"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

A contribuição da fenomenologia de Husserl


Quando estudamos a teoria do conhecimento, vimos que o filósofo alemão Husserl trouxe, no início do século passado, uma nova abordagem do conhecimento a que deu o nome de fenomenologia. Essa abordagem, como veremos agora, teve conseqüências para a metafísica.
Segundo Husserl, a fenomenologia está encarregada, entre outras, de três tarefas principais: separar psicologia e filosofia, manter o privilégio do sujeito do conhecimento ou consciência reflexiva diante dos objetos e ampliar/renovar o conceito de fenômeno.


Separação entre psicologia e filosofia

No final do século XIX e no início do século XX, muitos pensadores julgaram que a psicologia tomaria o lugar da teoria do conhecimento e da lógica e, portanto, da Filosofia. Na opinião deles, a ciência positiva do psiquismo seria suficiente para explicar as causas das formas de conhecimento e das demonstrações, sem necessidade de investigações filosóficas.
Husserl, porém, veio demonstrar o equívoco de tal opinião.
A psicologia, diz ele, como toda e qualquer ciência, estuda e explica fatos observáveis, mas não pode oferecer os fundamentos de tais estudos e explicações, pois esses cabem à Filosofia.
A psicologia explica, por meio de observações e de relações causais, fatos mentais e comportamentais, isto é, os mecanismos físicos, fisiológicos e psíquicos que nos fazem ter sensações, percepções, lembranças, pensamentos ou que nos permitem realizar ações pelas quais nos adaptamos ao meio ambiente. A Filosofia, porém, difere da psicologia, porque investiga o que é o físico, o fisiológico, o psíquico, o comportamental. Em outras palavras, não explica fatos mentais e de comportamento, mas descreve as essências da vida física e psíquica.
Tomemos um exemplo.
Quando um psicólogo estuda a percepção, procura distinguir dois tipos de fatos: os fatos externos observáveis, a que dá o nome de estímulos (luz, calor, cor, forma dos objetos, distância, etc.), e os fatos internos indiretamente observáveis, a que dá o nome de respostas. Divide o fato perceptivo em estímulos externos e internos (o que acontece no sistema nervoso e no cérebro) e em respostas internas e externas (as operações do sistema nervoso e o ato sensorial de sentir ou perceber alguma coisa).
Quando um filósofo estuda a percepção, procede de modo muito diferente. Começa perguntando: “O que é a percepção?”, diferentemente do psicólogo, que parte da pergunta: “Como acontece uma percepção?”.
O que é a percepção? Antes de tudo, é um modo de nossa consciência relacionar-se com o mundo exterior pela mediação de nosso corpo. Em segundo lugar, é um certo modo de a consciência relacionar-se com as coisas, quando as toma como realidades quantitativas (cor, sabor, odor, tamanho, forma, distâncias, agradáveis, desagradáveis, dotadas de fisionomia e de sentido, belas, feias, diferentes umas das outras, partes de uma paisagem, etc.). A percepção é uma vivência. Em terceiro lugar, essa vivência é uma forma de conhecimento dotada de estrutura: há o ato de perceber (pela consciência) e há o correlato percebido (a coisa externa); a característica principal do percebido é a de oferecer-se por faces, por perfis ou perspectivas, como algo interminável, que nossos sentidos nunca podem apanhar de uma só vez e de modo total.
O que é a percepção? Ou, em outras palavras, qual é a essência da percepção? É uma vivência da consciência, um ato, cujo correlato são qualidades percebidas pela mediação de nosso corpo; é um modo de estarmos no mundo e de nos relacionarmos com a presença das coisas diante de nós, é um modo diferente, por exemplo, da vivência imaginativa, da vivência reflexiva, etc.
A psicologia nos diz que percepção e nos oferece uma explicação causal para ela, mas não pode nos dizer o que é a percepção, pois para isso precisaria conhecer a essência da própria consciência.

