"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)
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O desafio do Islã - a esfinge da modernidade (Parte 06/06)


Um caminho próprio

É interessante ler o que pensa a respeito o atual presidente do Irã, Mohammad Khatami. Politicamente reformista e intelectualmente sofisticado, Khatami é, no entanto, um xiita devoto, clérigo e filho de um dos mais ilustres aiatolás do país. "Uma das principais dificuldades da comunidade de fiéis", afirmou, "é que, de um lado, eles assumem certas realidades como absolutas, transcendentes e sagradas, e, de outro, já que eles mesmos são relativos, enxergam tudo através do prisma da relatividade de suas próprias mentes e corpos. À medida que reconheçam suas limitações e a raiz dessa contradição, seus problemas internos não criarão uma catástrofe. O mal-estar mais agudo entre os fiéis surge quando as interpretações humanas da religião, falíveis e limitadas pelo tempo e pelo espaço, arrogam a si mesmas o caráter absoluto e sagrado da religião, de tal modo que os preceitos de uns poucos passam a ser vistos como a própria religiosidade. Só é considerado fiel, então, aquele que adere a essa visão específica. Muitos conflitos têm aqui suas raízes."
Apontando a necessidade de diferenciar o núcleo perene da religião das formas históricas e necessariamente transitórias das quais ele se reveste, as palavras de Khatami ecoam o pensamento de grandes místicos do passado, como Ibn Árabi (1165-1240) e Mulla Sadra (1571-1637). A incapacidade de operar essa diferenciação, que o faz atribuir às formas transitórias um caráter absoluto e imutável, é que constitui a tragédia perversão do fundamentalismo.
O próprio Islã já desenvolveu, ao longo dos séculos, o antídoto contra esse veneno. Mas os conselhos prudentes de seus sábios encontram-se hoje silenciados pela gritaria ensurdecedora de uma minoria de fanáticos. Cabe a pensadores do porte de um Khatami e tantos outros resgatar esse precioso legado e, com base nele, separar o joio do trigo em matéria religiosa. Só desta forma, mantendo-se fiéis àquilo que mais profundamente os caracteriza, e sem virar as costas para o Ocidente, mas também sem cair de joelhos diante dele, os muçulmanos conseguirão decifrar a esfinge da modernidade e projetar seu próprio futuro.

O desafio do Islã - a esfinge da modernidade (Parte 05/06)


Desastrosas orquestrações norte-americanas

No contexto da bipolaridade e do confronto entre as duas superpotências, Estados Unidos e União Soviética, movimentos de caráter secularista, como o panarabismo de Nasser, receberam forte impulso, identificando-se vaga e impropriamente com o ideário socialista. Mas o fundamentalismo muçulmano não estava morto.
Ele ressurgiria com força, impulsionado tanto por fatores endógenos às sociedades em que se manifestava, como foi o caso da Revolução Islâmica no Irã, quanto pelo ostensivo patrocínio da administração norte-americana, como se deu com o Taliban afegão e a própria rede Al Qaeda, de Osama bin Laden. Agindo como o desastrado aprendiz de feiticeiro, que desencadeia forças que depois não consegue controlar, os estrategistas de Washington cometeram toda a sorte de desatinos em sua política para o Oriente Médio, das orquestrações que provocaram a queda do governo nacionalista de Mossadeg no Irã à sustentação do reinado de terror de Saddam Hussein no Iraque.
Sua mais imprudente ilusão, talvez, tenha sido acreditar que, promovendo o fundamentalismo, estariam colocando uma pedra no caminho dos russos e conquistando um dócil aliado para seu projeto hegemonista. A criatura obviamente se voltou contra o criador, com todas as conseqüências que presenciamos hoje.
Explorando o secular ressentimento produzido pela opressão colonialista e as maquinações das grandes potências, a humilhação resultante de quatro derrotas militares ante Israel e o vácuo ideológico decorrente do colapso do modelo soviético, o fundamentalismo configura-se, aos olhos dos segmentos menos cultos da população, especialmente de uma juventude carente de horizontes, como uma espécie de última esperança. Trágica opção, que só faz alimentar uma insana e infecunda espiral de violência. Quer motivada pela simples ignorância quer guiada por inconfessáveis compromissos econômicos e políticos, a grande mídia ocidental esmera-se em embaralhar o quadro, estendendo a pecha do fanatismo religioso ao conjunto da comunidade muçulmana.

O desafio do Islã - a esfinge da modernidade (Parte 04/06)


A desagregação causada pelo colonialismo

A inglesa Karen Armstrong estuda esses personagens em seu livro Em nome de Deus. E aponta corretamente que seus generosos projetos reformistas - quer se pautassem por uma imitação do modelo ocidental de caráter laicizante, quer buscassem modernizar suas sociedades a partir do resgate dos valores tradicionais do Islã - estavam necessariamente fadados ao fracasso. Pois, não dispondo de um lastro nas infra-estruturas econômicas dos países, apenas arranhavam suas superestruturas. No Ocidente, as ideologias da modernidade assumiram formas maduras apenas quando o modo de produção capitalista já se havia infiltrado profundamente no tecido econômico, modificando as relações sociais. No Oriente, agrário e pré-capitalista, a modernidade era uma idéia fora de lugar.
Ademais, não houve tempo para reformas. O colonialismo tinha pressa e, antes que idéias reformistas nos âmbitos da justiça, da educação e da cultura pudessem frutificar, impôs aos países dominados sua avassaladora presença.
Esta presença não se limitava ao olhar desdenhoso de velhos diplomatas esnobes, ao sorriso sarcástico de jovens funcionários ambiciosos, à construção de clubes e bairros interditados aos habitantes autóctones. Muito mais impactante, implicava na drenagem insaciável de matérias-primas; no dilúvio de produtos manufaturados metropolitanos, que arruinavam as indústrias artesanais locais; na dissolução de instituições de venerável antiguidade; na formação de uma nova classe média "nativa", ocidentalizada, subserviente, vulgar e corrupta, que minava a auto-imagem das sociedades tradicionais.
Os países islâmicos ainda não superaram o trauma desse processo desagregador. Mais de um século de história não conseguiram exorcizar os fantasmas do passado. Demasiado tardias, ocorrendo já quando o capitalismo hegemônico ingressara em sua etapa monopolista e as burguesias haviam perdido seu potencial revolucionário, suas tentativas modernizadoras revestiram-se de formas autoritárias e foram incapazes de produzir sociedades autenticamente democráticas e modernas. Isso vale tanto para as iniciativas de Kemal Ataturk, na Turquia, quanto para as de Gamal Abdel Nasser, no Egito, e as do xá Reza Pahlevi, no Irã.

O desafio do Islã - a esfinge da modernidade (Parte 03/06)

Mesquita central de Londres

O insaciável apetite capitalista

Enquanto as nações européias emergentes trilhavam o caminho da acumulação capitalista e da industrialização, o território otomano, apegado à renda da terra, permanecia essencialmente agrário. No século XIX, como um grande animal moribundo, devorado ainda em vida por predadores, o Império foi sendo despojado de suas províncias pelos ingleses, franceses e russos. A funesta aliança com a Alemanha e a Áustria-Hungria, durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), precipitou o seu fim. Terminado o conflito, tendo os russos se retirado da guerra após o triunfo da revolução socialista de 1917, a Inglaterra e a França, grandes vitoriosas, repartiram entre si o botim.
Com o colapso de seus dois grandes impérios, o Mughal e o Otomano, o mundo islâmico defrontou-se, na segunda metade do século XIX e início do século XX, com o apetite insaciável das potências capitalistas emergentes. Para mencionarmos apenas os territórios com maioria ou expressiva presença muçulmana, a Inglaterra apossou-se da Índia, Kuwait, Bahrein, Qatar, Oman, Aden, Iraque, Transjordânia, Palestina, Egito, Sudão, Somália, Nigéria e obteve importantes concessões petrolíferas na Pérsia, com a criação da Anglo Persian Oil Company, em 1909. Considerando o mesmo critério, o Império Colonial Francês estendeu-se sobre parte da Turquia, Síria, Líbano, Tunísia, Argélia, Marrocos, Mauritânia, Senegal, Mali, Níger, Chad, Djibuti, Costa do Marfim, Benin, Camarões e Madagascar. A Indonésia, hoje o país com a maior população islâmica, ficou sob domínio holandês.
As primeiras e precoces respostas muçulmanas ao desafio colonial foram movimentos armados de caráter tradicionalista, como a rebelião do emir argelino e mestre sufi Abd El-Kader contra o colonialismo francês, em meados do século XIX. Ou a revolta sudanesa ocorrida décadas mais tarde, na qual, à frente de 100 mil homens em armas e afirmando ser o Mahdi - o "Guia Divinamente Guiado" prometido pela escatologia islâmica -, Muhammad Ahmad impôs dura derrota aos colonialistas britânicos.
A propaganda colonialista demonizou esses líderes, mas sua grandeza seria reconhecida até mesmo pelos europeus. A nobreza de seus ideais, o poder de arregimentação de suas prédicas e a inteligência de suas táticas militares revelaram-se impotentes, porém, frente à superioridade econômica e tecnológica do adversário. Não surpreende que, na geração seguinte, um novo tipo de liderança, admirada com as conquistas materiais da modernidade ocidental, surgisse nas sociedades muçulmanas.

