"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

Percepção e teoria do conhecimento


Do ponto de vista das teorias do conhecimento, há três concepções principais sobre o papel da percepção:

1. nas teorias empiristas, a percepção é a única fonte de conhecimento, estando na origem das idéias abstratas formuladas pelo pensamento. Hume, por exemplo, afirma que todo conhecimento é percepção e que existem dois tipos de percepção: as impressões (sensações, emoções e paixões) e as idéias (imagens das impressões);

2. nas teorias racionalistas intelectualistas, a percepção é considerada não muito confiável para o conhecimento porque depende das condições particulares de quem percebe e está propensa a ilusões, pois freqüentemente a imagem percebida não corresponde à realidade do objeto.   


Vemos o Sol menor do que a Terra, mas ele realmente é maior do que ela. Descartes menciona o modo como percebemos um bastão mergulhado na água: embora o bastão seja reto e contínuo, percebemos a parte mergulhada como se o bastão estivesse entortado e como se houvesse descontinuidade entre a parte que está fora da água e a parte mergulhada. O bastão é percebido como distorcido, embora, na realidade, não esteja deformado.
Para a concepção racionalista intelectualista, o pensamento filosófico e científico deve abandonar os dados da percepção e formular as idéias em relação com o percebido; trata-se de explicar e corrigir a percepção;
3. na teoria fenomenológica do conhecimento, a percepção é considerada originária e parte principal do conhecimento humano, mas com uma estrutura diferente do pensamento abstrato, que opera com idéias. Qual a diferença? A percepção sempre se realiza por perfis ou perspectivas, isto é, nunca podemos perceber de uma só vez um objeto, pois somente percebemos algumas de suas faces de cada vez; no pensamento, nosso intelecto compreende uma ideia de uma só vez e por inteiro, isto é, captamos a totalidade do sentido de uma ideia de uma só vez, sem precisar examinar cada uma de suas “faces”.
Na percepção, nunca poderemos ver, de uma só vez, as seis faces de um cubo, pois “perceber um cubo” significa, justamente, nunca vê-lo de uma só vez por inteiro. Ao contrário, quando o geômetra pensa o cubo, ele o pensa como figura de seis lados e, para seu pensamento, as seis faces estão todas presentes simultaneamente.
Quanto ao problema da ilusão, a fenomenologia considera que ela não existe. Se tomarmos, por exemplo, o verso de Mário de Andrade, diremos que perceber uma pessoa sob a garoa ou a neblina de São Paulo é percebê-la como negra de longe e branca de perto ou como branca de longe e negra de perto: são quatro percepções diferentes e que são como são porque perceber é sempre perceber um campo de objetos que permite corrigir uma percepção por meio de outra.
Podemos compreender mais claramente a diferença entre as três concepções através de um exemplo, oferecido pelo filósofo Merleau-Ponty:

Olhemos para uma piscina ladrilhada de verde-claro e rodeada por um jardim. O que percebemos?
O empirista dirá que recebemos estímulos de todos os elementos que estão em nosso campo visual: cores, sons, reflexos; que esses estímulos isolados são levados a nosso cérebro, onde causam uma impressão e que a consciência dessa impressão é a percepção como soma dos estímulos.
O intelectualista nos dirá que vemos qualidades sensíveis – líquido, cor, reflexos – de uma realidade distorcida: vemos árvores sobre a superfície das águas, embora as árvores não estejam ali; vemos os ladrilhos do fundo como se fossem curvos, côncavos, convexos, embora sejam quadrados e lisos; vemos a água colorida, quando, na realidade, ela não tem cor. Vemos, portanto, algo que nosso intelecto ou nosso pensamento nos avisa que não corresponde à realidade.
O fenomenólogo, porém, mostrará que perceber-uma-piscina-ladrilhada-com-água-e-rodeada-de-árvores é perceber exatamente isso: os reflexos das árvores na água, as nuances de cor no líquido, a movimentação dos ladrilhos. Não estamos recebendo estímulos que formarão impressões no cérebro: estamos percebendo uma forma organizada ou uma estrutura.

Não estamos tendo ilusões visuais, vendo ladrilhos “apesar” da água que os deformaria; nem estamos vendo a água “apesar” dos reflexos das árvores que a deformariam. Estamos vendo e percebendo ladrilhos-de-uma-piscina-com-água (portanto, formas móveis no chão e nas paredes da piscina); estamos vendo ou percebendo as-árvores-à-volta-de-uma-piscina-com-água (portanto, refletindo-se nas águas e agitando-se aos ventos); estamos vendo ou percebendo a água-de-uma-piscina (portanto, agitando os ladrilhos, recebendo reflexos, mudando de cor e de tonalidade). Isso é perceber.
A percepção se realiza num campo perceptivo e o percebido não está “deformado” por nada, pois ver não é fazer geometria nem física. Não há ilusões na percepção; perceber é diferente de pensar e não uma forma inferior e deformada do pensamento. A percepção não é causada pelos objetos sobre nós, nem é causada pelo nosso corpo sobre as coisas: é a relação entre elas e nós e nós e elas; uma relação possível porque elas são corpos e nós também somos corporais.


Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed. Ática, 2000.

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