"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

A memória



Lembrança e identidade do Eu

Todos conhecem os belos versos do poeta [Casimiro de Abreu, em “Meus oito anos”]:

Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida,
Que os anos não trazem mais!
Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!




Ou estes outros [Casimiro de Abreu, em “Deus e o mar”]:

Eu me lembro,
Eu me lembro!
Era pequeno e brincava na praia.
O mar bramia
E erguendo o dorso altivo sacudia
A branca espuma para o céu sereno.


A memória é uma evocação do passado. É a capacidade humana para reter e guardar o tempo que se foi, salvando-o da perda total. A lembrança conserva aquilo que se foi e não retornará jamais. É nossa primeira e mais fundamental experiência do tempo e uma das obras mais significativas da literatura universal contemporânea é dedicada a ela: Em busca do tempo perdido, do escritor francês Marcel Proust.
Para Proust, como para alguns filósofos, a memória é a garantia de nossa própria identidade, o podermos dizer “eu” reunindo tudo o que fomos e fizemos a tudo que somos e fazemos. Em sua obra Confissões, santo Agostinho escreve:

Chego aos campos e vastos palácios da memória, onde estão tesouros de inumeráveis imagens trazidas por percepções de toda espécie… Ali repousa tudo o que a ela foi entregue, que o esquecimento ainda não absorveu nem sepultou… Aí estão presentes o céu, a terra e o mar, com todos os pormenores que neles pude perceber pelos sentidos, exceto os que esqueci. É lá que me encontro a mim mesmo, e recordo das ações que fiz, o seu tempo, lugar, e até os sentimentos que me dominavam ao praticá-las. É lá que estão também todos os conhecimentos que recordo, aprendidos pela experiência própria ou pela crença no testemunho de outrem.

Como consciência da diferença temporal – passado, presente e futuro -, a memória é uma forma de percepção interna chamada introspecção, cujo objeto é interior ao sujeito do conhecimento: as coisas passadas lembradas, o próprio passado do sujeito e o passado relatado ou registrado por outros em narrativas orais e escritas.
Além dessa dimensão pessoal e introspectiva (interior) da memória, é preciso mencionar sua dimensão coletiva ou social, isto é, a memória objetiva gravada nos monumentos, documentos e relatos da História de uma sociedade.


Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed. Ática, 2000.

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