Memória e teoria do conhecimento
Do ponto de vista da teoria do conhecimento, a memória
possui as seguintes funções:
● retenção de um dado da percepção, da experiência ou de um
conhecimento adquirido;
● reconhecimento e produção do dado percebido,
experimentado ou conhecido numa imagem, que, ao ser lembrada, permite
estabelecer uma relação ou um nexo entre o já conhecido e novos conhecimentos;
● recordação ou reminiscência de alguma coisa como
pertencente ao tempo passado e, enquanto tal, diferente ou semelhante a alguma
coisa presente;
● capacidade para evocar o passado a partir do tempo
presente ou de lembrar o que já não é, através do que é atualmente.
Por essas funções, a memória é considerada essencial para a
elaboração da experiência e do conhecimento científico, filosófico e técnico.
Por esse motivo, Aristóteles escreveu, na Metafísica:
É da memória que os homens derivam a experiência, pois as
recordações repetidas da mesma coisa produzem o efeito duma única experiência.
A memória é retenção. Graças à lembrança e à prospecção, o
conhecimento filosófico, técnico e científico podem elaborar a experiência e
alcançar novos saberes e práticas.
Graças à memória, somos capazes de lembrar e recordar. As
lembranças podem ser trazidas ao presente tanto espontaneamente, quanto por um
trabalho deliberado de nossa consciência. Lembramos espontaneamente
quando, por exemplo, diante de uma situação presente nos vem à lembrança alguma
situação passada. Recordamos quando fazemos o esforço para lembrar.
Assim como há perturbações e problemas perceptivos
(cegueira, surdez, perda de tato) e imaginativos (loucura, ideologia), também
existem problemas e perturbações da memória, indo desde uma dificuldade
momentânea para recordar alguma coisa, até a amnésia, perda total ou parcial da
memória.
Quando perdemos a capacidade para lembrar palavras ou
construir frases, sofremos a afasia. Quando perdemos a capacidade para lembrar
e realizar gestos e ações, sofremos de apraxia. Essas perturbações podem ser
causadas por lesões físicas (no cérebro ou no sistema nervoso) ou traumas
psicológicos, isto é, por situações de grande sofrimento psíquico que nos
forçam a esquecer alguma coisa, algum fato, alguma situação.
Seja por lesão física, seja por sofrimento psíquico, seja
por uma perturbação momentânea e passageira, o esquecimento é a perda de nossa
relação com o passado e, portanto, com uma dimensão do tempo e com uma dimensão
de nossa vida. Na amnésia, perdemos relação com o todo de nossa existência. Na
afasia perdemos a relação com os outros através da linguagem ou da comunicação.
Na apraxia, perdemos a relação com o nosso corpo e com o mundo das coisas.
Esquecer é ficar privado de memória e perder alguma coisa. Algumas vezes,
porém, essa perda é um bem: esquecer alguma coisa terrível é ultrapassá-la para
poder viver bem novamente.
A memória não é um simples lembrar ou recordar, mas revela
uma das formas fundamentais de nossa existência, que é a relação com o tempo,
e, no tempo, com aquilo que está invisível, ausente e distante, isto é, o
passado. A memória é o que confere sentido ao passado como diferente do
presente (mas fazendo ou podendo fazer parte dele) e do futuro (mas podendo
permitir esperá-lo e compreendê-lo).
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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