O desafio do Islã - a esfinge da modernidade (Parte 02/06)


Fanatismo religioso versus tolerância

Importantes pensadores muçulmanos da atualidade afirmam que toda a riqueza de sua religião pode ser sintetizada em três afirmações fundamentais: só Deus sabe; só Deus possui; só Deus comanda. Esses princípios relativizam o conhecimento, a propriedade e o poder, permitindo-nos diferenciar o núcleo perene da fé das formas transitórias por ele assumidas. Quando se perde o contato com tais princípios, porém, isto é, quando os homens passam a se arvorar o direito divino de saber, possuir e comandar, essas formas transitórias adquirem o status de valores imutáveis, os aspectos circunstanciais da religião transformam-se em dogmas, e a crença viva degenera-se naquela doutrina exclusivista e fanática erroneamente chamada de fundamentalismo. A denominação é essencialmente incorreta, porque não há nada mais distante da vitalidade fundamental das religiões do que essas estruturas fossilizadas.
As duas principais estruturas políticas da civilização muçulmana tardia, o Império Mughal, na Índia, e o Império Otomano, na Europa Oriental e no Oriente Médio, foram minadas por sua incapacidade de acolher o diferente e absorver mudanças. A trajetória do Império Mughal é mais fácil de compreender. Seu declínio está intimamente associado ao fanatismo religioso de Aurangzeb, filho do célebre Shah Jahan, o construtor do Taj Mahal.
Contrastando com a visão grandiosa e magnânima de seu bisavô, o grande Akbar, que liberou a maioria hindu da obediência à legislação muçulmana e fez da Índia um raro exemplo de tolerância religiosa, acolhendo em sua própria corte sábios hindus, budistas e cristãos, Aurangzeb pautou-se por um fundamentalismo míope e mesquinho, impondo a Sharia, a lei islâmica, ao conjunto da população. Sob seu comando, milhares de templos e santuários hindus foram destruídos; a maioria hindu foi oprimida com impostos extorsivos; e guerras de rapina foram travadas contra os reinos hindus do sul.
O império alcançou o ápice de seu poderio militar, mas a energia criadora que produzira sua cultura luxuriante se esvaiu. Os imperadores que o sucederam logo se tornaram meros marionetes dos ingleses e franceses. E o último deles foi deposto pelos britânicos em 1858.
A trajetória do Império Otomano foi mais complexa e sua decadência, causada tanto pelo "fundamentalismo" religioso quanto por ingredientes não-muçulmanos incorporados à sua estrutura política. No rol desses ingredientes, três instituições foram especialmente aberrantes: a dos janízaros, a do fratricídio e a do harém. Detenhamo-nos um pouco nelas:
Janízaros - Este corpo de combatentes de elite era formado por filhos de cristãos, seqüestrados de suas famílias e transformados em escravos. Convertidos ao islamismo e submetidos a uma completa lavagem cerebral e a uma rígida disciplina militar, os meninos cresciam como guerreiros fanáticos, capazes de dar a vida pelo sultão.
Fratricídio - Para impedir o fracionamento do Império, devido à luta pelo poder entre os príncipes herdeiros, o sultão Selim introduziu um sistema drástico. Toda vez que um sultão ascendia ao trono, seus irmãos eram feitos prisioneiros. E executados, assim que o monarca tinha seu primeiro filho homem. O bárbaro procedimento, repetido de geração em geração, foi atenuado nos últimos tempos do Império, quando a execução se transformou em prisão perpétua.
Harém - Era no harém, cujo número de cuncubinas freqüentemente excedia a mil, que o sultão dissipava seu tempo e energia. Além de desviar a atenção do governante dos assuntos de Estado, a instituição constituía um ônus para o Tesouro, pois as famílias das infelizes mulheres, recrutadas nos quatro cantos do Império, recebiam expressivas compensações materiais. O único contingente masculino permanente no palácio real de Topkapi era constituído por eunucos. Apesar de seu poder absoluto, o próprio sultão era um virtual prisioneiro desse sistema insano, sendo obrigado a mudar de quarto toda a noite para preservar-se de eventuais atentados.
Esses três elementos não apenas eram estranhos aos costumes muçulmanos como constituíam uma afronta à piedade islâmica. Mas foi por meio deles que o Ocidente formou, ao longo de séculos, sua imagem deturpada do Islã. Quanto à própria civilização otomana, sua pujança inicial, alicerçada na ampla liberdade conferida à maioria cristã e na atração de comerciantes judeus, estagnou-se paulatinamente devido à rigidez das instituições.
Após governos brilhantes, como os de Mehmet II (que conquistou Constantinopla em 1453) e de Suleiman, o Magnífico (que reinou de 1520 a 1566, anexando os Bálcãs e a Hungria e levando suas tropas até os muros de Viena), o Império entrou em uma longa e dolorosa decadência, que faria com que os ocidentais o denominassem "o Homem Doente da Europa".

O desafio do Islã - a esfinge da modernidade (Parte 01/06)


O Ocidente é filho da civilização islâmica. Seja como transmissores do legado cultural da Antigüidade, seja por suas contribuições próprias, foram os grandes místicos, filósofos, cientistas e artistas muçulmanos que forneceram à Europa a massa crítica de conhecimentos responsável por seu primeiro renascimento cultural (séculos XI,XII e XIII), tão ou mais importante do que o segundo (séculos XIV, XV e XVI).
Hoje, no entanto, o mundo muçulmano encontra-se notavelmente defasado em relação às conquistas materiais do Ocidente e mantém com este um relacionamento tenso, quando não hostil. Enquanto países como a China, a Índia e até mesmo o Brasil procuram superar o atraso e conquistar seu espaço na modernidade, as nações islâmicas parecem patinar em uma estagnação sem perspectivas. Por quê?
A pergunta não é simples. E uma resposta razoavelmente consistente demandaria o esforço coletivo e concentrado de toda uma equipe multidisciplinar. Limitamo-nos a esboçar um ou outro tópico, eventualmente úteis para as pesquisas dos leitores.
Se existe uma lei comum aos fenômenos naturais e históricos, esta é a lei da impermanência. Estruturas se formam, desenvolvem-se, alcançam um ápice e depois sucumbem, em morte súbita ou longo declínio. É difícil precisar o momento em que a civilização islâmica perdeu o élan. Mas um exemplo que, apesar de sua precocidade, já contém as principais variáveis do processo pode ser encontrado em época tão recuada quanto o século XII, quando a Andaluzia muçulmana foi invadida por berberes provenientes do norte da África.
O refinado modelo civilizatório desenhado séculos antes pela dinastia omíada, que propiciava ampla liberdade de pensamento e a coexistência pacífica de muçulmanos, cristãos e judeus, foi então tragicamente substituído pelo exclusivismo fanático dos almôades, que professavam uma versão deturpada da religião de Muhammad. Sua intolerância intimidou os intelectuais e dividiu a população, abrindo caminho para as vitórias militares cristãs. Embora a proeminência muçulmana ainda devesse subsistir por longo tempo, os fatores de seu declínio já estavam desde então atuantes. E eram protagonizados por aqueles que, em nome do Islã, privavam o Islã de sua vitalidade.

