"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

Os filósofos e a memória


O filósofo francês Bergson distingue dois tipos de memória:
1. a memória-hábito; e
2. a memória pura ou memória propriamente dita.
A memória-hábito é um automatismo psíquico que adquirimos pela repetição contínua de alguma coisa, como, por exemplo, quando aprendemos alguma coisa de cor. A memória é uma simples fixação mental conseguida à força de repetir a mesma coisa. Aqui, basta iniciar um gesto ou pronunciar uma palavra, para que tudo seja lembrado automaticamente: recito uma lição, repito movimentos de dança, freio o carro ao sinal vermelho, piso na embreagem para mudar a marcha do carro, risco uma palavra errada que escrevi, giro a chave para a direita ou para a esquerda para abrir uma porta, etc. Todos esses gestos e essas palavras são realizados por nós quase sem pensarmos neles ou até mesmo sem pensarmos neles. O automatismo psíquico se torna um automatismo corporal.  

A memória pura ou a memória propriamente dita é aquela que não precisa da repetição para conservar uma lembrança. Pelo contrário, é aquela que guarda alguma coisa, fato ou palavra únicos, irrepetíveis e mantidos por nós por seu significado especial afetivo, valorativo ou de conhecimento.
É por isso que guardamos na memória aquilo que possui maior significação ou maior impacto em nossas vidas, mesmo que seja um momento fugaz, curtíssimo e que jamais se repetiu ou se repetirá. É por isso também que, muitas vezes, não guardamos na memória um fato inteiro ou uma coisa inteira, mas um pequeno detalhe que, quando lembrado, nos traz de volta o todo acontecido. A memória pura é um fluxo temporal interior.
Podemos, então, distinguir duas formas principais de memorização: aquela que se dá por repetição e por atenção deliberada para fixar alguma coisa; e aquela que se dá espontaneamente pela força ou pelo impacto de alguma coisa ou de algum acontecimento dotados de significado importante em nossa existência. Aqui, o interesse por alguma coisa ou algum fato é mais decisivo do que a atenção voluntária que lhe damos.
Existem seis grandes tipos de memória:
1. a memória perceptiva ou reconhecimento, que nos permite reconhecer coisas, pessoas, lugares, etc. e que é indispensável para nossa vida cotidiana;
2. a memória-hábito, que adquirimos por atenção deliberada ou voluntária e pela repetição de gestos ou palavras, até gravá-los e poderem ser repetidos sem que neles tenhamos que pensar;
3. a memória-fluxo-de-duração-pessoal, que nos faz guardar a lembrança de coisas, fatos, pessoas, lugares cujo significado é importante para nós, seja do ponto de vista afetivo, seja do ponto de vista de nossos conhecimentos;
4. a memória social ou histórica, que é fixada por uma sociedade através de mitos fundadores e de relatos, registros, documentos, monumentos, datas e nomes de pessoas, fatos e lugares que possuem significado para a vida coletiva. Excetuando-se os mitos, que são fabulações, essa memória é objetiva, pois existe em objetos (textos, monumentos, instrumentos, ornamentos, etc.) e fora de nós;
5. a memória biológica da espécie, gravada no código genético das diferentes espécies de vida e que permitem a repetição da espécie;
6. a memória artificial das máquinas, baseada na estrutura simplificada do cérebro humano.
As quatro primeiras fazem parte da vida de nossa consciência individual e coletiva; a quinta é inconsciente e puramente física; a última é uma técnica.


Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed. Ática, 2000.

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