Ôntico e ontológico
Vimos que a palavra ontologia
deriva do particípio presente do verbo einai (ser), isto é, de on
(ente) e onta (entes), dos quais vêm o substantivo to on: o Ser.
O filósofo alemão Heidegger
propõe distinguir duas palavras: ôntico e ontológico. Ôntico se
refere à estrutura e à essência própria de um ente, aquilo que ele é em si
mesmo, sua identidade, sua diferença em face de outros entes, suas relações com
outros entes. Ontológico se refere ao estudo filosófico dos entes, à
investigação dos conceitos que nos permitam conhecer e determinar pelo
pensamento em que consistem as modalidades ônticas, quais os métodos adequados
para o estudo de cada uma delas, quais as categorias que se aplicam a cada uma
delas. Em resumo: ôntico diz respeito aos entes em sua existência própria;
ontológico diz respeito aos entes tomados como objetos de conhecimento. Como
existem diferentes esferas ou regiões ônticas, existirão ontologias regionais
que se ocupam com cada uma delas.
Em nossa experiência cotidiana,
distinguimos espontaneamente cinco grandes estruturas ônticas:
1. os entes materiais naturais
que chamamos de coisas reais (frutas, árvores, pedras, rios, estrelas,
areia, o Sol, a Lua, metais, etc.);
2. os entes materiais
artificiais a que também chamamos de coisas reais (nossa casa, mesas,
cadeiras, automóveis, telefone, computador, lâmpadas, chuveiro, roupas,
calçados, pratos, talheres, etc.);
3. os entes ideais, isto é,
aqueles que não são coisas materiais, mas idéias gerais, concebidas pelo
pensamento lógico, matemático, científico, filosófico e aos quais damos o nome
de idealidades (igualdade, diferença, número, raiz quadrada, círculo, conjunto,
classe, função, variável, freqüência, animal, vegetal, mineral, físico,
psíquico, matéria, energia, etc.);
4. os entes que podem ser
valorizados positiva ou negativamente e aos quais damos o nome de valores
(beleza, feiúra, vício, virtude, raro, comum, bom, mau, justo, injusto,
difícil, fácil, possível, impossível, verdadeiro, falso, desejável,
indesejável, etc.);
5. os entes que pertencem a uma
realidade diferente daquela a que pertencem as coisas, as idealidades e os
valores e aos quais damos o nome de metafísicos (a divindade ou o
absoluto; a identidade e a alteridade; o mundo como unidade, a relação e
diferenciação de todos os entes ou de todas as estruturas ônticas, etc.).
Como passamos da experiência
ôntica à investigação ontológica? Quando aquilo que faz parte de nossa vida
cotidiana se torna problemático, estranho, confuso: quando somos surpreendidos
pelas coisas e pelas pessoas, porque acontece algo inesperado ou imprevisível;
quando desejamos usar certas coisas e não sabemos como lidar com elas; enfim,
quando o significado costumeiro das coisas, das ações, dos valores ou das
pessoas perde sentido ou se mostra obscuro e confuso, ou quando o que nos foi
dito, ensinado e transmitido sobre eles já não nos satisfaz e queremos saber
mais e melhor.
Podemos, então, perguntar: O que
é isso que chamamos de coisa real (coisas naturais e coisas artificiais
ou culturais)? Diremos que uma coisa é chamada real porque pertence a um
conjunto de entes que possuem em comum a mesma estrutura ontológica: são entes
que existem fora de nós, estão no mundo diante de nós, isto é, são um ser;
são entes que existem quer nós os percebamos ou não, quer nós os usemos ou não;
estão presentes no mundo, mesmo que não estejam presentes para nós, pois podem
estar presentes para todos ou ficar presentes para nós em algum momento, isto
é, são uma realidade; são entes que começam a existir e podem
desaparecer, mesmo que seu desaparecimento seja muito mais lento do que o
nosso, são entes que duram e possuem duração, isto é, são temporais; são
entes que se transformam no tempo, são produzidos pela ação de outros e
produzem outros, obedecendo a certos princípios, isto é, são causas e efeitos,
são causalidades. Ser, realidade, temporalidade e causalidade são
conceitos ontológicos, que descrevem a essência dos entes chamados “coisas”.