Escrito por José Tadeu Arantes.
Portal Ática Educacional

O desafio do Islã – a doutrina e o legado muçulmano (Parte 06/06)


Fim de um ciclo, novas divergências

Com a morte de Ali, encerrou-se o ciclo dos "quatro califas corretamente guiados", conforme o denomina a tradição muçulmana. Aproveitando o vácuo de poder, Yazid, o filho de Muawiya, apossou-se do califado em 680. Hassan, o primogênito de Ali, não se opôs à usurpação. Mas seu irmão mais novo, Hussein, levantou-se em armas. Apesar da desproporcional inferioridade numérica, Hussein combateu heroicamente as forças de Yazid, porém a vitória coube a seus adversários. Massacrado na Planície da Karbala, no Iraque, juntamente com seus familiares e partidários, a cabeça de Hussein foi decepada e levada na ponta da lança pelos vencedores, como um presente a Yazid.
O martírio de Hussein, filho de Ali e Fátima e neto do profeta Muhammad, marca a ruptura definitiva da ummah e constitui um acontecimento central no imaginário xiita. Milhões de fiéis o revivem a cada ano, no apavorante espetáculo da Ashura, quando se flagelam até ficar com as vestes empapadas de sangue. O túmulo de Hussein, na cidade de Karbala, tornou-se, depois de Meca, um dos mais sagrados locais de peregrinação do xiismo. Ele é hoje o epicentro da oposição xiita à presença norte-americana no Iraque.
Por meio de Yazid, os omeidas ou omíadas, como são designados os familiares de Muawiya, passaram a reinar sobre os territórios sunitas, constituindo uma dinastia profana, cujo passado sangrento foi paulatinamente esquecido graças ao refinamento cultural. Quanto aos xiitas, continuaram conferindo aos seus dirigentes uma liderança tanto política quanto religiosa. Embora as duas facções concordem em considerar Muhammad o último dos profetas de Deus, os xiitas atribuem aos seus primeiros líderes, os imans, um especial carisma ou inspiração divina.
A principal seita do xiismo cultua uma lista de 12 imans, daí ser denominada duodecimalista. A começar por Ali, são os seguintes os integrantes da lista:
1. Ali ibn Abu Talib
2. Hassan ibn Ali
3. Hussein ibn Ali
4. Ali ibn al-Hassan
5. Muhammad al-Bakir
6. Jafar al-Sadik
7. Musa al-Kazim
8. Ali al-Riza
9. Muhammad Jawad al-Taki
10. Ali al-Naki
11. Al-Hassan al-Askari
12. Muhammad al-Muntazar al-Mahdi

Muhammad al-Muntazar al-Mahdi, o 12º iman, desapareceu das vistas humanas no ano 878. Esse fato recebe na terminologia xiita o nome de "ocultação". Os duodecimalistas acreditam que ele não morreu, mas ocultou-se do mundo em um espaço intermediário entre o Céu e a Terra. De lá, juntamente com os 11 imans anteriores, continuaria inspirando os líderes religiosos (aiatolás) e, por meio deles, interferindo nos assuntos terrenos, à espera do momento em que tornaria a se revelar. A volta de Al-Mahdi, o "Iman Oculto" ou o "Guia Divinamente Guiado", prepararia o terreno para o retorno de Jesus e o Juízo Final - um tema central da escatologia muçulmana.

O desafio do Islã – a doutrina e o legado muçulmano (Parte 05/06)

Principais ramos do Islã: sunitas e xiitas

O desafio do Islã - sunitas e xiitas

Quando Muhammad morreu, em 632, a ummah, a comunidade muçulmana, polarizou-se em relação à escolha de seu sucessor (khalifa, em árabe). A ala majoritária pendeu para o lado de Abu Bakr, o amigo e discípulo que acompanhou o profeta na fuga para Medina e pai de sua esposa favorita, Aisha. Mas uma minoria expressiva indicou o nome de Ali, primo, segundo discípulo (depois de Khadija) e esposo de Fátima, a única sobrevivente dos filhos de Muhammad. No grupo menor, havia quatro indivíduos que passaram a chamar a si mesmos de Shiat Ali, "Partidários de Ali". Esta expressão daria origem ao termo "xiita". A palavra "sunita", reivindicada pelos membros do agrupamento maior, deriva de sunna, que designa aquilo que o profeta disse ou fez.
A disputa não envolvia apenas, nem principalmente, a liderança espiritual. Havia poderosos interesses políticos em jogo. Por ocasião da morte de Muhammad, o Islã já havia se disseminado por toda a Península Arábica, englobando uma população de aproximadamente 100 mil pessoas. Evidentemente, ambas as facções procuravam legitimar seu ponto de vista com base nas Escrituras, recorrendo ao Corão e aos Hadit (a coleção de frases atribuídas ao profeta) para provar o acerto de suas escolhas.
Abu Bakr terminou sendo eleito. Mas Ali levou alguns meses até jurar-lhe lealdade. A reivindicação de seus partidários baseava-se na suposição de que a Baraka, a benção ou graça espiritual recebida pelos profetas, se transmitia prioritariamente aos membros de suas próprias famílias, conferindo-lhes um especial status de nobreza. Sendo Fátima a única descendente viva de Muhammad, era por meio dela que se perpetuaria sua linhagem. E, no contexto de uma sociedade patriarcal, cabia ao seu marido o direito ao califado. A reconciliação de Ali e Abu Bakr não pôs fim às divergências.
Antes de falecer, Abu Bakr nomeou Umar seu sucessor. Líder inato e mais valoroso comandante militar do Islã, Umar ibn al-Khattab era o pai de Hafsa, outra esposa do profeta. Sob suas ordens, os muçulmanos conquistaram a Palestina, a Síria, o Egito e a Pérsia. Por ocasião de sua morte, mais uma vez Ali foi preterido, recaindo a escolha sobre Uthman. Também chamado de Dhu al-Nurayn, "Possuidor das Duas Luzes", referência ao fato de ter desposado duas filhas do profeta (primeiro Ruqayya e depois Umm Kulthum), Uthman foi responsável pelo estabelecimento do texto oficial do Corão, adotando como corretas as anotações guardadas por Hafsa e destruindo as versões divergentes.
Sua ascensão ao califado suscitara muita oposição no seio da ummah. E Uthman acabou sendo assassinado por rebeldes egípcios. Quando isso ocorreu, Ali entendeu que sua hora havia finalmente chegado e reclamou o poder para si. Porém sua reivindicação foi contestada pelo governador da Síria, Muawiya, um membro da família de Uthman, que acusou Ali de omissão diante dos assassinos de seu parente. Muawiya recebeu o apoio de Aisha, a esposa favorita do profeta.
Na Batalha do Camelo, em 656, Aisha foi derrotada por Ali. E mais tarde lhe pediu perdão. Mas as contradições provocaram, no ano seguinte, um novo conflito armado, a Batalha de Siffin, que opôs as forças de Ali às de Muawiya. Tendo o combate revelado-se inconclusivo, Ali e Muawiya concordaram em por fim à disputa com a ajuda de árbitros estrangeiros. Esse arranjo talvez tivesse conseguido salvar a unidade da ummah. Porém um grupo de seguidores radicais de Ali, os kharijitas, opôs-se à arbitragem, com base no versículo do Corão que afirma "A decisão cabe a Allah, somente". Considerando Ali um traidor, os kharijitas o assassinaram em 661, enquanto ele rezava na mesquita de Kufa, no Iraque.

O desafio do Islã – a doutrina e o legado muçulmano (Parte 04/06)

Al-Farabi, o primeiro e mais influente dos pensadores islâmicos.

