A nova ontologia: nem realismo, nem idealismo
Filósofos que vieram após
Husserl e adotaram suas idéias desenvolveram a nova ontologia. Entre esses
filósofos, dois merecem especial destaque: Martin Heidegger e o francês Maurice
Merleau-Ponty. Ambos modificaram várias das idéias de Husserl e esforçaram-se
para liberar a ontologia do velho problema deixado pela metafísica, qual seja,
o dilema do realismo e do idealismo, dilema que Husserl resolvera em favor do
idealismo pelo papel preponderante que dera à consciência ou ao sujeito do
conhecimento.
Qual o dilema posto pelo
realismo e pelo idealismo?
O realismo afirma que, se
eliminarmos o sujeito e a consciência, restam as coisas em si mesmas, a
realidade verdadeira, o ser em si.
O idealismo, ao contrário,
afirma que se eliminarmos as coisas ou o nôumeno, resta a consciência ou o
sujeito que, através das operações do conhecimento, põe a realidade, o objeto.
Heidegger e Merleau-Ponty
afirmam que as duas posições estão equivocadas e que são “erros gêmeos”,
cabendo à nova ontologia superá-los, isto é, resolver o problema
Heráclito-Parmênides, Platão-Aristóteles, medievais e modernos, Kant e Husserl.
Como resolver um problema milenar como esse e que é, afinal, a própria história
da metafísica e da ontologia?
Dizem os dois filósofos: se
eliminarmos a consciência, não sobra nada, pois as coisas existem para nós,
isto é, para uma consciência que as percebe, imagina, que delas se lembra,
nelas pensa, que as transforma pelo trabalho, etc. Se eliminarmos as coisas,
também não resta nada, pois não podemos viver sem o mundo nem fora dele; não
somos os criadores do mundo e sim seus habitantes.
Damos sentido ao mundo,
transformamos as coisas, criamos utensílios, obras de arte, instituições
sociais, mas não criamos o próprio mundo. Sem a consciência, não há mundo para
nós. Sem o mundo, não temos como conhecer nem agir. Um mundo sem nós será tudo
quanto se queira, menos o que entendemos por realidade. Uma consciência sem o
mundo será tudo quanto se queira, menos consciência humana.
A nova ontologia parte da
afirmação de que estamos no mundo e de que o mundo é mais velho do
que nós (isto é, não esperou o sujeito do conhecimento para existir), mas,
simultaneamente, de que somos capazes de dar sentido ao mundo, conhecê-lo e transformá-lo.
Não somos uma consciência
reflexiva pura, mas uma consciência encarnada num corpo. Nosso corpo não é
apenas uma coisa natural, tal como a física, a biologia e a psicologia o
estudam, mas é um corpo humano, isto é, habitado e animado por uma consciência.
Não somos pensamento puro, pois somos um corpo. Não somos uma coisa natural,
pois somos uma consciência.
O mundo não é um conjunto de
coisas e fatos estudados pelas ciências segundo relações de causa e efeito e
leis naturais. Além do mundo como conjunto racional de fatos científicos, há o
mundo como lugar onde vivemos com os outros e rodeados pelas coisas, um mundo
qualitativo de cores, sons, odores, figuras, fisionomias, obstáculos, um mundo
afetivo de pessoas, lugares, lembranças, promessas, esperanças, conflitos,
lutas.
Somos seres temporais – nascemos
e temos consciência da morte. Somos seres intersubjetivos – vivemos na
companhia dos outros. Somos seres culturais – criamos a linguagem, o trabalho,
a sociedade, a religião, a política, a ética, as artes e as técnicas, a
filosofia e as ciências.
O que é, pois, a realidade? É
justamente a existência do mundo material, natural, ideal, cultural e a nossa
existência nele. A realidade é o campo formado por seres ou entes diferenciados
e relacionados entre si, que possuem sentido em si mesmos e que também recebem
de nós outros e novos sentidos. A realidade ou o Ser não é o Objeto-Coisa, sem
a consciência. Mas, também, não é o Sujeito-Consciência, sem as coisas e os
outros. A realidade ou o Ser é o cruzamento e a diferenciação entre o sensível
e o inteligível, entre o material-natural e o ideal-cultural, entre o qualitativo
e o quantitativo, entre o fato e o sentido, entre o psíquico e o corporal, etc.
