos do profeta com as mãos livres para agir. Coube ao mais apaixonado adversário do Islã a proposta vencedora. Conforme o costume árabe de agregar ao pai o nome do filho primogênito, tal homem era conhecido como Abul Hakam (Pai de Hakam), mas os muçulmanos o chamariam de Abu Yahl (Pai da Ignorância). Este propôs que cada clã da tribo designasse um jovem forte e bem relacionado. No momento oportuno, esses homens se lançariam juntos sobre Muhammad, dando-lhe, cada um, uma punhalada mortal. Desse modo, não tendo um único agressor em quem se vingar, o clã da vítima seria obrigado a aceitar, em lugar da reparação de sangue, uma reparação em dinheiro, de acordo com os costumes tribais.
Diz a tradição que o arcanjo Gabriel apareceu então ao profeta e o alertou sobre a conspiração, instruindo-o a abandonar Meca. Fazia tempo que os muçulmanos ameaçados fugiam da cidade, encaminhando-se, primeiro, à Abissínia, onde gozavam da proteção do imperador cristão, e, depois, ao oásis de Yathrib, cujos chefes haviam aderido ao Islã e jurado fidelidade ao profeta. Meca vinha sofrendo notável redução populacional e perda de status econômico devido a esse fluxo migratório. Chegara a hora do próprio Muhammad refugiar-se no oásis.
O profeta dirigiu-se à casa de Abu Bakr, amigo fiel, discípulo de primeira hora e futuro sucessor. Este chorou de alegria ao saber que poderia acompanhá-lo no exílio. Concebido o plano de fuga, Muhammad voltou ao lar e relatou o que estava para ocorrer a seu primo Ali. Os conspiradores haviam combinado encontrar-se na porta da casa de sua projetada vítima quando caísse a noite. Ao chegarem, porém, ouviram as vozes das esposas do profeta e conjeturaram que, caso violassem a privacidade das mulheres, ficariam cobertos de desonra aos olhos de todos os árabes. Por isso, decidiram esperar até o amanhecer, para atacar Muhammad quando ele saísse para a prece, como costumava fazer toda a madrugada.
O profeta notou a presença dos agressores e orientou Ali a dormir em sua cama, cobrindo-se com seu manto verde, garantindo-lhe que, sob aquela vestimenta, nenhum mal lhe sucederia. Quanto a si próprio, recitou o versículo do Corão que afirma: "E lhes colocaremos uma barreira pela frente e uma barreira por trás, e lhes ofuscaremos os olhos, para que não possam ver". Saiu então de casa e - sustenta a tradição - passou sob as barbas de seus inimigos sem que estes o percebessem. Os conspiradores ficaram o resto da noite vigiando. Espiando pela janela, viram que Muhammad dormia em sua cama, coberto com seu manto. Somente quando Ali se levantou, na manhã seguinte, é que perceberam que haviam sido ludibriados.
Nesse ínterim, o profeta voltou à casa de Abu Bakr e, sem perda de tempo, fugiram ambos pela janela dos fundos, onde dois camelos já encilhados os esperavam. Abu Bakr levava na garupa seu filho Abdallah. Fina como um risco de compasso, a lua minguante do mês de Safar, que nesse ano correspondia a julho, erguera-se sobre as colinas orientais de Meca e começava a empalidecer à luz da aurora.
Os fugitivos rumaram para o sul, em direção ao Iêmen, porque sabiam que seus eventuais perseguidores certamente os procurariam no norte, nos muitos caminhos que levavam a Yathrib. Amir, um escravo liberto por Abu Bakr, os seguiu com o rebanho de seu patrão, para que as marcas das ovelhas escondessem as pegadas dos camelos. Ao chegarem a uma caverna previamente escolhida, desmontaram e mandaram que Abdallah levasse os animais de volta à cidade. O filho de Abu Bakr voltou na noite do segundo dia em companhia de sua irmã Asma, trazendo provisões e a notícia de que os chefes do Quraysh haviam oferecido cem camelos de recompensa para quem encontrasse e capturasse Muhammad. Beduínos interessados no prêmio já vasculhavam todas as rotas normais entre Meca e Yathrib.
No terceiro dia, alguns desses caçadores de recompensa aproximaram-se perigosamente da caverna. Mas - afirma a tradição - a Providência Divina impediu que eles encontrassem o que procuravam. Na noite desse dia, Abdallah voltou com Asma e um guia beduíno, que levaria o profeta e Abu Bakr a Yathrib por um caminho longo e totalmente inusual. Embora Yathrib fique ao norte de Meca, o guia dirigiu-se para sudoeste e só inflexionou para o norte quando chegou às costas do mar Vermelho. Após doze dias de viagem, os fugitivos chegaram finalmente ao oásis. O dia 16 de julho de 622, data em que Muhammad deixou a caverna nas imediações de Meca para buscar refúgio em Yathrib, marca o início do calendário muçulmano. É a Hégira, forma aportuguesada da palavra árabe Hijra (Fuga).

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