O precioso legado muçulmano

Na imensa constelação dos sábios muçulmanos, há que se destacar ainda um punhado de nomes:
- Jabir (século VIII), o maior mestre da alquimia, autor de uma obra imensa, na qual descreveu as principais operações químicas;
- Al-Farabi (872-950), místico, filósofo, matemático e médico, primeiro grande comentador da obra de Aristóteles;
- Al-Battani (877-929), matemático e astrônomo, que lançou as bases da moderna trigonometria ao substituir o sistema grego de cordas de ângulos pelas noções de seno e co-seno;
- Al-Sufi (século X), autor de famoso tratado sobre as estrelas fixas;
- Avicena (980-1037), gênio universal, autor de uma vasta enciclopédia das ciências e práticas médicas que foi, durante seis séculos, a bíblia dos estudantes de medicina europeus;
- Al-Biruni (século XI), filósofo, matemático, astrônomo, físico, geógrafo, historiador e poeta, que calculou com grande precisão o raio do globo terrestre;
- Omar Khayyam (1040-1114), poeta sufi, autor do célebre Rubaiyat, e também matemático e astrônomo, tendo proposto uma solução parcial para as equações de terceiro grau;
- Averróes (1126-1198), o principal comentador de Aristóteles, que influenciou profundamente toda a filosofia escolástica medieval, tanto islâmica quanto cristã e judaica;
- Ibn Árabi (1165-1240), o maior místico do Islã e também seu escritor mais prolixo, ao qual são atribuídas nada menos do que 270 obras;
- Ibn Batuta (m. 1377), viajante incansável, cujos relatos constituem excelente fonte documental sobre sua época;
- Ibn Khaldun (1332-1406), letrado e jurista, que deu à história o status de ciência independente.
Fundada por um profeta que não sabia ler nem escrever, a civilização muçulmana produziu uma das mais extraordinárias sínteses culturais da história, integrando em um corpo único toda a sabedoria do mundo antigo e acrescentando-lhe contribuições profundamente originais. O fervor suscitado pela mensagem muhammadiana submeteu ao Islã uma enorme extensão do planeta - da Espanha às fronteiras da China. Em muitos territórios, os conquistadores árabes repisaram caminhos trilhados pelos exércitos de Alexandre, o Grande. Séculos de intensas trocas haviam produzido nesse mundo helenizado um extraordinário amálgama cultural, trabalhado e retrabalhado por sucessivas gerações. Nele se interpenetraram e combinaram ingredientes místicos e filosóficos, científicos e artísticos, tecnológicos e artesanais, políticos e administrativos de todas as grandes culturas da Antigüidade: egípcia, síria, judaica, mesopotâmica, persa, grega, romana, indiana e até chinesa. Tal foi a herança que permitiu aos sábios muçulmanos produzirem uma civilização de extraordinário vigor. Mas, para que todos esses componentes se juntassem em um todo harmonioso, era necessário um elemento catalisador. E esse elemento catalisador possuía natureza espiritual.
Não é acidental que os maiores nomes da filosofia, da ciência e da arte islâmica tenham pertencido a confrarias de místicos sufis. De seu ponto de vista, a natureza inteira era uma teofania ou manifestação de Deus. Seus entes e eventos constituíam símbolos da presença divina - símbolos que cabia ao sábio decifrar. O que o motivava não era o desejo de subjugar a natureza, característico do cientista moderno, mas um impulso profundamente místico e amoroso, que o levava a estudar a criatura para se aproximar do Criador. Isso explica os elevados valores éticos do sábio muçulmano. E também seu interesse enciclopédico. Homens como Al-Farabi, Avicena e Ibn Árabi assimilaram todo o conhecimento disponível em sua época.
A ciência islâmica alcançou êxito notável em disciplinas tão variadas como a matemática, a astronomia, a física, a química, a medicina, a geografia, a história e a lingüística. E não se limitou a recolher e desenvolver saberes herdados de outras culturas, como a geometria grega e a aritmética indiana, mas aventurou-se também por domínios até então praticamente inexplorados. É o caso da álgebra, da trigonometria e da óptica. Some-se a isso um desenvolvimento tecnológico sem precedentes no mundo antigo, que se destinava a atender às necessidades ditadas por intenso processo de urbanização. Em pleno século X, enquanto as maiores cidades da Europa cristã não excediam a 30 ou 40 mil habitantes, Bagdá alcançava 1,5 milhão; o Cairo, cerca de meio milhão; e Damasco e Córdoba, em torno de 300 a 400 mil.
Esse precioso legado chegou à Europa cristã por meio de um complexo intercâmbio cultural, que as Cruzadas favoreceram em vez de dificultar. Foi ele que revitalizou o pensamento europeu e, direta ou indiretamente, criou as condições para a intensa fermentação intelectual do século XIII, em que brilham as figuras de Francisco de Assis e São Boaventura, Robert Grosseteste e Roger Bacon, Alberto Magno e Tomás de Aquino, Raimundo Lúlio e Mestre Eckhart. Quase 400 anos depois, a Revolução Científica, que deu à luz a ciência moderna, foi o fruto tardio, e um tanto desvirtuado, dessa exuberante árvore do conhecimento.

O desafio do Islã – a doutrina e o legado muçulmano (Parte 03/06)


A Casa da Sabedoria

A atitude do Islã histórico ante o conhecimento tem sua melhor representação em uma passagem da vida do califa Al-Mamum (século IX), filho de Harum al-Rachid, o célebre personagem de As mil e uma noites. Diz a tradição que, inspirado por um sonho no qual o filósofo Aristóteles lhe pedia que traduzisse suas obras para a língua árabe, Al-Mamum fundou em Bagdá a Bayt al-Hikmah, Casa da Sabedoria. Nela, reuniu um notável grupo de tradutores. E, para compor seu acervo, enviou nada menos do que três delegações do mais alto nível ao imperador de Bizâncio, solicitando-lhe que enviasse, em troca de presentes suntuosos, o maior número de livros possível. Quando o imperador se recusou a atender ao terceiro pedido, Al-Mamum mobilizou um exército para marchar contra os bizantinos. A "sutileza" do argumento fez com que estes rapidamente mudassem de opinião e logo fizessem chegar a Bagdá um incontável número de pergaminhos, com obras filosóficas de Platão e Aristóteles, tratados médicos de Hipócrates e Galeno, textos matemáticos e astronômicos de Euclides e Ptolomeu, entre outras preciosidades literárias.
É irrelevante saber se o sonho com Aristóteles de fato ocorreu ou foi uma lenda inventada para enfeitar a biografia do califa, um partidário dos teólogos mutazilitas, para os quais a fé podia e devia apoiar-se em argumentos racionais. Qualquer que tenha sido o motivo de sua criação, a Casa da Sabedoria tornou-se o maior centro cultural da época. O trabalho de tradução organizou-se nela de forma sistemática: um secretário geral coordenava as atividades e distribuía os manuscritos entre os vários tradutores; cada tradutor era secundado por um redator, encarregado da primeira versão da obra; esta passava, então, pelas mãos de um revisor, que devia expurgar os eventuais erros gramaticais. Seu maior tradutor foi o médico cristão sírio Hunayn ibn Ishaq, que traduziu, do grego ao siríaco e do siríaco ao árabe, todos os tratados médicos de Hipócrates e Galeno.
Muito mais do que simples biblioteca e centro de tradução, a Casa da Sabedoria foi uma verdadeira precursora das modernas universidades, congregando várias entidades de pesquisa, inclusive observatórios astronômicos. Um dos grandes sábios que contribuíram para sua fama foi Abu Yussef al-Kindi, nascido no Iêmen por volta do ano 800 e considerado o primeiro filósofo árabe. Influenciada pela escola neoplatônica grega, sua obra apresenta forte acento místico. Mas não se restringe à filosofia pura, enveredando por várias disciplinas científicas ou afins, como a óptica, a astronomia, a astrologia, a mineralogia, a geologia, a geografia, a meteorologia e a medicina.
Al-Kindi afirmou a extensão infinita do universo, a propagação retilínea da luz e a relação entre os efeitos qualitativos dos remédios e a composição quantitativa de seus ingredientes. Antes que intrigas palacianas minassem sua posição, gozou de enorme prestígio na corte da dinastia abássida, tendo desempenhado a função de tutor de Al-Mutasim, filho e sucessor de Al-Mamun. Um índice do alcance de suas idéias na Europa cristã é a quantidade de vezes que seu nome aparece citado na obra do inglês Roger Bacon, um dos maiores filósofos e cientistas medievais.
Mais notável ainda foi a influência de outro expoente da Casa da Sabedoria, o matemático e astrônomo Muhammad ibn Musa al-Khwarizmi, de cujo nome deriva a palavra algarismo, que se incorporou ao vocabulário de vários idiomas. Por seu intermédio, chegaram ao Ocidente os algarismos indianos, universalmente adotados sob a errônea denominação de "algarismos arábicos". Ainda no campo da matemática, Al-Khwarizmi foi autor de um importante tratado sobre a resolução de equações, no qual sintetiza e populariza várias técnicas algébricas de origem indiana. No âmbito da astronomia, sua principal contribuição foi a construção de um conjunto de tabelas que permitiam calcular, com notável exatidão, as posições dos planetas em qualquer época do ano.
A Casa da Sabedoria de Bagdá tornou-se um ícone da sede de conhecimento da jovem civilização islâmica. Mas não foi um exemplo isolado. Instituições semelhantes foram criadas em outros centros políticos importantes. A principal delas foi a Casa da Sabedoria do Cairo, estabelecida durante o governo dos califas fatímidas. Nela trabalhou o grande Ibn Al-Haytham (965-1039), o maior físico muçulmano. Nascido em Basra, no Iraque, e conhecido no Ocidente sob o nome de Alhazen, Ibn Al-Haytham tornou-se uma referência obrigatória para todos os filósofos e cientistas medievais. Seu principal tratado, o Kitab al-Manazir (Livro da Óptica), exerceu extraordinária influência na Europa cristã, tornando-se o modelo dos trabalhos de óptica de Robert Grosseteste e Roger Bacon. Nele, o físico apresenta o conceito de raio luminoso; nega a propagação instantânea da luz; e explica o fenômeno da refração pela diferença de velocidade com a qual a luz viaja nos diferentes meios materiais. Suas leis sobre a reflexão e a refração seriam utilizadas, ainda no século XVII, por Kepler e Descartes.
Aliando aos seus dons intelectuais uma notável habilidade manual, Ibn Al-Haytham construiu seus próprios instrumentos científicos e realizou importantes investigações anatômicas sobre a estrutura do olho. Rejeitando como absurda a idéia grega de que a visão emanava do próprio olho, ele a atribuiu à recepção da luz emitida ou refletida pelos corpos materiais, e destacou o papel desempenhado pelo nervo óptico e sua conexão com o cérebro.

