Percepção e teoria do conhecimento
Do ponto de vista das teorias do
conhecimento, há três concepções principais sobre o papel da percepção:
1. nas teorias empiristas, a
percepção é a única fonte de conhecimento, estando na origem das idéias
abstratas formuladas pelo pensamento. Hume, por exemplo, afirma que todo
conhecimento é percepção e que existem dois tipos de percepção: as impressões
(sensações, emoções e paixões) e as idéias (imagens das impressões);
2. nas teorias racionalistas
intelectualistas, a percepção é considerada não muito confiável para o
conhecimento porque depende das condições particulares de quem percebe e está
propensa a ilusões, pois freqüentemente a imagem percebida não corresponde à
realidade do objeto.
Vemos o Sol menor do que a
Terra, mas ele realmente é maior do que ela. Descartes menciona o modo como
percebemos um bastão mergulhado na água: embora o bastão seja reto e contínuo,
percebemos a parte mergulhada como se o bastão estivesse entortado e como se
houvesse descontinuidade entre a parte que está fora da água e a parte
mergulhada. O bastão é percebido como distorcido, embora, na realidade, não
esteja deformado.
Para a concepção racionalista
intelectualista, o pensamento filosófico e científico deve abandonar os dados
da percepção e formular as idéias em relação com o percebido; trata-se de
explicar e corrigir a percepção;
3. na teoria fenomenológica do
conhecimento, a percepção é considerada originária e parte principal do
conhecimento humano, mas com uma estrutura diferente do pensamento abstrato,
que opera com idéias. Qual a diferença? A percepção sempre se realiza por perfis
ou perspectivas, isto é, nunca podemos perceber de uma só vez um objeto, pois
somente percebemos algumas de suas faces de cada vez; no pensamento, nosso
intelecto compreende uma ideia de uma só vez e por inteiro, isto é, captamos a
totalidade do sentido de uma ideia de uma só vez, sem precisar examinar cada
uma de suas “faces”.
Na percepção, nunca poderemos
ver, de uma só vez, as seis faces de um cubo, pois “perceber um cubo”
significa, justamente, nunca vê-lo de uma só vez por inteiro. Ao contrário, quando
o geômetra pensa o cubo, ele o pensa como figura de seis lados e, para seu
pensamento, as seis faces estão todas presentes simultaneamente.
Quanto ao problema da ilusão, a
fenomenologia considera que ela não existe. Se tomarmos, por exemplo, o verso de
Mário de Andrade, diremos que perceber uma pessoa sob a garoa ou a neblina de
São Paulo é percebê-la como negra de longe e branca de perto ou como branca de
longe e negra de perto: são quatro percepções diferentes e que são como são
porque perceber é sempre perceber um campo de objetos que permite corrigir uma
percepção por meio de outra.
Podemos compreender mais
claramente a diferença entre as três concepções através de um exemplo,
oferecido pelo filósofo Merleau-Ponty:
Olhemos para uma piscina
ladrilhada de verde-claro e rodeada por um jardim. O que percebemos?
O empirista dirá que recebemos
estímulos de todos os elementos que estão em nosso campo visual: cores, sons,
reflexos; que esses estímulos isolados são levados a nosso cérebro, onde causam
uma impressão e que a consciência dessa impressão é a percepção como soma dos
estímulos.
O intelectualista nos dirá que
vemos qualidades sensíveis – líquido, cor, reflexos – de uma realidade
distorcida: vemos árvores sobre a superfície das águas, embora as árvores não
estejam ali; vemos os ladrilhos do fundo como se fossem curvos, côncavos,
convexos, embora sejam quadrados e lisos; vemos a água colorida, quando, na
realidade, ela não tem cor. Vemos, portanto, algo que nosso intelecto ou nosso
pensamento nos avisa que não corresponde à realidade.
O fenomenólogo, porém, mostrará
que perceber-uma-piscina-ladrilhada-com-água-e-rodeada-de-árvores é perceber
exatamente isso: os reflexos das árvores na água, as nuances de cor no líquido,
a movimentação dos ladrilhos. Não estamos recebendo estímulos que formarão
impressões no cérebro: estamos percebendo uma forma organizada ou uma
estrutura.
Não estamos tendo ilusões
visuais, vendo ladrilhos “apesar” da água que os deformaria; nem estamos vendo
a água “apesar” dos reflexos das árvores que a deformariam. Estamos vendo e
percebendo ladrilhos-de-uma-piscina-com-água (portanto, formas móveis no chão e
nas paredes da piscina); estamos vendo ou percebendo
as-árvores-à-volta-de-uma-piscina-com-água (portanto, refletindo-se nas águas e
agitando-se aos ventos); estamos vendo ou percebendo a água-de-uma-piscina
(portanto, agitando os ladrilhos, recebendo reflexos, mudando de cor e de
tonalidade). Isso é perceber.
A percepção se realiza num campo
perceptivo e o percebido não está “deformado” por nada, pois ver não é fazer
geometria nem física. Não há ilusões na percepção; perceber é diferente de
pensar e não uma forma inferior e deformada do pensamento. A percepção não é
causada pelos objetos sobre nós, nem é causada pelo nosso corpo sobre as
coisas: é a relação entre elas e nós e nós e elas; uma relação possível porque
elas são corpos e nós também somos corporais.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
0 Response to "Percepção e teoria do conhecimento"
Postar um comentário