Os antigos e a memória
Os antigos gregos consideravam a memória uma identidade
sobrenatural ou divina: era a deusa Mnemosyne, mãe das Musas, que protegem as
Artes e a História. A deusa Memória dava aos poetas e adivinhos o poder de
voltar ao passado e de lembrá-lo para a coletividade. Tinha poder de conferir
imortalidade aos mortais, pois quando o artista ou o historiador registram em
suas obras a fisionomia, os gestos, os atos, os feitos e as palavras de um
humano, este nunca será esquecido e, por isso, tornando-se memorável, não
morrerá jamais.
Os historiadores antigos colocavam suas obras sob a
proteção das Musas, escreviam para que não fossem perdidos os feitos memoráveis
dos humanos e para que servissem de exemplo às gerações futuras. Dizia Cícero:
“A História é mestra da vida”.
A memória é, pois, inseparável do sentimento do tempo ou da
percepção/experiência do tempo como algo que escoa ou passa.
A importância da memória não se limitava à poesia e à
História, mas também aparecia com muita força e clareza na medicina dos
antigos. Um aforismo, atribuído a Hipócrates, o pai da medicina, dizia:
A vida é breve, a arte é longa, a ocasião escapa, o
empirismo é perigoso e o raciocínio é difícil. É preciso não só fazer o que
convém, mas também ser ajudado pelo paciente.
Qual a ajuda trazida pelo paciente para a arte médica? Sua
memória. O médico antigo praticava com o paciente a anamnese, isto é, a
reminiscência. Por meio de perguntas, o médico fazia o paciente lembrar-se de
todas as circunstâncias que antecederam o momento em que ficara doente e as
circunstâncias em que adoecera, pois essas lembranças auxiliavam o médico a
fazer o diagnóstico e a receitar remédios, cirurgias e dietas que correspondiam
à necessidade específica da cura do paciente.
Além de imortalizar os mortais e de auxiliar a arte médica,
para os antigos a memória ainda possuía outra função.
Os antigos, sobretudo os romanos, desenvolveram uma arte
chamada eloqüência ou retórica, destinada a persuadir e a criar emoções nos
ouvintes, através do uso belo e eficaz da linguagem. No aprendizado dessa arte,
consideravam a memória indispensável, não só porque o bom orador (poeta,
político, advogado) era aquele que falava ou pronunciava longos discursos sem
ler e sem se apoiar em anotações, como também porque o bom orador era aquele
que aprendia de cor as regras fundamentais da eloqüência ou oratória.
Assim, a memória era considerada essencial para o
aprendizado e os mestres de retórica criaram métodos de memorização ou “memória
artificial”, que constituíam a “Arte da Memória”. Esta era parte central do ensino
e do aprendizado de oratória, tornando-se, depois, uma arte usada por outras
disciplinas de ensino e aprendizagem. Os romanos julgavam, portanto, que além
da memória natural, os seres humanos são capazes de desenvolver uma outra
memória - que amplia e auxilia a memória espontânea - e justificavam a “Arte da
Memória” narrando uma lenda sobre o criador da retórica, o poeta grego
Simônides de Céos.
Conta a lenda que Simônides foi convidado pelo rei de Céos
a fazer um poema em sua homenagem. O poeta dividiu o poema em duas partes: na
primeira, louvava o rei e, na segunda, os deuses Castor e Polux. O rei ofereceu
um banquete no qual Simônides leu o poema e pediu o pagamento. Como resposta, o
rei lhe disse que, como o poema também estava dedicado aos deuses, ele pagaria
metade e que Simônides fosse pedir a outra metade a Castor e Polux.
Pouco depois, um mensageiro aproximou-se de Simônides
dizendo-lhe que dois jovens o procuravam do lado de fora do palácio. Simônides
saiu para encontrá-los, mas não encontrou ninguém. Enquanto estava no jardim, o
palácio desabou e todos morreram. Castor e Polux, os dois jovens que fizeram
Simônides sair do palácio, salvando o poeta, pagaram o poema. As famílias dos
demais convidados desesperaram-se porque não conseguiam reconhecer seus mortos.
Simônides, porém, lembrava dos lugares e das roupas de cada um e pôde ajudar na
identificação dos mortos.
A lembrança do palácio e dos lugares dos convidados levou à
criação da “Arte da Memória” como um palácio com lugares nos quais colocamos
imagens e palavras e, passeando por ele, ordenadamente, recordamos as coisas,
as pessoas, os fatos e as palavras necessárias para escrever e dizer discursos,
poesias, peças teatrais. É por isso que todo o texto de santo Agostinho, que
citamos, se refere aos “palácios da memória”.
A ideia de memória artificial existe até hoje, quando nos
referimos aos computadores e falamos de sua “memória”. A diferença entre a
memória artificial dos antigos e a atual consiste no fato de que a deles era
desenvolvida como uma capacidade do sujeito do conhecimento humano, enquanto a
atual deposita a memória nas máquinas e quase nos despoja da necessidade de
termos memória.
Em nossa sociedade, a memória é valorizada e desvalorizada.
É valorizada com a multiplicação dos meios de registro e gravação dos fatos,
acontecimentos e pessoas (computadores, filmes, vídeos, fitas cassetes, livros)
e das instituições que os preservam (bibliotecas, museus, arquivos). É
desvalorizada porque não é considerada uma atividade essencial para o conhecimento
– podemos usar máquinas no lugar de nossa própria memória – e porque a
publicidade e a propaganda nos fazem preferir o “novo”, o “moderno”, a “última
moda”, pois a indústria e o comércio só terão lucros se não conservarmos as
coisas e quisermos sempre o “novo”. A desvalorização da memória também aparece
na proliferação de objetos descartáveis, na maneira como a indústria da
construção civil destrói cidades inteiras para torná-las “modernas”, destruindo
a memória e a História dessas cidades. A desvalorização da memória aparece, por
fim, no descaso pelos idosos, considerados inúteis e inservíveis em nossa
sociedade, ao contrário de outras em que os idosos são portadores de todo o
saber da coletividade, respeitados e admirados por todos.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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