O desafio do Islã – a doutrina e o legado muçulmano (Parte 02/06)


Os Cinco Pilares da Fé

Cinco preceitos norteiam o comportamento religioso muçulmano:
- Shahadah (Declaração da Fé);
- Salat (Prece Ritual);
- Zakat (Caridade);
- Sawm (Jejum);
- Hajj (Peregrinação a Meca).

Observemos melhor cada um deles:

Shahadah (Declaração da Fé) - Afirmação fundamental do Islã, a Shahadah compõe-se de duas frases curtas: "Não há deus senão Deus. Muhammad é o mensageiro de Deus". Qualquer indivíduo que a repita por três vezes, com sinceridade, diante de testemunhas, pode ser considerado muçulmano. Como ocorre com outras fórmulas religiosas, sua aparente simplicidade encobre, porém, múltiplas camadas de significado. Em uma leitura superficial, a primeira frase ("Não há deus senão Deus") resume-se à negação do politeísmo (os deuses) e à afirmação do monoteísmo (Deus). Mas os sufis, os grandes místicos muçulmanos, atribuem-lhe conotações muito mais profundas. De seu ponto de vista, ela poderia ser lida como "Não há ser senão o Ser" ou "Não há realidade senão a Realidade". Isso equivaleria a dizer que não apenas existe um só Deus, mas que só Deus existe. E que todo o universo, com sua incrível multiplicidade de entes, repousa sobre uma unidade fundamental, pois é uma teofania ou manifestação divina.

Salat (Prece Ritual) - Os muçulmanos sunitas rezam cinco vezes por dia: antes do nascer do sol; ao meio-dia; no final da tarde; após o pôr do sol; e entre o pôr do sol e a meia-noite. Os muçulmanos xiitas adotam uma forma mais compacta, condensando as cinco preces em três. Tanto em um caso como no outro, porém, as preces são consideradas as atividades mais importantes do dia, conferindo-lhe ritmo e sentido. É o momento em que cada indivíduo deve buscar íntimo contato com Deus e com as outras pessoas que rezam na mesma hora. Abluções purificadores precedem a oração e uma complexa movimentação corporal acompanha cada uma de suas etapas. Porém o mais importante é a sinceridade, que se manifesta na perfeita sintonia entre pensamento, sentimento, palavra e ação. O fiel deve rezar como se estivesse na presença de Deus: não para obter benefícios pessoais, mas tão somente para glorificar seu Criador.

Zakat (Caridade) - O Zakat é a doação que se deve fazer de uma parte da riqueza pessoal. Destinada a beneficiar os pobres, a doação é uma prática compulsória e sistemática. A taxa estabelecida para valores em dinheiro, ouro, prata e itens comerciais é de 2,5% ao ano. Há outras porcentagens para produtos agropecuários e minerais. Com a óbvia finalidade de atenuar as desigualdades sociais e a moderar o excessivo apego humano às riquezas materiais, a caridade possui, além disso, um profundo significado espiritual, lembrando ao indivíduo que toda a riqueza vem de Deus e a ele retorna. E que, sendo todos os seres humanos intrinsecamente iguais, se a vontade divina determinou que desempenhássemos no drama da vida o papel de ricos, é nosso dever ajudar aqueles que foram escolhidos para representar o papel de pobres.

Sawm (Jejum) - O jejum muçulmano estende-se por todo o mês lunar de Ramadan, o nono do calendário islâmico. Nesse período do ano, dedicado à intensificação da conexão espiritual, todo muçulmano adulto deve, desde o nascer até o pôr do sol, abster-se de consumir alimentos ou bebidas de qualquer espécie; fumar, mesmo que passivamente; ter relações sexuais. As crianças menores de 12 anos, as mulheres grávidas ou menstruadas, os doentes e os muito idosos são liberados dessa obrigação. Destinada a fortalecer a auto-disciplina, a abstinência engloba também os maus pensamentos e as más ações. Após o pôr do sol, findo o período do jejum, uma substanciosa refeição oferece a oportunidade para a confraternização familiar ou social.

Hajj (Peregrinação) - O quinto preceito do Islã estabelece que todo muçulmano adulto e fisicamente hábil deve, na medida de suas possibilidades, realizar ao menos uma peregrinação à Meca durante a vida. O Hajj já era uma prática religiosa na Arábia pré-islâmica e a tribo do profeta Muhammad - notadamente seu remoto ancestral Qusayy e seu avô Abdul Muttalib - estava profundamente comprometida com a guarda do Santuário. Como ocorre em outras tradições religiosas, a peregrinação aos lugares santos é entendida no islamismo como uma oportunidade de radical mudança de vida e profunda renovação espiritual.

O desafio do Islã – a doutrina e o legado muçulmano (Parte 01/06)

Maomé ora com Abraão, Jesus e Moisés

Com pouco menos de 1400 anos de existência, o islamismo é a mais jovem das três religiões monoteístas do ramo abraâmico - aquelas que reivindicam o profeta bíblico Abraão como ancestral comum.

A doutrina

A doutrina islâmica, que possui vários pontos de contato com o judaísmo e o cristianismo, baseia-se em seis crenças principais:
- A crença em um único Deus (que, no idioma árabe, recebe o nome de Allah);
- A crença nos anjos (com especial ênfase no Arcanjo Gabriel, considerado o anjo da revelação);
- A crença nos livros sagrados (que os místicos muçulmanos consideram ser diferentes projeções de um único livro celestial, o Lahul Mafuz, no qual estariam inscritas as leis da criação e os arquétipos de todas as coisas);
- A crença nos profetas (cuja extensa linhagem começa com Adão; passa, entre outros, por Noé, Abraão, Moisés e Jesus; e termina com Muhammad);
- A crença no Juízo Final (quando a vida de cada ser humano seria avaliada, determinando sua futura estadia no Paraíso ou no Inferno);
- A crença na predestinação (que, embora atribua a Allah a decisão soberana sobre tudo o que ocorre, não exclui a possibilidade humana do livre arbítrio).
Considerados como um dos "povos do Livro", os judeus receberam especial consideração do profeta Muhammad e foram protegidos pelos dirigentes muçulmanos piedosos. Mas, acreditando que sua mensagem contempla a humanidade inteira, o islamismo rejeita a idéia judaica de um "povo eleito". Quanto ao cristianismo, as afinidades são até maiores, pois os muçulmanos consideram Jesus o protótipo da santidade e nada menos do que um terço do Corão lhe é dedicado. No entanto, o islamismo recusa com veemência a crença na divindade de Cristo e repudia, como uma forma de politeísmo, o dogma cristão da Santíssima Trindade. Muhammad, que possui excepcional status como o protótipo da profecia e o último dos profetas, é visto como um homem e não um deus.

Escrito por José Tadeu Arantes.
Portal Ática Educacional

O desafio do Islã - a origem (Parte 07/07)

Miniatura persa que retrata a ascensão de Maomé ao céu

A vitória - Seguiram-se oito anos de guerra entre os partidários do profeta e os habitantes de Meca - uma luta prolongada, com vitórias e derrotas, armistícios e rompimentos, perdões contemporizadores e represálias sangrentas. Em todo o processo, destacou-se a visão estratégica de Muhammad, que, mesmo quando fez concessões imediatas ao adversário, acabou tirando proveito delas para fortalecer sua posição a longo prazo. No ano 630, finalmente, ele avançou sobre a cidade com um exército de 10 mil homens. Esgotada, Meca rendeu-se sem combater.
Entrando na cidade santa, Muhammad circundou a Caaba montado em sua camela. E, com o bastão utilizado para conduzir o animal, destruiu pessoalmente cada um dos 360 ídolos, enquanto recitava o versículo do Corão que diz "A Verdade chegou. A falsidade desvaneceu-se". Manteve, no entanto, a Pedra Negra, como uma dádiva de Deus. E a Caaba, como o mais sagrado dos santuários, o ponto focal (qibla) em direção ao qual todo o muçulmano deve se voltar no momento da prece.
Em vez de castigar os adversários, como esperavam alguns de seus seguidores, o profeta agiu com magnanimidade, perdoando até mesmo os mais ardorosos chefes inimigos e incorporando aos ritos muçulmanos a peregrinação à Caaba. Esse procedimento levou seu prestígio às alturas. O último foco de resistência, um exército de 30 mil beduínos pagãos, foi derrotado semanas mais tarde. A partir daí, representantes de todas as tribos árabes vieram jurar-lhe fidelidade. Quando Muhammad morreu, nos braços de Aisha, em 632, a Arábia estava unificava. Um século depois, as fronteiras do Islã estendiam-se da Espanha ao noroeste da Índia.
Ao contrário de Jesus, que mandou os discípulos oferecerem a outra face a quem lhes dava um tapa, Muhammad propagou sua fé com conquistas militares e tratados diplomáticos. Uma generalização equivocada dessa contingência histórica levou alguns de seus seguidores a uma perspectiva religiosa exclusivista e belicosa. Tal enfoque não corresponde, porém, à real natureza do Islã. Adeptos da experiência espiritual genuína, os sufis, os grandes místicos muçulmanos, reconheceram a unidade profunda de todas as religiões. O espanhol Ibn Árabi (1165-1240), considerado o maior deles, proclamou essa unidade em um poema de imperecível beleza:

"Meu coração tornou-se capaz de todas as formas:
É um pasto de gazelas, o convento do cristão,
Um templo para os ídolos, a Caaba do peregrino,
O rolo da Torá, o texto do Corão.
Sigo a religião do Amor.
Para onde quer que avancem as caravanas do Amor,
Lá é meu credo e minha fé."

