Características do senso comum
Um breve exame de nossos saberes
cotidianos e do senso comum de nossa sociedade revela que possuem algumas
características que lhes são próprias:
● são subjetivos, isto é,
exprimem sentimentos e opiniões individuais e de grupos, variando de uma pessoa
para outra, ou de um grupo para outro, dependendo das condições em que vivemos.
Assim, por exemplo, se eu for artista, verei a beleza da árvore; se eu for
marceneira, a qualidade da madeira; se estiver passeando sob o Sol, a sombra
para descansar; se for boia-fria, os frutos que devo colher para ganhar o meu
dia. Se eu for hindu, uma vaca será sagrada para mim; se for dona de um
frigorífico, estarei interessada na qualidade e na quantidade de carne que
poderei vender;
● são qualitativos, isto é, as
coisas são julgadas por nós como grandes ou pequenas, doces ou azedas, pesadas
ou leves, novas ou velhas, belas ou feias, quentes ou frias, úteis ou inúteis,
desejáveis ou indesejáveis, coloridas ou sem cor, com sabor, odor, próximas ou
distantes, etc.;
● são heterogêneos, isto é,
referem-se a fatos que julgamos diferentes, porque os percebemos como diversos
entre si. Por exemplo, um corpo que cai e uma pena que flutua no ar são
acontecimentos diferentes; sonhar com água é diferente de sonhar com uma
escada, etc.;
● são individualizadores por
serem qualitativos e heterogêneos, isto é, cada coisa ou cada fato nos aparece
como um indivíduo ou como um ser autônomo: a seda é macia, a pedra é rugosa, o
algodão é áspero, o mel é doce, o fogo é quente, o mármore é frio, a madeira é
dura, etc.;
● mas também são
generalizadores, pois tendem a reunir numa só opinião ou numa só idéia coisas e
fatos julgados semelhantes: falamos dos animais, das plantas, dos seres
humanos, dos astros, dos gatos, das mulheres, das crianças, das esculturas, das
pinturas, das bebidas, dos remédios, etc.;
● em decorrência das
generalizações, tendem a estabelecer relações de causa e efeito entre as coisas
ou entre os fatos: “onde há fumaça, há fogo”; “quem tudo quer, tudo perde”;
“dize-me com quem andas e te direi quem és”; a posição dos astros determina o
destino das pessoas; mulher menstruada não deve tomar banho frio; ingerir sal
quando se tem tontura é bom para a pressão; mulher assanhada quem ser
estuprada; menino de rua é delinquente, etc.;
● não se surpreendem e nem se
admiram com a regularidade, constância, repetição e diferença das coisas, mas,
ao contrário, a admiração e o espanto se dirigem para o que é imaginado como
único, extraordinário, maravilhoso ou miraculoso. Justamente por isso, em nossa
sociedade, a propaganda e a moda estão sempre inventando o “extraordinário”, o
“nunca visto”;
● pelo mesmo motivo e não por
compreenderem o que seja investigação científica, tendem a identificá-la com a
magia, considerando que ambas lidam com o misterioso, o oculto, o
incompreensível. Essa imagem da ciência como magia aparece, por exemplo, no
cinema, quando os filmes mostram os laboratórios científicos repletos de
objetos incompreensíveis, com luzes que acendem e apagam, tubos de onde saem
fumaças coloridas, exatamente como são mostradas as cavernas ocultas dos magos.
Essa mesma identificação entre ciência e magia aparece num programa da
televisão brasileira, o Fantástico, que, como o nome indica, mostra aos
telespectadores resultados científicos como se fossem espantosa obra de magia,
assim como exibem magos ocultistas como se fossem cientistas;
● costumam projetar nas coisas
ou no mundo sentimentos de angústia e de medo diante do desconhecido. Assim,
durante a Idade Média, as pessoas viam o demônio em toda a parte e, hoje,
enxergam discos voadores no espaço;
● por serem subjetivos,
generalizadores, expressões de sentimentos de medo e angústia, e de
incompreensão quanto ao trabalho científico, nossas certezas cotidianas e o
senso comum de nossa sociedade ou de nosso grupo social cristalizam-se em
preconceitos com os quais passamos a interpretar toda a realidade que nos cerca
e todos os acontecimentos.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
0 Response to "Características do senso comum"
Postar um comentário