O senso comum
O Sol é menor do que a Terra.
Quem duvidará disso se, diariamente, vemos um pequeno círculo avermelhado
percorrer o céu, indo de leste para oeste?
O Sol se move em torno da Terra,
que permanece imóvel. Quem duvidará disso, se diariamente vemos o Sol nascer,
percorrer o céu e se pôr? A aurora não é o seu começo e o crepúsculo, seu fim?
As cores existem em si mesmas.
Quem duvidará disso, se passamos a vida vendo rosas vermelhas, amarelas e
brancas, o azul do céu, o verde das árvores, o alaranjado da laranja e da
tangerina?
Cada gênero e espécie de animal já
surgiram tais como os conhecemos. Alguém poderia imaginar um peixe tornar-se
réptil ou um pássaro? Para os que são religiosos, os livros sagrados não
ensinam que a divindade criou de uma só vez todos os animais, num só dia?
A família é uma realidade natural
criada pela Natureza para garantir a sobrevivência humana e para atender à
afetividade natural dos humanos, que sentem a necessidade de viver juntos. Quem
duvidará disso, se vemos, no mundo inteiro, no passado e no presente, a família
existindo naturalmente e sendo a célula primeira da sociedade?
A raça é uma realidade natural
ou biológica produzida pela diferença dos climas, da alimentação, da geografia
e da reprodução sexual. Quem duvidará disso, se vemos que os africanos são
negros, os asiáticos são amarelos de olhos puxados, os índios são vermelhos e
os europeus, brancos? Se formos religiosos, saberemos que os negros descendem
de Caim, marcado por Deus, e de Cam, o filho desobediente de Noé.
Certezas como essas formam nossa
vida e o senso comum de nossa sociedade, transmitido de geração em geração, e,
muitas vezes, transformando-se em crença religiosa, em doutrina inquestionável.
A astronomia, porém, demonstra
que o Sol é muitas vezes maior do que a Terra e, desde Copérnico, que é a Terra
que se move em torno dele. A física óptica demonstra que as cores são ondas
luminosas de comprimentos diferentes, obtidas pela refração e reflexão, ou
decomposição, da luz branca. A biologia demonstra que os gêneros e as espécies
de animais se formaram lentamente, no curso de milhões de anos, a partir de
modificações de microorganismos extremamente simples.
Historiadores e antropólogos
mostram que o que entendemos por família (pai, mãe, filhos; esposa, marido,
irmãos) é uma instituição social recentíssima – data do século XV – e própria
da Europa ocidental, não existindo na Antiguidade, nem nas sociedades
africanas, asiáticas e americanas pré-colombianas. Mostram também que não é um
fato natural, mas uma criação sociocultural, exigida por condições históricas
determinadas.
Sociólogos e antropólogos
mostram que a idéia de raça também é recente – data do século XVIII -, sendo
usada por pensadores que procuravam uma explicação para as diferenças físicas e
culturais entre os europeus e os povos conhecidos a partir do século XIV, com
as viagens de Marco Pólo, e do século XV, com as grandes navegações e as
descobertas de continentes ultramarinos.
Ao que parece, há uma grande
diferença entre nossas certezas cotidianas e o conhecimento científico. Como e
por que ela existe?
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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