O desafio do Islã - a origem (Parte 06/07)


Al Masjid Al-Haram, em Meca,
considerada o maior centro de peregrinação do mundo

A Cidade do Profeta - Tendo encontrado no caminho a caravana de um primo de Abu Bakr, que regressava da Síria, Muhammad e seu companheiro haviam recebido de presente roupas brancas, de tecido fino, que se destacavam contra o solo negro, de lava vulcânica, que compunha o cenário. Foi um judeu das cercanias de Yathrib o primeiro a avistá-los. Logo toda a multidão de muçulmanos que habitava o local correu ao seu encontro. A tradição adornou esse momento, atribuindo ao profeta palavras eloqüentes. Dirigindo-se aos seus admiradores, ele teria dito: "Ó gente! Dirigi, uns aos outros, saudações de paz; dai de comer aos famintos; honrai os vínculos de parentesco; orai durante as horas em que os homens dormem. Assim, entrareis em paz no Paraíso".
Retido pela população dos arrabaldes, que não se cansava de homenageá-lo, Muhammad permaneceu três dias nas cercanias de Yathrib, que se impacientava para vê-lo. Depois, acompanhado por Abu Bakr e uma centena de partidários, e montando sua camela Qaswa, cavalgou em direção à cidade. À direita e à esquerda, com armaduras e espadas em punho, ginetes das tribos de Aws e Jazrach formavam a guarda de honra. Homens, mulheres e crianças, postados ao longo do caminho, saudavam a impressionante comitiva com o grito de "Chegou o profeta de Deus!". O triunfo da entrada em Yathrib, que passaria a se chamar Madinat-al-Nabi (Cidade do Profeta) ou simplesmente Medina (Cidade), dão uma idéia da importância política do acontecimento.
Ao deixar Meca, Muhammad já havia tido suas mais decisivas experiências místicas e transmitido os fundamentos do Islã. Mas, oprimidos pela aristocracia mequense, os muçulmanos ainda estavam na defensiva. Em Medina, a situação se inverteu. A cidade colocou-se sob a direção do profeta, que deixou de ser apenas um instrutor espiritual para se tornar também um chefe político e militar. A constituição que ditou, estabelecendo a convivência harmoniosa entre as tribos locais, os imigrantes islâmicos e a numerosa comunidade judaica, autorizada a praticar sua religião, é considerada uma obra de extraordinária perspicácia política. De Medina, Muhammad partiu para a conquista de Meca e a unificação de toda a Arábia.

O desafio do Islã - a origem (Parte 05/07)

Profeta Maomé recitando o Alcorão em Meca
(gravura do século XV).

A fuga - No ano 622, pouco mais de uma década depois de Muhammad ter iniciado sua missão profética, a cidade de Meca encontrava-se profundamente dividida. Herdeiro das tradições monoteístas do judaísmo e do cristianismo, o islamismo cindira a população local. Jesus afirmou que sua mensagem provocaria a divisão entre os homens, colocando o filho contra o pai, a filha contra a mãe, a nora contra a sogra. O mesmo se dava com a pregação de Muhammad, que seus adeptos consideram ser o sucessor espiritual de Abraão, Moisés e Jesus. Enquanto as revelações comunicadas pelo profeta atraíam um número crescente de adeptos, em sua maioria, jovens, mulheres e pobres, os homens poderosos da comunidade permaneciam impenetráveis e hostis.
A hostilidade manifestava-se no próprio interior da tribo (Quraysh), do clã (Bani Hashim) e até mesmo da parentalha mais próxima de Muhammad. Por isso, quando os líderes do Quraysh se reuniram em assembléia para decidir o que fazer, seu rico tio Abu Lahab ausentou-se propositalmente, deixando os inimigos do profeta com as mãos livres para agir. Coube ao mais apaixonado adversário do Islã a proposta vencedora. Conforme o costume árabe de agregar ao pai o nome do filho primogênito, tal homem era conhecido como Abul Hakam (Pai de Hakam), mas os muçulmanos o chamariam de Abu Yahl (Pai da Ignorância). Este propôs que cada clã da tribo designasse um jovem forte e bem relacionado. No momento oportuno, esses homens se lançariam juntos sobre Muhammad, dando-lhe, cada um, uma punhalada mortal. Desse modo, não tendo um único agressor em quem se vingar, o clã da vítima seria obrigado a aceitar, em lugar da reparação de sangue, uma reparação em dinheiro, de acordo com os costumes tribais.
Diz a tradição que o arcanjo Gabriel apareceu então ao profeta e o alertou sobre a conspiração, instruindo-o a abandonar Meca. Fazia tempo que os muçulmanos ameaçados fugiam da cidade, encaminhando-se, primeiro, à Abissínia, onde gozavam da proteção do imperador cristão, e, depois, ao oásis de Yathrib, cujos chefes haviam aderido ao Islã e jurado fidelidade ao profeta. Meca vinha sofrendo notável redução populacional e perda de status econômico devido a esse fluxo migratório. Chegara a hora do próprio Muhammad refugiar-se no oásis.
O profeta dirigiu-se à casa de Abu Bakr, amigo fiel, discípulo de primeira hora e futuro sucessor. Este chorou de alegria ao saber que poderia acompanhá-lo no exílio. Concebido o plano de fuga, Muhammad voltou ao lar e relatou o que estava para ocorrer a seu primo Ali. Os conspiradores haviam combinado encontrar-se na porta da casa de sua projetada vítima quando caísse a noite. Ao chegarem, porém, ouviram as vozes das esposas do profeta e conjeturaram que, caso violassem a privacidade das mulheres, ficariam cobertos de desonra aos olhos de todos os árabes. Por isso, decidiram esperar até o amanhecer, para atacar Muhammad quando ele saísse para a prece, como costumava fazer toda a madrugada.
O profeta notou a presença dos agressores e orientou Ali a dormir em sua cama, cobrindo-se com seu manto verde, garantindo-lhe que, sob aquela vestimenta, nenhum mal lhe sucederia. Quanto a si próprio, recitou o versículo do Corão que afirma: "E lhes colocaremos uma barreira pela frente e uma barreira por trás, e lhes ofuscaremos os olhos, para que não possam ver". Saiu então de casa e - sustenta a tradição - passou sob as barbas de seus inimigos sem que estes o percebessem. Os conspiradores ficaram o resto da noite vigiando. Espiando pela janela, viram que Muhammad dormia em sua cama, coberto com seu manto. Somente quando Ali se levantou, na manhã seguinte, é que perceberam que haviam sido ludibriados.
Nesse ínterim, o profeta voltou à casa de Abu Bakr e, sem perda de tempo, fugiram ambos pela janela dos fundos, onde dois camelos já encilhados os esperavam. Abu Bakr levava na garupa seu filho Abdallah. Fina como um risco de compasso, a lua minguante do mês de Safar, que nesse ano correspondia a julho, erguera-se sobre as colinas orientais de Meca e começava a empalidecer à luz da aurora.
Os fugitivos rumaram para o sul, em direção ao Iêmen, porque sabiam que seus eventuais perseguidores certamente os procurariam no norte, nos muitos caminhos que levavam a Yathrib. Amir, um escravo liberto por Abu Bakr, os seguiu com o rebanho de seu patrão, para que as marcas das ovelhas escondessem as pegadas dos camelos. Ao chegarem a uma caverna previamente escolhida, desmontaram e mandaram que Abdallah levasse os animais de volta à cidade. O filho de Abu Bakr voltou na noite do segundo dia em companhia de sua irmã Asma, trazendo provisões e a notícia de que os chefes do Quraysh haviam oferecido cem camelos de recompensa para quem encontrasse e capturasse Muhammad. Beduínos interessados no prêmio já vasculhavam todas as rotas normais entre Meca e Yathrib.
No terceiro dia, alguns desses caçadores de recompensa aproximaram-se perigosamente da caverna. Mas - afirma a tradição - a Providência Divina impediu que eles encontrassem o que procuravam. Na noite desse dia, Abdallah voltou com Asma e um guia beduíno, que levaria o profeta e Abu Bakr a Yathrib por um caminho longo e totalmente inusual. Embora Yathrib fique ao norte de Meca, o guia dirigiu-se para sudoeste e só inflexionou para o norte quando chegou às costas do mar Vermelho. Após doze dias de viagem, os fugitivos chegaram finalmente ao oásis. O dia 16 de julho de 622, data em que Muhammad deixou a caverna nas imediações de Meca para buscar refúgio em Yathrib, marca o início do calendário muçulmano. É a Hégira, forma aportuguesada da palavra árabe Hijra (Fuga).

