O que é a percepção
A percepção possui as seguintes
características:
● é o conhecimento sensorial de
configurações ou de totalidades organizadas e dotadas de sentido e não uma soma
de sensações elementares; sensação e percepção são a mesma coisa;
● é o conhecimento de um sujeito
corporal, isto é, uma vivência corporal, de modo que a situação de nosso corpo
e as condições de nosso corpo são tão importantes quanto a situação e as
condições dos objetos percebidos;
● é sempre uma experiência
dotada de significação, isto é, o percebido é dotado de sentido e tem sentido
em nossa história de vida, fazendo parte de nosso mundo e de nossas vivências;
● o próprio mundo exterior não é
uma coleção ou uma soma de coisas isoladas, mas está organizado em formas e
estruturas complexas dotadas de sentido. Uma paisagem, por exemplo, não é uma soma
de coisas que estão apenas próximas umas das outras, mas é a percepção de
coisas que formam um todo complexo e com sentido: o vale só é vale por causa da
montanha, cuja altura e distância só podem ser avaliadas porque há o céu, as
árvores, um rio e um caminho; o verde do vale só pode ser percebido por
contraste com o cinza ou o dourado da montanha; o azul do céu só pode ser
percebido por causa do verde da vegetação e o marrom da terra; essa paisagem
será um espetáculo de contemplação se o sujeito da percepção estiver repousado,
mas será um objeto digno de ser visto por outros se o sujeito da percepção for
um pintor, ou será um obstáculo, se o sujeito da percepção for um viajante que
descobre que precisa ultrapassar a montanha. Em resumo: na percepção, o mundo
possui forma e sentido e ambos são inseparáveis do sujeito da percepção;
● a percepção é assim uma relação
do sujeito com o mundo exterior e não uma reação físico-fisiológica de um
sujeito físico-fisiológico a um conjunto de estímulos externos (como suporia o
empirista), nem uma idéia formulada pelo sujeito (como suporia o intelectualista).
A relação dá sentido ao percebido e ao percebedor, e um não existe sem o outro;
● O mundo percebido é
qualitativo, significativo, estruturado e estamos nele como sujeitos ativos,
isto é, damos às coisas percebidas novos sentidos e novos valores, pois as
coisas fazem parte de nossas vidas e interagimos com o mundo;
● o mundo percebido é um mundo
inter corporal, isto é, as relações se estabelecem entre nosso corpo, os corpos
dos outros sujeitos e os corpos das coisas, de modo que a percepção é uma forma
de comunicação que estabelecemos com os outros e com as coisas;
● a percepção depende das coisas
e de nosso corpo, depende do mundo e de nossos sentidos, depende do exterior e
do interior, e por isso é mais adequado falar em campo perceptivo para indicar
que se trata de uma relação complexa entre o corpo-sujeito e os corpos-objetos
num campo de significações visuais, tácteis, olfativas, gustativas, sonoras,
motrizes, espaciais, temporais e linguísticas. A percepção é uma conduta vital,
uma comunicação, uma interpretação e uma valoração do mundo, a partir da
estrutura de relações entre nosso corpo e o mundo;
● a percepção envolve toda nossa
personalidade, nossa história pessoal, nossa afetividade, nossos desejos e
paixões, isto é, a percepção é uma maneira fundamental de os seres humanos
estarem no mundo. Percebemos as coisas e os outros de modo positivo ou negativo,
percebemos as coisas como instrumentos ou como valores, reagimos positiva ou
negativamente a cores, odores, sabores, texturas, distâncias, tamanhos. O mundo
é percebido qualitativamente, efetivamente e valorativamente. Quando percebemos
uma outra pessoa, por exemplo, não temos uma coleção de sensações que nos
dariam as partes isoladas de seu corpo, mas a percebemos como tendo uma fisionomia
(agradável ou desagradável, bela ou feia, serena ou agitada, sadia ou doentia,
sedutora ou repelente) e por essa percepção definimos nosso modo de relação com
ela;
● a percepção envolve nossa vida
social, isto é, os significados e os valores das coisas percebidas decorrem de
nossa sociedade e do modo como nela as coisas e as pessoas recebem sentido,
valor ou função. Assim, objetos que para nossa sociedade não causam temor,
podem causar numa outra sociedade. Por exemplo, em nossa sociedade, um espelho
ou uma fotografia são objetos funcionais ou artísticos, meios de nos vermos em
imagem; no entanto, para muitas sociedades indígenas, ver a imagem de alguém ou
a sua própria é ver a alma desse alguém e fazê-lo perder a identidade e a vida,
de modo que a percepção de um espelho ou de uma fotografia pode ser uma
percepção apavorante;
● a percepção nos oferece um
acesso ao mundo dos objetos práticos e instrumentais, isto é, nos orienta para
a ação cotidiana e para as ações técnicas mais simples; a percepção é uma forma
de conhecimento e de ação fundamental para as artes, que são capazes de criar
um “outro” mundo pela simples alteração que provoca em nossa percepção
cotidiana e costumeira.
● a percepção não é uma ideia
confusa ou inferior, como julgava a tradição, mas uma maneira de ter idéias
sensíveis ou significações perceptivas;
● a percepção está sujeita a uma
forma especial de erro: a ilusão, como vimos no exemplo dos versos de Mário de
Andrade sobre a garoa de São Paulo, a confusão do branco e do negro, do pobre e
do rico.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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