O que estuda a ontologia? Os
entes ou seres antes que sejam investigados pelas ciências, e depois que se
tornaram enigmáticos para nossa vida cotidiana. Em outras palavras, os entes ou
os seres antes de serem transformados em conceitos das ciências e depois que
nossa experiência cotidiana sofreu o espanto, a admiração e o estranhamento de
que eles sejam como nos parecem ser, ou não sejam o que nos parecem ser.
A ontologia estuda as essências
antes que sejam fatos da ciência explicativa e depois que se tornaram estranhas
para nós.
Digo, por exemplo, “Vejo esta
casa vermelha, próxima da azul”. A ontologia indaga: O que é ver, qual a
essência da visão? O que é uma casa ou qual a essência da habitação? Que é
vermelho ou azul ou qual é a essência da cor? Que é ver cores? O que é a cor?
Pergunto, por exemplo, “Que
horas são?”. A ontologia indaga: O que é o tempo? Qual a essência da
temporalidade?
Pedro fala: “A cidade já está
perto”. A ontologia indaga: O que é o espaço? Qual é a essência da
espacialidade? Que é perto e longe? Que é distância?
Antônio diz a Paulo: “Aquelas
duas árvores são idênticas, mas a terceira é diferente”. A ontologia indaga: O
que é identidade? E a diferença? O que é “duas” e “terceira”? Ou seja, o que é
o número?
Ana me diz: “Ouvi uma música
belíssima, não essa coisa feia que você está escutando”. A ontologia indaga: O
que é a beleza e a feiúra? Existem o belo em si e o feio em si, ou beleza e
feiúra são avaliações e valores que atribuímos às coisas? O que é um valor?
Cecília conta a Joana: “Pedro
realizou um ato generoso, protegendo a criança, mas Eugênia foi egoísta ao não ajudá-lo”.
A ontologia indaga: O que é a generosidade ou o egoísmo? Existem em si e por si
mesmos ou são avaliações que fazemos das ações humanas? O que é uma virtude? O
que é um vício? O que é um valor?
Como se observa, a ontologia
investiga a essência ou sentido do ente físico ou natural, do ente psíquico,
lógico, matemático, estético, ético, temporal, espacial, etc. Investiga as
diferenças e as relações entre eles, seu modo próprio de existir, sua origem,
sua finalidade. O que é o mundo? O que é o eu ou a consciência? O que é o
corpo? O que é o outro? O que é o espaço-tempo? O que é a linguagem? O que é o
trabalho? A religião? A arte? A sociedade? A história? A morte? O infinito? Eis
as questões da ontologia.
Recupera-se, assim, a velha
questão filosófica: “O que é isto que é?”, mas acrescida de nova questão: “Para
quem é isto que é?”. Volta-se, pois, a buscar o to on, o Ser ou a
essência das coisas, dos atos, dos valores humanos, da vida e da morte, do
infinito e do finito. A pergunta “O que é isto que é?” refere-se ao modo de ser
dos entes naturais, artificiais, ideais e humanos; a pergunta “Para quem é isto
que é?” refere-se ao sentido ou à significação desses entes.
Tomemos um exemplo para nos
ajudar a compreender o modo de pensar da ontologia. Acompanhemos, brevemente, o
estudo de Merleau-Ponty sobre a essência ou o ser do tempo e a essência ou o
ser do nosso corpo.
O que é o tempo?
Estamos acostumados a considerar
o tempo como uma linha reta, feita da sucessão de instantes, ou como uma
sucessão de “agoras” – um “agora” que já foi é o passado, o “agora” que está
sendo é o presente, um “agora” que virá é o futuro.
