"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

Descartes (Parte 03/04)


— Vamos voltar ao raciocínio do próprio Descartes. Seu objetivo é, portanto, chegar a um conhecimento seguro sobre a natureza da vida e a primeira coisa que ele afirma é que nosso ponto de partida deve ser duvidar de tudo. Isto porque, como vimos, ele não queria construir seu sistema filosófico sobre solo arenoso.
— Sim, pois na areia o alicerce cede e toda a casa pode cair.

— Obrigado pela observação, Sofia. Bem, Descartes não achava certo duvidar de tudo, mas achava que em princípio podíamos duvidar de tudo. Afinal, o fato de lermos Aristóteles ou Platão não significa necessariamente um avanço em nossa busca filosófica. Talvez a leitura desses dois filósofos nos ajude a ampliar nosso conhecimento da história, mas não necessariamente do mundo. Com o perdão do trocadilho, Descartes achava importante descartar primeiro todo o conhecimento constituído antes dele, para só então começar a trabalhar em seu projeto filosófico.
— Ele queria limpar o terreno dos velhos materiais, antes de começar a construir a nova casa, não é?
— Sim, e para ter certeza de que o novo edifício de idéias se sustentaria, ele só queria empregar materiais novos e sólidos. Mas as dúvidas de Descartes iam mais fundo ainda. Ele achava que não podíamos confiar nem mesmo no que nos diziam os nossos sentidos. Afinal, podia muito bem ser que eles nos enganassem o tempo todo.
— Como isto pode ser possível?
— Mesmo quando sonhamos, acreditamos viver algo de real. E existe alguma coisa que marque a diferença entre as sensações que experimentamos no sonho das que vivemos quando estamos acordados? “Quando penso com cuidado no assunto, não encontro uma única característica capaz de marcar a diferença entre o estado acordado e o sonho”, escreve Descartes. E prossegue: “Tanto eles se parecem, que fico completamente perplexo e não sei se estou sonhando neste momento”.
— Jeppe vom Berge também acreditava ter sonhado que dormira na cama de um barão.
— E quando estava na cama do barão achava que sua vida como pobre camponês não passava de um sonho. É por isso que Descartes acaba duvidando de tudo. Antes dele, muitos outros filósofos tinham chegado ao fim de suas observações filosóficas exatamente neste ponto.
— O que significa que eles não foram muito longe.
— Descartes, porém, estabeleceu este ponto como o marco zero para a sua reflexão. Ele chegou à conclusão de que a única coisa sobre a qual podia ter certeza era a de que duvidava de tudo. E foi então que compreendeu o seguinte: se havia um fato de que ele podia ter certeza, este fato era o de que ele duvidava de tudo. Se ele duvidava, isto significava que ele pensava. E se ele pensava, isto significava que ele era um ser pensante. Ou, como ele mesmo dizia: “Cogito, ergo sum”.
— E o que significa isto?
— Penso, logo existo.
— Não me surpreende nada que ele tenha chegado a esta conclusão.
— Pode ser. Mas note bem com que certeza intuitiva ele de repente se percebe como um ser pensante. Talvez você ainda se lembre de que Platão considerava mais real a existência daquilo que percebemos com nossa razão do que daquilo que percebemos com nossos sentidos. Para Descartes era a mesma coisa. Ele não apenas entende que é um Eu pensante, mas entende, ao mesmo tempo, que este Eu pensante é mais real do que o mundo físico que percebemos através de nossos sentidos. E a partir daí ele vai mais adiante, Sofia. Descartes está longe de concluir sua pesquisa filosófica.
— Então vamos continuar…
— Descartes pergunta-se, então, se esta mesma certeza intuitiva pode levá-lo a saber mais do que o fato de que é um ser pensante. Ele reconhece que também possui uma clara e nítida idéia do que seja um ser perfeito. Trata-se de uma idéia que ele sempre teve e para Descartes é evidente que tal noção não poderia vir dele próprio. Descartes afirmava que a noção do que fosse um ser perfeito não poderia brotar espontaneamente de um ser imperfeito. Assim, a noção de um ser perfeito tinha de vir, naturalmente, de outro ser perfeito. Em outras palavras: tinha de vir de Deus. Para Descartes, portanto, a existência de Deus é algo tão evidente quanto o fato de que alguém que pensa é um ser, um Eu pensante.
— Acho que agora ele está sendo um pouco precipitado ao tirar suas conclusões. Ele que, no começo, tinha sido tão cuidadoso!
— É verdade. Muitos chegaram mesmo a apontar isto como sendo justamente o ponto mais fraco de Descartes. Mas você disse “conclusões”. Na verdade, não se trata aqui se provar coisa alguma. Descartes está dizendo apenas que todos nós temos uma idéia do que seja um ser perfeito e que nesta própria idéia está embutido o fato de que este ser perfeito deve existir. Pois um ser perfeito não seria perfeito se não existisse. Além disso, não teríamos uma idéia do que seja um ser perfeito se tal ser não existisse. Isto porque somos imperfeitos e, por isso, a idéia de perfeição não pode brotar de nós mesmos assim, espontaneamente. A idéia de um Deus é, segundo Descartes, uma idéia inata, que nos é “plantada”, por assim dizer, no momento em que nascemos, “como a marca que o artista coloca em sua obra”, conforme ele mesmo escreve.
— Mas mesmo que eu tenha uma idéia do que possa ser um crocofante, isto não significa que existam crocofantes.
— Descartes teria dito que a existência de um crocofante não é inerente ao conceito “crocofante”, ao passo que a existência de um ser “perfeito” é inerente ao conceito de “ser perfeito”. Para Descartes, isto é tão certo quanto é inerente à própria idéia de um círculo o fato de todos os pontos deste círculo estarem à mesma distância de seu centro. Você não pode estar falando de um círculo, portanto, se a figura sobre a qual você fala não atender a esta premissa. Da mesma forma, você não pode falar de um ser perfeito se a ele falta a mais importante de todas as características: a existência.

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