São possíveis ciências humanas?
Embora seja evidente que toda e
qualquer ciência é humana, porque resulta da atividade humana de conhecimento,
a expressão ciências humanas
refere-se àquelas ciências que têm o próprio ser humano como objeto. A situação
de tais ciências é muito especial. Em primeiro lugar, porque seu objeto é
bastante recente: o homem como objeto científico é uma ideia surgida apenas no
século XIX. Até então, tudo quanto se referia ao humano era estudado pela
Filosofia.
Em segundo lugar, porque
surgiram depois que as ciências matemáticas e naturais estavam constituídas e
já haviam definido a ideia de cientificidade, de métodos e conhecimentos
científicos, de modo que as ciências humanas foram levadas a imitar e copiar o
que aquelas ciências haviam estabelecido, tratando o homem como uma coisa
natural matematizável e experimentável. Em outras palavras, para ganhar
respeitabilidade científica, as disciplinas conhecidas como ciências humanas
procuraram estudar seu objeto empregando conceitos, métodos e técnicas
propostos pelas ciências da Natureza.
Em terceiro lugar, por terem
surgido no período em que prevalecia a concepção empirista e determinista da
ciência, também procuraram tratar o objeto humano usando os modelos
hipotético-indutivos e experimentais de estilo empirista, e buscavam leis
causais necessárias e universais para os fenômenos humanos. Como, entretanto,
não era possível realizar uma transposição integral e perfeita dos métodos, das
técnicas e das teorias naturais para os estudos dos fatos humanos, as ciências
humanas acabaram trabalhando por analogia
com as ciências naturais e seus resultados tornaram-se muito contestáveis e
pouco científicos.
Essa situação levou muitos
cientistas e filósofos a duvidar da possibilidade de ciências que tivessem o
homem como objeto. Quais as principais objeções feitas à possibilidade das
ciências humanas?
● A ciência lida com fatos observáveis, isto é, com seres e acontecimentos
que, nas condições especiais de laboratório, são objetos de experimentação.
Como observar-experimentar, por exemplo, a consciência humana individual, que
seria o objeto da psicologia? Ou uma sociedade, objeto da sociologia? Ou uma
época passada, objeto da história?
● A ciência busca as leis objetivas gerais, universais e necessárias dos
fatos. Como estabelecer leis objetivas para o que é essencialmente subjetivo,
como o psiquismo humano? Como estabelecer leis universais para algo que é
particular, como é o caso de uma sociedade humana? Como estabelecer leis
necessárias para o que acontece uma única vez, como é o caso do acontecimento
histórico?
● A ciência opera por análise (decomposição de um fato complexo em
elementos simples) e síntese (recomposição do fato complexo por seleção dos
elementos simples, distinguindo os essenciais dos acidentais). Como analisar e
sintetizar o psiquismo humano, uma sociedade, um acontecimento histórico?
● A ciência lida com fatos regidos pela necessidade causal ou pelo
princípio do determinismo universal. O homem é dotado de razão, vontade e
liberdade, é capaz de criar fins e valores, de escolher entre várias opções
possíveis. Como dar uma explicação científica necessária àquilo que, por
essência, é contingente, pois é livre e age por liberdade?
● A ciência lida com fatos objetivos, isto é, com os fenômenos, depois que
foram purificados de todos os elementos subjetivos, de todas as qualidades
sensíveis, de todas as opiniões e todos os sentimentos, de todos os dados
afetivos e valorativos. Ora, o humano é justamente o subjetivo, o sensível, o
afetivo, o valorativo, o opinativo. Como transformá-lo em objetividade, sem destruir
sua principal característica, a subjetividade?
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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