A metafísica realista usa,
freqüentemente, a imagem do rio para representar o tempo como algo que passa
sem cessar: a nascente é o passado, o lugar onde me encontro é o presente, a
foz é o futuro. Há dois enganos nessa imagem. Em primeiro lugar, trata-se de
uma imagem espacial para referir-se ao que é temporal, isto é,
pretende explicar a essência do tempo (o escoamento) usando a essência do
espaço (a sucessão de pontos). Em segundo lugar, a imagem do rio não
corresponde ao escoamento do tempo. Para que correspondesse, precisaria estar
invertida, pois a água que está na nascente é aquela que ainda não passou pelo
lugar onde estou e, portanto, ela é, para mim, o futuro e não o passado; a água
que está na foz é aquela que já passou pelo lugar onde estou e, portanto, para
mim, é o passado e não o futuro.
Tentando evitar os enganos do
realismo, a metafísica idealista dirá que o tempo é a forma do sentido interno,
isto é, uma forma criada pelo sujeito do conhecimento ou pela consciência reflexiva
para organizar a experiência subjetiva da sucessão. O tempo não existe, mas é
uma identidade produzida pela razão, um conceito subjetivo para estruturar o
que é experimentado como sucessivo.
Um novo engano acaba de ser
cometido. Se o tempo for uma forma ou um conceito produzido pela consciência
reflexiva ou pelo sujeito para organizar a sucessão, não haverá sucessão a
organizar, pois a consciência reflexiva ou o sujeito do conhecimento opera
sempre e exclusivamente com o que é atual, com o que está dado presentemente ao
pensamento. Para a reflexão só existe a simultaneidade e a sucessão se reduz a
uma experiência psicológica ou empírica, ao sentimento de que há um “antes” e
um “depois”, tais palavras indicando o modo como nos referimos à lembranças e
expectativas pessoais.
Indaguemos, porém, o que é
vivenciar o próprio tempo.
Quando vivencio o meu presente,
ele se apresenta como uma situação na qual sinto, faço, digo, penso coisas,
atuo de várias maneiras e tenho experiência de uma situação aberta, isto é, na
qual muitas coisas são possíveis para mim, muitas coisas podem acontecer.
Quando rememoro meu passado, percebo que entre ele e o meu presente há uma
diferença: quando ele era o meu presente, também estava aberto a muitas
possibilidades, mas somente algumas se realizaram. Por isso, o passado lembrado
não é uma situação aberta como o presente, mas fechada, terminada. Assim, meu
passado não é simplesmente o que veio antes do meu presente, mas algo
qualitativamente diferente do presente: este é aberto, aquele, fechado.
Quando imagino meu futuro,
antevejo, a partir das possibilidades abertas em meu presente, como seria se
certas possibilidades se concretizassem e se outras não se realizassem. Meu
futuro não é simplesmente o que vem depois do meu presente, mas algo
qualitativamente diferente do presente: é o que poderá ser, se as aberturas do
meu presente se concretizarem e, portanto, se o que, hoje, está aberto ou em
suspenso, estiver, amanhã, fechado e realizado.
Meu passado e meu futuro nunca
são os mesmos. Cada vez que me lembro do meu passado, eu o faço a partir do meu
presente e, cada vez, este é diferente, fazendo-me recordar de maneiras
diversas o que passou. Cada vez que imagino meu futuro, eu o faço a partir de
meu presente, que, sendo sempre diferente, imagina diferentemente o futuro. Não
revivo o passado, mas o rememoro tal como sou hoje em meu presente. Não vivo o
meu futuro, mas o imagino tal como sou hoje em meu presente. O presente é uma
contração temporal que arranca o passado do esquecimento e abre o futuro para o
possível. O passado e o futuro são dilatações temporais, distorções do
presente.
Que é lembrar? É captar no
contínuo temporal uma diferença real entre o que estou vivendo no
presente e o que estou vivenciando do passado. Que é esquecer? É perder a
fisionomia ou o relevo de um momento do passado. Que é esperar? É buscar no
contínuo temporal uma diferença possível entre o que estou vivendo e o
que estou vivenciando do futuro.
O que é o tempo?