O desafio do Islã - a origem (Parte 04/07)

Meca

A "ascensão ao Paraíso" - Khadija morreu em 619. Um ano mais tarde, Muhammad teve sua mais impressionante experiência mística: a célebre Ascensão ao Paraíso (mi'raj). Diz a tradição que, em uma noite pontuada por relâmpagos e trovões, o profeta estava deitado em seu quarto, na cidade de Meca, quando percebeu o ambiente inteiro se iluminar. Em suas visões anteriores, o arcanjo Gabriel sempre lhe aparecera na forma de um homem. Desta vez, porém, contemplou-o em sua esplêndida forma cósmica. "Ó dorminhoco", teria dito o anjo, "por quanto tempo continuarás dormindo? Acorda!". E, tomando Muhammad pela mão, o levou a sobrevoar a Caaba. De lá, conduziu-o até o cume do monte Moriah, em Jerusalém - um lugar sagrado para judeus, cristãos e muçulmanos, onde os conquistadores islâmicos edificariam, mais tarde, o Domo do Rochedo, hoje um ponto nevrálgico do conflito palestino-israelense. Daquele local privilegiado, ascenderam ao Céu.
Sempre guiado por Gabriel, Muhammad teria atravessado as muitas esferas que compõem o Paraíso, instruindo-se com anjos e profetas, até se encontrar sozinho, trêmulo e quase aniquilado, na presença de Deus. Ao iniciar-se a jornada, uma jarra d'água que se encontrava à cabeceira da cama fora derrubada. O profeta retornou a tempo de impedir que a água derramasse. A visão, ou o que quer que tenha sido essa experiência, obviamente ocorreu fora dos parâmetros usuais de espaço e tempo.

O desafio do Islã - a origem (Parte 03/07)

Mesquita do Profeta Maomé, Medina

A revelação - O acontecimento decisivo, que transformou radicalmente a vida de Muhammad, mudou a face da Arábia e influenciou o próprio destino da humanidade, ocorreu no ano 610. Era uma noite do mês de Ramadan, dedicado ao jejum e aos retiros espirituais. Como de hábito, ele meditava sozinho, em uma caverna isolada do monte Hira, nas cercanias de Meca. Afirma a tradição que, ao alcançar um estado de profunda absorção espiritual, percebeu a presença do arcanjo Gabriel, na forma de um homem. O anjo lhe disse: "Recita!". Surpreso, Muhammad respondeu: "Não sou um recitador". O mensageiro celestial então o abraçou, apertando-o até ele quase desfalecer e repetiu a ordem: "Recita!". Muhammad voltou a argumentar que não era um recitador e outra vez foi abraçado e espremido até o limite da sobrevivência. Quando recuperou o fôlego, Gabriel lhe disse: "Recita em nome de teu Senhor, que tudo criou! Criou o homem de um coágulo. Recita! Teu Senhor é o mais Generoso. Ele, que ensinou com o cálamo, ensinou ao homem o que este não sabia".
Segundo os místicos muçulmanos, o cálamo (caneta), mencionado na Revelação, corresponde ao Alif, a letra inicial do alfabeto árabe. Representado como um traço vertical, o Alif é o símbolo da Unidade Divina, a primeira manifestação de Deus, a pena com a qual o Livro do Mundo foi escrito. Muhammad não compreendeu de imediato o significado de sua experiência. Ele já havia tido muitos sonhos misteriosos, sonhos que antecipavam acontecimentos futuros ou lhe apresentavam aspectos inusuais da realidade. Com o passar dos anos, acostumara-se também aos jejuns e às meditações, nas quais buscava um sentido para a existência. Mas aquelas palavras enigmáticas estavam fora de suas expectativas. Profundamente perturbado, voltou para casa trêmulo e febril. Foi Khadija que o tranqüilizou. Quarenta dias se passaram. Muhammad, que a princípio temera, agora ansiava por novas revelações. Depois de provar o manjar espiritual, considerava a vida cotidiana desprovida de sabor. A saudade que sentia daquele alimento místico era tanta que chegou a pensar em suicídio. Foi então que recebeu uma nova mensagem. E, dizem os muçulmanos, continuou a recebê-las, em pequenos bocados, até o final da vida.
Essas mensagens são interpretadas como a palavra de Deus (Allah), sempre comunicada a Muhammad pelo arcanjo Gabriel. Elas compõem a quase totalidade do texto do Corão. Sua mensagem principal é o Islam, a total submissão do homem à vontade de Deus. Segundo a ótica muçulmana, o exemplo mais perfeito dessa submissão foi dado por Abraão, que, atendendo ao comando de Deus, que testava sua fidelidade, aceitou sacrificar o próprio filho, Isaac - ato impedido por um anjo, que revogou a ordem divina. O islamismo reconhece todos os profetas judeus e exalta enormemente a figura de Jesus, considerado o protótipo da santidade. Mas contesta a concepção judaica de um "povo eleito" e nega com veemência a divindade de Cristo.
Quando Muhammad começou a transmitir aos outros as experiências que estava tendo, um círculo de discípulos juntou-se pouco a pouco à sua volta. Primeiro, Khadija. Depois, Abu Bakr, pai de Aisha. Em seguida, Ali, o futuro marido de Fátima. O grupo foi crescendo entre os marginalizados da riqueza e do poder e passou a incomodar os setores dominantes da tribo dos Quraysh, que controlavam o comércio e a política na cidade de Meca e auferiam grandes lucros com o movimento de peregrinos em direção à Caaba.

O desafio do Islã - a origem (Parte 02/07)

