"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

Memória e teoria do conhecimento


Do ponto de vista da teoria do conhecimento, a memória possui as seguintes funções:
● retenção de um dado da percepção, da experiência ou de um conhecimento adquirido;
● reconhecimento e produção do dado percebido, experimentado ou conhecido numa imagem, que, ao ser lembrada, permite estabelecer uma relação ou um nexo entre o já conhecido e novos conhecimentos;
● recordação ou reminiscência de alguma coisa como pertencente ao tempo passado e, enquanto tal, diferente ou semelhante a alguma coisa presente;
● capacidade para evocar o passado a partir do tempo presente ou de lembrar o que já não é, através do que é atualmente.  

Por essas funções, a memória é considerada essencial para a elaboração da experiência e do conhecimento científico, filosófico e técnico. Por esse motivo, Aristóteles escreveu, na Metafísica:

É da memória que os homens derivam a experiência, pois as recordações repetidas da mesma coisa produzem o efeito duma única experiência.

A memória é retenção. Graças à lembrança e à prospecção, o conhecimento filosófico, técnico e científico podem elaborar a experiência e alcançar novos saberes e práticas.
Graças à memória, somos capazes de lembrar e recordar. As lembranças podem ser trazidas ao presente tanto espontaneamente, quanto por um trabalho deliberado de nossa consciência. Lembramos espontaneamente quando, por exemplo, diante de uma situação presente nos vem à lembrança alguma situação passada. Recordamos quando fazemos o esforço para lembrar.
Assim como há perturbações e problemas perceptivos (cegueira, surdez, perda de tato) e imaginativos (loucura, ideologia), também existem problemas e perturbações da memória, indo desde uma dificuldade momentânea para recordar alguma coisa, até a amnésia, perda total ou parcial da memória.
Quando perdemos a capacidade para lembrar palavras ou construir frases, sofremos a afasia. Quando perdemos a capacidade para lembrar e realizar gestos e ações, sofremos de apraxia. Essas perturbações podem ser causadas por lesões físicas (no cérebro ou no sistema nervoso) ou traumas psicológicos, isto é, por situações de grande sofrimento psíquico que nos forçam a esquecer alguma coisa, algum fato, alguma situação.
Seja por lesão física, seja por sofrimento psíquico, seja por uma perturbação momentânea e passageira, o esquecimento é a perda de nossa relação com o passado e, portanto, com uma dimensão do tempo e com uma dimensão de nossa vida. Na amnésia, perdemos relação com o todo de nossa existência. Na afasia perdemos a relação com os outros através da linguagem ou da comunicação. Na apraxia, perdemos a relação com o nosso corpo e com o mundo das coisas. Esquecer é ficar privado de memória e perder alguma coisa. Algumas vezes, porém, essa perda é um bem: esquecer alguma coisa terrível é ultrapassá-la para poder viver bem novamente.
A memória não é um simples lembrar ou recordar, mas revela uma das formas fundamentais de nossa existência, que é a relação com o tempo, e, no tempo, com aquilo que está invisível, ausente e distante, isto é, o passado. A memória é o que confere sentido ao passado como diferente do presente (mas fazendo ou podendo fazer parte dele) e do futuro (mas podendo permitir esperá-lo e compreendê-lo).

Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed. Ática, 2000.

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