Em primeiro lugar, é um
escoamento interno e externo, um fluir contínuo, que vai produzindo diferenças
dentro de si mesmo. Em segundo lugar, é uma contração e uma dilatação de si
mesmo, um juntar-se a si mesmo e consigo mesmo (na lembrança) e um expandir-se
a si mesmo e consigo mesmo (na esperança). O tempo é a produção da identidade e
da diferença consigo mesmo e, nesse sentido, é uma dimensão do meu ser (não
estou no tempo, mas sou temporal) e uma dimensão de todos os
entes (não estão no tempo, mas são temporais).
O tempo não é um receptáculo de
instantes, não é uma linha de momentos sucessivos, não é a distância entre um
“agora”, um “antes” e um “depois”, mas é o movimento interno dos entes para
reunirem-se consigo mesmos (o presente como centro que busca o passado e o
futuro) e para se diferenciarem de si mesmos (o presente como diferença
qualitativa em face do passado e do futuro). O Ser é tempo.
O que é nosso corpo? Qual sua
essência?
A física dirá que é um agregado
de átomos, uma certa massa e energia, que funciona de acordo com as leis gerais
da Natureza. A química dirá que é feito de moléculas de água, oxigênio,
carbono, de enzimas e proteínas, funcionando como qualquer outro corpo químico.
A biologia dirá que é um organismo vivo, um indivíduo membro de uma espécie
(animal, mamífero, vertebrado, bípede), capaz de adaptar-se ao meio ambiente
por operações e funções internas, dotado de um código genético hereditário, que
se reproduz sexualmente. A psicologia dirá que é um feixe de carne, músculos,
ossos, que formam aparelhos receptores de estímulos externos e internos e
aparelhos emissores de respostas internas e externas a tais estímulos, capaz de
ter comportamentos observáveis.
Todas essas respostas dizem que
nosso corpo é uma coisa entre as coisas, uma máquina receptiva e ativa que pode
ser explicada por relações de causa e efeito, suas operações são observáveis
direta ou indiretamente – podendo ser examinado em seus mínimos detalhes nos
laboratórios, classificado e conhecido. Nosso corpo, como qualquer coisa, é um
objeto de conhecimento.
Porém, será isso o corpo que é nosso?
Meu corpo é um ser visível no
meio dos outros seres visíveis, mas que tem a peculiaridade de ser um visível
vidente: vejo, além de ser vista. Não só isso. Posso me ver, sou visível para
mim mesma. E posso me ver vendo.
Meu corpo é um ser táctil como
os outros corpos, podendo ser tocado. Mas também tem o poder de tocar, é
tocante; e é capaz de tocar-se, como quando minha mão direita toca a esquerda e
já não sabemos quem toca e quem é tocado.
Meu corpo é sonoro como outros
corpos, como os cristais e os metais; pode ser ouvido. Mas tem o poder de
ouvir. Mais do que isso, pode fazer-se ouvir e pode ouvir-se quando emite sons.
Do fundo da garganta, passando pela língua e pelos dentes, com os movimentos de
meus lábios transformo a sonoridade em sentido, dizendo palavras. Ouço-me
falando e ouço quem me fala. Sou sonora para mim mesma.
Meu corpo estende a mão e toca
outra mão em outro corpo, vê um olhar, percebe uma fisionomia, escuta uma outra
voz: sei que diante de mim está um corpo que é meu outro, um outro humano
habitado por consciência e eu o sei porque me fala e, como eu, seu corpo produz
palavras, sentido.
Visível-vidente, táctil-tocante,
sonoro-ouvinte/falante, meu corpo se vê vendo, se toca tocando, se escuta
escutando e falando. Meu corpo não é coisa, não é máquina, não é feixe de
ossos, músculos e sangue, não é uma rede de causas e efeitos, não é um
receptáculo para uma alma ou para uma consciência: é meu modo fundamental de
ser e de estar no mundo, de me relacionar com ele e dele se relacionar comigo.
Meu corpo é um sensível que sente e se sente, que se sabe sentir e se sentindo.
É uma interioridade exteriorizada e uma exterioridade interiorizada. É esse o
ser ou a essência do meu corpo. Meu corpo tem, como todos os entes, uma
dimensão metafísica ou ontológica.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
0 Response to "A nova ontologia: nem realismo, nem idealismo"
Postar um comentário