"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

São possíveis ciências humanas?


Embora seja evidente que toda e qualquer ciência é humana, porque resulta da atividade humana de conhecimento, a expressão ciências humanas refere-se àquelas ciências que têm o próprio ser humano como objeto. A situação de tais ciências é muito especial. Em primeiro lugar, porque seu objeto é bastante recente: o homem como objeto científico é uma ideia surgida apenas no século XIX. Até então, tudo quanto se referia ao humano era estudado pela Filosofia.  

Em segundo lugar, porque surgiram depois que as ciências matemáticas e naturais estavam constituídas e já haviam definido a ideia de cientificidade, de métodos e conhecimentos científicos, de modo que as ciências humanas foram levadas a imitar e copiar o que aquelas ciências haviam estabelecido, tratando o homem como uma coisa natural matematizável e experimentável. Em outras palavras, para ganhar respeitabilidade científica, as disciplinas conhecidas como ciências humanas procuraram estudar seu objeto empregando conceitos, métodos e técnicas propostos pelas ciências da Natureza.
Em terceiro lugar, por terem surgido no período em que prevalecia a concepção empirista e determinista da ciência, também procuraram tratar o objeto humano usando os modelos hipotético-indutivos e experimentais de estilo empirista, e buscavam leis causais necessárias e universais para os fenômenos humanos. Como, entretanto, não era possível realizar uma transposição integral e perfeita dos métodos, das técnicas e das teorias naturais para os estudos dos fatos humanos, as ciências humanas acabaram trabalhando por analogia com as ciências naturais e seus resultados tornaram-se muito contestáveis e pouco científicos.
Essa situação levou muitos cientistas e filósofos a duvidar da possibilidade de ciências que tivessem o homem como objeto. Quais as principais objeções feitas à possibilidade das ciências humanas?
● A ciência lida com fatos observáveis, isto é, com seres e acontecimentos que, nas condições especiais de laboratório, são objetos de experimentação. Como observar-experimentar, por exemplo, a consciência humana individual, que seria o objeto da psicologia? Ou uma sociedade, objeto da sociologia? Ou uma época passada, objeto da história?
● A ciência busca as leis objetivas gerais, universais e necessárias dos fatos. Como estabelecer leis objetivas para o que é essencialmente subjetivo, como o psiquismo humano? Como estabelecer leis universais para algo que é particular, como é o caso de uma sociedade humana? Como estabelecer leis necessárias para o que acontece uma única vez, como é o caso do acontecimento histórico?
● A ciência opera por análise (decomposição de um fato complexo em elementos simples) e síntese (recomposição do fato complexo por seleção dos elementos simples, distinguindo os essenciais dos acidentais). Como analisar e sintetizar o psiquismo humano, uma sociedade, um acontecimento histórico?
● A ciência lida com fatos regidos pela necessidade causal ou pelo princípio do determinismo universal. O homem é dotado de razão, vontade e liberdade, é capaz de criar fins e valores, de escolher entre várias opções possíveis. Como dar uma explicação científica necessária àquilo que, por essência, é contingente, pois é livre e age por liberdade?
● A ciência lida com fatos objetivos, isto é, com os fenômenos, depois que foram purificados de todos os elementos subjetivos, de todas as qualidades sensíveis, de todas as opiniões e todos os sentimentos, de todos os dados afetivos e valorativos. Ora, o humano é justamente o subjetivo, o sensível, o afetivo, o valorativo, o opinativo. Como transformá-lo em objetividade, sem destruir sua principal característica, a subjetividade?


Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed. Ática, 2000.

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