"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

Descartes (Parte 02/04)


— Então ele foi um homem à frente de seu tempo.
— Sim, se bem que essas questões já pairavam no ar, por assim dizer, na época em que ele viveu. No que se refere à questão de como podemos obter um conhecimento seguro, muitos expressavam o seu total ceticismo filosófico. Para estes céticos, o homem simplesmente tinha de se habituar com a idéia de não saber nada. Mas Descartes não se conformava com isto. Aliás, se tivesse se conformado, não teria sido um filósofo de verdade. Novamente podemos traçar aqui um paralelo com Sócrates, que nunca se deu por satisfeito com o ceticismo dos sofistas. Precisamente na época em que Descartes viveu, a nova ciência natural tinha desenvolvido um método que, a seu ver, levava a uma descrição exata e muito confiável dos processos da natureza. Descartes perguntou-se, então, se não haveria um método igualmente exato e seguro para a reflexão filosófica.
— Entendo.

— Mas este era apenas um problema. A nova física também tinha colocado a questão da natureza da matéria, isto é, a questão de saber o que determina os processos físicos na natureza. Mais e mais pessoas defendiam uma compreensão materialista da natureza. E quanto mais mecanicista era a compreensão do mundo físico, mais urgente se tornava a questão da relação entre corpo e alma. Até o século XVII, a alma tinha sido descrita, de modo geral, como uma espécie de “espírito vital”, presente em todos os seres vivos. Aliás, o sentido original de “alma” e “espírito” também era o de um “sopro de vida”. Isto vale para quase todas as línguas indo-européias. Aristóteles considerava a alma algo que existe em todo o organismo como “princípio vital” desse organismo, sendo impossível, portanto, concebê-la fora do corpo. Assim, ele podia falar de uma “alma vegetal” e de uma “alma animal”. Somente no século XVII é que os filósofos introduziram uma separação radical entre corpo e alma. E isto porque todos os objetos físicos, inclusive o corpo do homem e do animal, eram explicados como um processo mecânico. Mas a alma humana não poderia fazer parte desta “maquinaria do corpo”, poderia? E o que era ela, então? Para completar, faltava explicar como algo “espiritual” era capaz de colocar em marcha um processo mecânico.
— De fato, este é um pensamento muito estranho.
— O que você quer dizer?
— Se decido erguer o meu braço, o meu braço se ergue. Se decido correr até o ônibus, no momento seguinte minhas pernas parecem ter se multiplicado por dez. Às vezes penso em algo triste, e logo me vêm as lágrimas. Tem de haver, portanto, alguma relação misteriosa entre o corpo e a consciência.
— Exatamente este problema é que levou Descartes a refletir. Como Platão, ele estava convencido de que havia uma divisão rígida entre espírito e matéria. Mas Platão não foi capaz de responder como o espírito, ou a alma, influenciava o corpo.
— Eu também não, e por isso estou curiosa para saber o que Descartes descobriu.
— Vamos acompanhar suas próprias reflexões.
Alberto apontou para o livro que estava entre eles sobre a mesinha e prosseguiu:
— Neste pequeno livro, Discurso do método, Descartes levanta a questão de saber que método filosófico um filósofo deve usar para resolver um problema filosófico. A ciência natural já tinha desenvolvido seu novo método…
- Você já disse isso.
— Primeiro, Descartes explica que não devemos considerar nada verdadeiro, enquanto nós mesmos não tivermos reconhecido claramente que se trata de algo verdadeiro. Para conseguirmos isto, temos de decompor um problema complicado em tantas partes isoladas quanto possível. E então podemos começar pelos pensamentos mais simples. Podemos dizer que cada pensamento deve ser “pesado e medido”, mais ou menos como Galileu queria medir tudo e transformar em mensurável o que fosse incomensurável. Descartes acreditava que o filósofo, para construir um novo conhecimento, devia partir dos aspectos mais simples para chegar aos mais complicados. Por fim, ele deveria testar através de cálculos e mais cálculos se nada tinha sido deixado de fora. Só assim, acreditava Descartes, se poderia chegar a conclusões filosóficas.
— Isto me soa como uma tarefa matemática.
— Sim. Descartes queria aplicar o “método matemático” à reflexão filosófica. Ele queria provar as verdades filosóficas mais ou menos como se prova um princípio da matemática, empregando para tanto a mesma ferramenta que usamos no trabalho com números: a razão. A razão é a única coisa capaz de nos levar a um conhecimento seguro, pois nada nos garante que nossos sentidos são confiáveis. Já mencionamos o parentesco entre Descartes e Platão. Pois bem: Platão também afirmara que a matemática e as relações numéricas nos levam a um conhecimento mais seguro do que aquilo que nos dizem os nossos sentidos.
— Mas é possível responder desse jeito a perguntas filosóficas?

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