Alá (Allah) em árabe

A origem - De acordo com a tradição árabe, que agrega ao nome do indivíduo os nomes do pai, do avô, do bisavô e da tribo, o profeta do Islã chamava-se Abulqassim Muhammad ibn Abdallah ibn Abdul Muttalib ibn Hashim al Quraysh. Seu nome próprio, Muhammad, significa "o Extremamente Louvado". Uma corruptela dessa palavra resultou na forma aportuguesada Maomé. Nascido em Meca, a mais politeísta das antigas cidades árabes, ele resgatou e aprofundou a tradição monoteísta do judaísmo e do cristianismo. Analfabeto, transmitiu o Corão, um livro que é considerado a palavra de Deus. Criado em uma sociedade tribal, sem unidade política, lançou as bases de uma civilização que se estendeu da Península Ibérica às fronteiras da China e mudou os rumos da história humana.
Os historiadores muçulmanos divergem quanto à data exata de seu nascimento. Recorrendo até mesmo a argumentos astrológicos, uns propõem o dia 22 e outros 25 de abril de 571 d.C. Muhammad era descendente em linha direta do grande Qusayy, chefe da tribo dos Quraysh, responsável pela sedentarização da população de Meca, ao ordenar que seus comandados edificassem casas, em lugar de tendas, ao redor da Caaba. Seu avô, Abdul Muttalib, foi outro líder notável, guardião do Santuário e encarregado de recepcionar os peregrinos que acorriam à cidade. O nascimento do menino ocorreu dois meses depois da morte de seu pai, Abdallah. A mãe, Âmina, amamentou-o nos primeiros meses de vida. Depois, como era hábito na tribo dos Quraysh, ele foi entregue aos cuidados de uma ama, para ser criado em uma aldeia do deserto, longe do burburinho da cidade. Halima era o nome dessa ama e Muhammad permaneceu em sua companhia até os cinco anos de idade. Mais tarde, atribuiu seu excepcional domínio da língua árabe a essa estadia no deserto, onde os beduínos cultivavam a pureza do idioma. Voltou para casa poucos meses antes de sua mãe morrer.
Órfão de pai e mãe e tendo perdido também o avô, Muhammad foi criado por um tio paterno, Abu Talib, homem pobre, porém afetuoso. Para ajudar nas despesas, começou a trabalhar muito cedo, dedicando-se ao pastoreio de animais. Imprópria para a agricultura, devido à aridez do solo, e sem um artesanato expressivo, Meca destacava-se como centro comercial. Duas caravanas partiam anualmente da cidade: uma para a Síria, no verão, e outra para o Iêmen, no inverno. Abu Talib participava desse negócio e, com 12 anos, Muhammad o acompanhou em uma viagem à Síria. Ocorreu, então, um fato marcante em sua biografia. Na cidade síria de Busra (não confundir com Basra, no Iraque), o menino encontrou-se com o monge cristão Bahira, que reconheceu nele o dom da profecia. Orientalistas cristãos atribuem a Bahira e ao ambiente cultural sírio a influência que levou Muhammad ao monoteísmo. Essa hipótese é contestada, porém, pelos historiadores muçulmanos.
Apesar de seu espírito contemplativo, Muhammad pouco se diferenciou, na juventude, de seus contemporâneos. Seguindo a tradição familiar, adotou a profissão de comerciante. Os biógrafos destacam sua honestidade nos negócios e a fidelidade que demonstrava à palavra empenhada. Em um contexto tribal orgulhoso, no qual os ânimos ferviam pelo menor motivo e uma pequena briga logo se transformava em guerra, ele parece ter-se caracterizado pelo equilíbrio e pela moderação. Um fato altamente significativo foi seu casamento com Khadija. Duas vezes viúva e mãe de vários filhos, Khadija bint Khuwailid bint Assad bint Abdul Uzza bint Qusayy era uma mercadora muito rica e respeitada. Tinha cerca de 40 anos quando desposou Muhammad. E ele, apenas 25. Apesar do patriarcalismo da sociedade árabe, essa mulher exerceu enorme influência em sua vida. Foi confidente, conselheira e, anos mais tarde, sua primeira discípula. Entregou-lhe o comando de todos os seus negócios e proporcionou-lhe o conforto material que lhe permitiu dedicar-se mais intensamente às questões espirituais.
Muhammad e Khadija permaneceram juntos durante 25 anos e, enquanto ela viveu, ele não teve outra esposa. Depois de sua morte, desposou 10 mulheres e teve numerosas concubinas. A bela e inteligente Aisha - que ao se casar com o profeta era ainda uma menina, às voltas com seus brinquedos - foi a mais influente e parece ter desempenhado um papel decisivo no estabelecimento dos costumes muçulmanos. De sua união com Khadija, nasceram-lhe sete filhos: três meninos, que morreram na infância, e quatro meninas, três das quais faleceram no tempo em que ele ainda vivia. Fátima, a única sobrevivente, foi a filha por meio da qual se estabeleceu sua descendência, já que um outro filho que teve em idade avançada, fruto de seu casamento com Maria, a Copta, também morreu antes de completar dois anos.
Segundo a descrição feita por Ali, primo, genro e um dos sucessores do profeta, Muhammad era, em sua maturidade, um homem de estatura mediana, bonito de rosto, com cabelos muito pretos que lhe chegavam aos ombros, barba espessa, sobrancelhas grossas e pestanas longas. Seus grandes olhos negros contrastavam com a pele clara e ressaltavam ainda mais sua aparência contemplativa.

O desafio do Islã - a origem (Parte 01/07)


Hoje, países e organizações islâmicas protagonizam alguns dos mais dramáticos acontecimentos do planeta. No entanto, embora seja a religião que mais cresce no mundo, o islamismo continua surpreendentemente desconhecido para os não-muçulmanos, mesmo os mais esclarecidos. O desconhecimento chega ao ponto de muitos acreditarem que o Deus muçulmano é diferente do Deus cristão. Em um mundo que necessita vitalmente de compreensão e tolerância, essa ignorância é uma perigosa fonte de preconceitos e conflitos.
Como, quando e onde surgiu o islamismo? Qual é sua mensagem? Quais são suas convergências e divergências com outras religiões monoteístas, como o judaísmo e o cristianismo? Quais foram suas principais contribuições à civilização? Qual a diferença entre sunitas e xiitas? Qual é sua visão de futuro? Por que tantos muçulmanos estão hoje em luta contra os valores ocidentais?

A Arábia pré-islâmica - A Arábia pré-islâmica era uma terra de cenários grandiosos e ânimos exaltados. Desertos imensos e estreitos desfiladeiros compunham sua paisagem física. Batalhas ferozes e juramentos feitos com os dedos manchados de sangue compunham sua paisagem humana. Nômades ou recém-sedentarizados, os árabes do sexo masculino valorizavam, acima de tudo, a liberdade, a honra, a eloqüência e a astúcia. Quanto à mulher, ela era literalmente um objeto, que, ainda menina, o pai entregava em casamento a quem bem lhe aprouvesse e que, mesmo adulta, dependia em tudo da aprovação masculina.
Os laços de consangüinidade dominavam as relações sociais. Mas havia neles uma gradação. Um antigo provérbio árabe dá bem a medida disso, ao afirmar: "Eu e meu irmão contra meu primo; eu, meu irmão e meu primo contra o forasteiro". Constantes combates entre tribos e clãs e vinganças de sangue pela honra ultrajada eram a conseqüência inevitável de tal mentalidade. O Islã haveria de suavizar esses temperamentos e contribuiria decisivamente para a melhoria da condição da mulher, dos pobres e dos órfãos.
Embora dizendo-se descendentes do profeta bíblico Abraão, por meio de seu filho Ismael, os árabes eram então predominantemente politeístas. Minorias judaicas e cristãs conviviam com uma população que cultuava os espíritos da natureza (djin) e centenas de deuses e deusas. Seu centro espiritual era o Santuário da Caaba, na cidade de Meca. Nesse edifício de formato cúbico, cujos ângulos se alinham com os pontos cardeais, ficava guardada a Pedra Negra, o principal objeto de adoração. Diz a tradição islâmica que ela desceu do Céu, branca como a neve, mas que os pecados dos filhos de Adão progressivamente a escureceram. Mais tarde, os místicos muçulmanos afirmariam que, seguindo a orientação divina, Abraão e Ismael edificaram a Caaba no ponto exato em que o Eixo do Mundo toca o plano terrestre. Nos vários planos celestiais, cortados por essa linha invisível, haveria santuários análogos, freqüentados por anjos. E, acima de todos eles, o Trono de Deus.
Em torno da Caaba, os mequenses haviam disposto 360 ídolos, um para cada grau da circunferência, um para cada dia do ano lunar. Peregrinos procedentes de toda a Arábia vinham a Meca uma vez por ano e circundavam sete vezes a Caaba, reverenciando os ídolos uns após os outros. Essa circulação humana, o tawaf, reproduzia, no plano terrestre, a ronda dos astros ao redor da estrela polar, provocada pelo movimento de rotação da Terra.
Allah era uma das divindades cultuadas no Santuário. Seu nome, al-Illah, é a forma árabe de El, o Deus de Abraão, mencionado no Antigo Testamento da Bíblia. Mas os árabes atribuíam igual importância a Hubal, um deus de origem moabita, e às deusas al-Lat, al-Uzzah e Manat, conhecidas como as "três filhas de Deus". Sede do grande templo de al-Lat, a cidade de Taif disputava com Meca a proeminência religiosa na Arábia. E o panteão árabe não se restringia aos 360 deuses do Santuário. Cada casa tinha seu deus particular. O número de divindades não parava de crescer, graças aos contatos comerciais e às relações matrimoniais com outros povos.
Os indianos cultuam até hoje centenas de deusas e deusas. Porém, graças aos ensinamentos de seus grandes sábios, adquiriram a compreensão de que esses múltiplos deuses e deusas são apenas diferentes manifestações de uma Divindade Única. É esse profundo senso de unidade que confere vitalidade espiritual às religiões da Índia, permitindo que elas atuem como poderoso fator de integração nos planos individual, social e cósmico. Alguns pensadores muçulmanos contemporâneos acreditam que tal senso de unidade, inerente a todas as tradições espirituais autênticas, fora esquecido na Arábia pré-islâmica. Sem um princípio único, integrador, o politeísmo árabe teria se transformado em uma religião supersticiosa e estéril. Dizem esses especialistas que, assim como Abraão, Moisés e Jesus, Muhammad recebeu um "mandato celeste" para restaurar o conhecimento da unidade divina, tornando-o ativo, integrador, transformador.

Escrito por José Tadeu Arantes.

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