No caso dos entes ideais, os conceitos
ontológicos são bastante diferentes. Em primeiro lugar, tais entes não são
coisas reais – este cavalo é uma coisa real, mas a idéia do
cavalo não é uma coisa, é um conceito e existe apenas como conceito. Em segundo
lugar, não causam uns aos outros, mas são entes que possuem uma definição
própria, podendo relacionar-se com outros – a idéia de homem não causa a de
cavalo, mas podem relacionar-se quando o historiador, por exemplo, mostra a
diferença entre sociedades cujo exército só possui a infantaria e aquelas que
inventaram a cavalaria; um círculo não causa um triângulo, mas podemos
inscrever triângulos num círculo para demonstrar um teorema ou resolver um
problema. São, portanto, entes relacionais, mas não são regidos pelo
conceito de causalidade. Em terceiro lugar, não existem do mesmo modo que as
coisas, isto é, não começam a existir, transformam-se e desaparecem – um
triângulo, uma inferência, a idéia de vegetal não nascem nem morrem, são intemporais.
Idealidade, relação e intemporalidade são os conceitos ontológicos para os
entes ideais.
No caso dos entes que são
valores, os conceitos ontológicos principais que os descrevem essencialmente
são a qualidade (um valor pode ser negativo ou afirmativo) e a polaridade
ou oposição (os valores sempre se apresentam como pares de opostos:
bom-mau, belo-feio, justo-injusto, verdadeiro-falso, etc.).
Observemos que o sentido das
coisas naturais muda com a mudança dos conhecimentos científicos, assim como
muda o sentido dos entes ideais (o que os gregos entendiam por número não é o
que a matemática moderna entende por número, por exemplo). No caso dos entes
reais artificiais, isto é, das coisas produzidas pelo homem com as técnicas e
as artes, a mudança não é apenas de sentido, mas das próprias coisas – entes técnicos
ficam obsoletos e caem em desuso quando outros, mais sofisticados, são
produzidos. O sentido dos valores também muda nas diferentes sociedades e
épocas: o que era inaceitável numa sociedade ou numa época pode tornar-se
aceitável e desejável noutra ou vice-versa.
Se considerarmos os entes na
perspectiva dos seres humanos, diremos que todos os entes – naturais,
artificiais, idéias, valores, metafísicos – são entes culturais e históricos,
submetidos ao tempo, à mudança, pois seu sentido – sua essência – muda com a
Cultura. No entanto, podemos observar também que as categorias ontológicas
(ser, realidade, causalidade, temporalidade, idealidade, intemporalidade,
relação, diferença, qualidade, quantidade, polaridade, oposição, etc.)
permanecem, ainda que mudem seus objetos. Assim, por exemplo, a ciência física
pode oferecer uma explicação inteiramente nova para o fenômeno da percepção das
cores. Contudo, a existência da luz, da cor, da percepção das coisas coloridas
permanece e é a essa permanência que se refere a ontologia. Uma sociedade pode
considerar o homossexualismo masculino um valor positivo (como foi o caso da
sociedade grega antiga) ou um valor negativo (como na sociedade inglesa
vitoriana, do século XIX), mas o ato de valorar positiva ou negativamente
alguma ação permanece e é essa permanência que interessa à ontologia.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
22 de março de 2017 às 10:15
"Eu tenho ódio da burguesia." Incrível, tal frase ´de autoria da mesma criatura que escreveu o texto acima.
7 de fevereiro de 2019 às 03:45
Tanto a frase quanto o texto se equivalem! Não há estranhamento algum entre eles!
14 de fevereiro de 2019 às 05:31
Ela odeia a classe média. Ela esta definhando, assim como tudo o está. O princípio de toda realização é o seu fim.
15 de fevereiro de 2019 às 15:59
Excelente síntese!
25 de novembro de 2020 às 21:58
De fato; é incrível crer que foi escrito por quem foi...