O humano como objeto de investigação
Embora as ciências humanas sejam recentes, a percepção de que os seres
humanos são diferentes das coisas naturais é antiga. Sob esse ponto de vista,
podemos dizer que, do século XV ao início do século XX, a investigação do
humano realizou-se de três maneiras diferentes:
1. Período do humanismo:
inicia-se no século XV com a ideia renascentista da dignidade do homem como centro do Universo, prossegue nos séculos
XVI e XVII com o estudo do homem como agente
moral, político e técnico-artístico, destinado a dominar e controlar a Natureza
e a sociedade, chegando ao século XVIII, quando surge a ideia de civilização, isto é, do homem como
razão que se aperfeiçoa e progride temporalmente através das instituições
sociais e políticas e do desenvolvimento das artes, das técnicas e dos ofícios.
O humanismo não separa homem e Natureza, mas considera o homem um ser natural
diferente dos demais, manifestando essa diferença como ser racional e livre,
agente ético, político, técnico e artístico.
2. Período do positivismo:
inicia-se no século XIX com Augusto Comte, para quem a humanidade atravessa
três etapas progressivas, indo da superstição religiosa à metafísica e à
teologia, para chegar, finalmente, à ciência positiva, ponto final do progresso
humano. Comte enfatiza a ideia do homem como um ser social e propõe o estudo
científico da sociedade: assim como há uma física da Natureza, deve haver uma
física do social, a sociologia, que
deve estudar os fatos humanos usando procedimentos, métodos e técnicas
empregados pelas ciências da Natureza.
A concepção positivista não termina no século XIX com Comte, mas será uma das
correntes mais poderosas e influentes nas ciências humanas em todo o século XX.
Assim, por exemplo, a psicologia positivista afirma que seu objeto não é o
psiquismo enquanto consciência, mas enquanto comportamento observável que pode ser tratado com o método
experimental das ciências naturais. A sociologia positivista (iniciada por
Comte e desenvolvida como ciência pelo francês Emile Durkheim) estuda a
sociedade como fato, afirmando que o fato social deve ser tratado como uma coisa, à qual são aplicados os
procedimentos de análise e síntese criados pelas ciências naturais. Os
elementos ou átomos sociais são os indivíduos, obtidos por via da análise; as
relações causais entre os indivíduos, recompostas por via da síntese,
constituem as instituições sociais (família, trabalho, religião, Estado, etc.).
3. Período do historicismo:
desenvolvido no final do século XIX e início do século XX por Dilthey, filósofo
e historiador alemão. Essa concepção, herdeira do idealismo alemão (Kant,
Fichte, Schelling, Hegel), insiste na diferença profunda entre homem e Natureza
e entre ciências naturais e humanas, chamadas por Dilthey de ciências do
espírito ou da cultura. Os fatos humanos são históricos, dotados de valor e de
sentido, de significação e finalidade e devem ser estudados com essas
características que os distinguem dos fatos naturais. As ciências do espírito
ou da cultura não podem e não devem usar o método da observação-experimentação,
mas devem criar o método da explicação e compreensão do sentido dos fatos humanos, encontrando a causalidade histórica que
os governa.
O fato humano é histórico ou temporal: surge no tempo e se transforma no
tempo. Em cada época histórica, os fatos psíquicos, sociais, políticos,
religiosos, econômicos, técnicos e artísticos possuem as mesmas causas gerais,
o mesmo sentido e seguem os mesmos valores, devendo ser compreendidos,
simultaneamente, como particularidades históricas ou “visões de mundo”
específicas ou autônomas e como etapas ou fases do desenvolvimento geral da
humanidade, isto é, de um processo causal universal, que é o progresso.
O historicismo resultou em dois problemas que não puderam ser resolvidos
por seus adeptos: o relativismo (numa época em que as ciências humanas buscavam
a universalidade de seus conceitos e métodos) e a subordinação a uma filosofia
da História (numa época em que as ciências humanas pretendiam separar-se da
Filosofia).
Relativismo: as leis científicas são válidas apenas para
uma determinada época e cultura, não podendo ser universalizadas. Filosofia da História: os indivíduos
humanos e as instituições socioculturais só são compreensíveis se seu estudo
científico subordinar-se a uma teoria geral da História que considere cada
formação sociocultural seja como “visão de mundo” particular, seja como etapa de
um processo histórico universal.
Para escapar dessas conseqüências, o sociólogo alemão Max Weber propôs que
as ciências humanas – no caso, a sociologia e a economia – trabalhassem seus
objetos como tipos ideais e não como
fatos empíricos. O tipo ideal, como
o nome indica, oferece construções conceituais puras, que permitem compreender
e interpretar fatos particulares observáveis. Assim, por exemplo, o Estado se
apresenta como uma forma de dominação social e política sob vários tipos ideais
(dominação carismática, dominação pessoal burocrática, etc.), cabendo ao
cientista verificar sob qual tipo encontra-se o caso particular investigado.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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