Descartes (Parte 04/04)
Registro da graduação de Descartes em 1616
— Mas esta é uma forma muito especial de pensar.
— Esta é uma forma de pensar marcadamente “racionalista”. Como Sócrates e Platão, Descartes via uma relação entre o pensamento e a existência. Quanto mais evidente uma coisa é para o pensamento, tanto mais certo é o fato de ela existir.
— Bem, até agora ele reconheceu que é um ser pensante e que existe um ser perfeito.
— E a partir daí ele prossegue. Todas as noções que temos da realidade exterior, como o Sol e a Lua, por exemplo, poderiam não passar de imagens oníricas. Mas a realidade exterior também possui características que podemos conhecer por meio de nossa razão. Por exemplo, as relações matemáticas, ou seja, o que pode ser medido: comprimento, largura e profundidade. Essas propriedades quantitativas são tão evidentes para a razão quanto o fato de que sou um ser pensante. Já as propriedades qualitativas, tais como cor, odor e sabor, estão relacionadas aos nossos sentidos e não descrevem, na verdade, uma realidade exterior.
— Quer dizer que a natureza não passa de um sonho?
— Não, e neste ponto Descartes retoma nossa idéia de um ser perfeito. Quando nossa razão reconhece alguma coisa com clareza e nitidez, isto significa que a coisa reconhecida corresponde exatamente à forma como nossa razão a percebeu. Pois um Deus perfeito não iria querer nos pregar peças. Descartes invoca a “garantia de Deus” para o fato de que tudo aquilo que reconhecemos por meio de nossa razão corresponde a uma realidade.
— Muito bem. Então ele já chegou à conclusão de que é um ser pensante, de que Deus existe e de que também existe uma realidade exterior.
— Só que entre a realidade exterior e a realidade dos pensamentos existe uma diferença fundamental. Descartes pode, então, tomar como ponto de partida o fato de que existem duas formas distintas de realidade, ou duas substâncias. A primeira substância é o pensamento, ou a alma, a outra é a extensão, ou a matéria. A alma é consciência pura, não ocupa lugar no espaço e, portanto, não pode ser decomposta em unidades menores. A matéria, ao contrário, é só extensão, ocupa lugar no espaço e pode por isso ser decomposta em partes menores, mas não possui consciência. Descartes diz que ambas as substâncias provêm de Deus, pois só Deus existe independentemente de qualquer outra coisa. Mas ainda que pensamento e extensão provenham de Deus, trata-se de duas substâncias completamente independentes uma da outra. O pensamento é livre na sua relação com a matéria, e vice-versa: os processos materiais também operam de forma totalmente independente.
— E assim a criação de Deus foi dividida por dois.
— Exatamente. Chamamos Descartes de dualista, o que significa que ele estabelece uma nítida linha divisória entre a realidade material e a espiritual. Por exemplo, só o homem tem uma alma. Os animais pertencem completamente à realidade material. Sua vida e seus movimentos são absolutamente mecânicos. Descartes considerava os animais uma espécie de máquinas complicadas. Também no que se refere à realidade material, portanto, sua noção de realidade era absolutamente mecanicista. Exatamente como os materialistas.
— Duvido muito que Hermes não passe de uma máquina ou de uma espécie de robô. Certamente Descartes não gostou nunca de um animal. E nós? Também nós somos autômatos?
— Sim e não. Descartes chegou à conclusão de que o homem é um ser dual, que tanto pensa quanto ocupa lugar no espaço. O homem possui, portanto, uma alma e um corpo físico. Santo Agostinho e são Tomás de Aquino já haviam formulado algo parecido. Eles acreditavam que o homem possuía um corpo, como os animais, mas também um espírito, como os anjos. Descartes considerava o corpo humano o resultado de uma mecânica arrojada. Tecnologia de ponta, como diríamos hoje. Mas o homem possui também uma alma capaz de operar independentemente de seu corpo. Os processos do corpo não possuem tal liberdade, pois obedecem às suas próprias leis. Mas aquilo que percebemos com nossa razão não acontece no corpo, e sim na alma, na mente, independentemente da realidade material. Talvez eu deva acrescentar ainda que Descartes não excluía a idéia de que os animais pudessem pensar. Só que, se é verdade que eles possuem esta faculdade, então vale para eles a mesma divisão entre pensamento e extensão.
— Já conversamos sobre isso. Quando decido correr até o ônibus, toda a “máquina” se põe em movimento. E se apesar disso perco o ônibus, começo a chorar.
— Nem mesmo Descartes podia contestar o fato de que quase sempre ocorre uma interação entre alma e corpo. Para ele, enquanto a alma habita o corpo ela está ligada a ele por um órgão muito especial, uma glândula localizada no cérebro, dentro da qual ocorre esta constante interação entre espírito e matéria. Assim, para Descartes, a alma era constantemente perturbada por sentimentos e sensações que tinham a ver com as necessidades do corpo. Mas o objetivo deve ser entregar à alma o controle de tudo, pois, independentemente de serem fortes minhas dores de barriga, a soma dos ângulos de um triângulo será sempre de 180º. Desta forma, o pensamento pode se elevar para além das necessidades do corpo e se comportar “racionalmente”. Deste ponto de vista, a alma é totalmente independente do corpo. Nossas pernas podem envelhecer e se tornar fracas, nossas costas podem se curvar e nossos dentes começar a cair, mas a soma de dois mais dois será sempre quatro, enquanto em nós restar um lampejo de razão. Pois a razão não envelhece nem se debilita. Nosso corpo, ao contrário, sim. Para Descartes, a alma é a própria razão. Os afetos e sensações menos elevados, tais como desejo e ódio, estão intimamente ligados às funções do corpo e, portanto, a uma realidade material.
— Não consigo aceitar com facilidade o fato de Descartes comparar o corpo com uma máquina ou com um autômato.
— O motivo desta comparação é o fato de que na época de Descartes as pessoas estavam totalmente fascinadas pelas máquinas e pelas engrenagens dos relógios, que pareciam funcionar sozinhos. A palavra “autômato” designa exatamente alguma coisa que se movimenta por si mesma. Só que é claro que o fato de elas funcionarem por si mesmas não passava de uma ilusão. Um relógio astronômico, por exemplo, é construído e recebe corda das mãos do homem. Descartes dizia que tais aparelhos artificiais eram constituídos simplesmente por algumas poucas peças, se comparados com a quantidade de ossos, músculos, nervos, artérias e veias de que se compõe o corpo de homens e animais. Por que, então, Deus não seria capaz de construir o corpo de homens e animais com base em leis mecânicas?
— Hoje em dias muitas pessoas falam da “inteligência artificial”.
— Sim, elas estão pensando nos autômatos de nossa época. Construímos máquinas que às vezes realmente nos convencem de sua inteligência. Tais máquinas certamente teriam colocado em pânico o nosso Descartes. Talvez ele tivesse se perguntado se a razão humana seria realmente tão livre e independente quanto ele pensava. Pois há filósofos que consideram a vida da alma humana tão pouco livre quanto os processos do corpo. É claro que a alma de uma pessoa é infinitamente mais complicada do que qualquer programa de computador, mas há os que acham que em princípio somos tão dependentes quanto tais programas.
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