Manutenção do privilégio do sujeito do conhecimento

Conservando-se fiel à tradição moderna e kantiana, Husserl privilegia a consciência reflexiva ou o sujeito do conhecimento, isto é, afirma que as essências descritas pela Filosofia são produzidas ou constituídas pela consciência, enquanto um poder para dar significação à realidade.
A consciência de que fala o filósofo não é, evidentemente, aquela de que fala o psicólogo. Para este, a consciência é o nome dado a um conjunto de fatos externos e internos observáveis e explicados causalmente. A consciência a que se refere o filósofo é o sujeito do conhecimento, como estrutura e atividade universal e necessária do saber. É a Consciência Transcendental ou o Sujeito Transcendental.
Qual é o poder da consciência reflexiva? O de constituir ou criar as essências, pois estas nada mais são do que as significações produzidas pela consciência, enquanto um poder universal de doação de sentido ao mundo.
A consciência não é uma coisa entre as coisas, não é um fato observável, nem é, como imaginava a metafísica, uma substância pensante ou uma alma, entidade espiritual. A consciência é uma pura atividade, o ato de constituir essências ou significações, dando sentido ao mundo das coisas. Estas – ou o mundo como significação – são o correlato da consciência, aquilo que é visado por ela e dela recebe sentido. Não sendo uma coisa nem uma substância, mas puro ato, a consciência é uma forma: é sempre consciência de. O ser ou essência da consciência é o de ser sempre consciência de, a que Husserl dá o nome de intencionalidade.
A consciência é um ato intencional e sua essência é a intencionalidade, ou o ato de visar as coisas, dando-lhes significação. O mundo ou a realidade é o correlato intencional da consciência. Assim, por exemplo, perceber é o ato intencional da consciência, o percebido é o seu correlato intencional e a percepção é a unidade interna e necessária entre o ato e o correlato, entre o perceber e o percebido. É por esse motivo que, conhecendo a estrutura intencional ou a essência da consciência, se pode conhecer a essência da percepção (ou da imaginação, da memória, da reflexão, etc.).

Ampliação/renovação do conceito de fenômeno

Desde Kant, fenômeno indicava aquilo que, do mundo externo, se oferece ao sujeito do conhecimento, sob as estruturas cognitivas da consciência (isto é, sob as formas do espaço e do tempo e sob os conceitos do entendimento). No entanto, o filósofo Hegel ampliou o conceito de fenômeno, afirmando que tudo o que aparece só pode aparecer para uma consciência e que a própria consciência mostra-se a si mesma no conhecimento de si, sendo ela própria um fenômeno. Por isso, foi Hegel o primeiro a usar a palavra fenomenologia, para com ela indicar o conhecimento que a consciência tem de si mesma através dos demais fenômenos que lhe aparecem.
Husserl mantém o conceito kantiano e hegeliano, mas amplia ainda mais a noção de fenômeno. Para compreendermos essa ampliação precisamos considerar a crítica que endereça a Kant e a Hegel.
Kant equivocou-se ao distinguir fenômeno e nôumeno, pois, com essa distinção, manteve a velha idéia metafísica da realidade em si ou do “Ser enquanto Ser”, mesmo que dissesse que não a podíamos conhecer. Hegel, por sua vez, aboliu a diferença entre a consciência e o mundo, porque dissera que este nada mais é do que o modo como a consciência se torna as próprias coisas, torna-se mundo ela mesma, tudo sendo fenômeno: fenômeno interior – a consciência – e fenômeno exterior – o mundo como manifestação da consciência nas coisas.
Contra Kant, Husserl afirma que não há nôumeno, não há a “coisa em si” incognoscível. Tudo o que existe é fenômeno e só existem fenômenos. Fenômeno é a presença real de coisas reais diante da consciência; é aquilo que se apresenta diretamente, “em pessoa”, “em carne e osso”, à consciência.
Contra Hegel, Husserl afirma que a consciência possui uma essência diferente das essências dos fenômenos, pois ela é doadora de sentido às coisas e estas são receptoras de sentido. A consciência não se encarna nas coisas, não se torna as próprias coisas, mas dá significação a elas, permanecendo diferente delas.
O que é o fenômeno? É a essência.
O que é a essência? É a significação ou o sentido de um ser, sua idéia, seu eidos. A Filosofia é a descrição da essência da consciência (de seus atos e correlatos) e das essências das coisas. Por isso, a Filosofia é uma eidética – descrição do eidos ou das essências. Como o eidos ou essência é o fenômeno, a Filosofia é uma fenomenologia.

Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed. Ática, 2000.


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