"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

O Iluminismo (Parte 01/03)


(…)
Sofia fechou a porta e colocou o boletim cheio de boas notas sobre a mesa da cozinha. Depois atravessou de gatinhas a sebe do jardim e se embrenhou na floresta.
Mais uma vez teve de atravessar o lago a remo. Alberto estava sentado à porta da cabana quando ela chegou. Ele acenou para que ela viesse se sentar a seu lado.
O tempo estava bom, se bem que do lago vinha uma corrente de ar frio, penetrante. O lago parecia não ter se recuperado ainda da tormenta do dia anterior. 

— Vamos direto ao assunto — disse Alberto. — Depois de Hume, o alemão Kant foi o próximo grande construtor de um sistema filosófico. Mas também a França teve muitos pensadores importantes no século XVIII. Podemos dizer que na primeira metade do século XVIII o centro filosófico da Europa esteve na Inglaterra, em meados do século se deslocou para a França e em fins do século para a Alemanha.
— Para resumir, um deslocamento da parte ocidental para a oriental.
— Exatamente. Vou resumir de forma extremamente breve alguns pensamentos que eram comuns a todos os filósofos do Iluminismo francês. Trata-se aqui de nomes importantes como Montesquieu, Voltaire, Rousseau e muitos, muitos outros. Vou me concentrar em sete pontos.
(…)
— (…) Muito bem, o primeiro conceito-chave é, portanto, a revolta contra as autoridades. Muitos dos filósofos do Iluminismo francês tinham visitado a Inglaterra, que em certo sentido era mais liberal do que a própria França. A ciência natural inglesa, sobretudo Newton e sua física universal, fascinou esses filósofos franceses. Mas também os filósofos ingleses foram fonte de inspiração para eles, principalmente Locke e sua filosofia política. De volta à sua pátria, a França, eles começaram pouco a pouco a se rebelar contra o velho autoritarismo. Eles achavam que era muito importante permanecerem céticos a todas as verdades herdadas e acreditavam que o próprio indivíduo deveria encontrar respostas às suas perguntas. Nesse ponto, a fonte de inspiração era a tradição de Descartes.
— Pois ele propunha a reconstrução de tudo de baixo para cima.
— Exatamente. A revolta contra o velho autoritarismo não tardou a se voltar também contra o poder da Igreja, do rei e da aristocracia. No século XVIII, essas instituições eram muito mais poderosas na França do que na Inglaterra.
— E então veio a Revolução.
— Sim, no ano de 1789. As novas idéias, porém, vieram mais cedo. Nosso próximo conceito chave é o racionalismo.
— Eu pensei que o racionalismo tivesse sido enterrado junto com Hume.
— Hume só morreu em 1776, vinte anos depois de Montesquieu e só dois anos antes de Voltaire e de Rousseau, que morreram em 1778. Talvez você se lembre de que Locke não foi um empírico muito coerente. Ele achava, por exemplo, que a crença em Deus e em certas normas morais era parte integrante da consciência humana. Esta idéia também foi o núcleo da filosofia do Iluminismo francês.
— Você também disse que os franceses sempre foram mais racionalistas do que os ingleses.
— E esta diferença remonta à Idade Média. Quando os ingleses falam de common sense, os franceses gostam de falar de évidence. A expressão inglesa pode ser traduzida por “o que é do conhecimento de todos” e a expressão francesa por “evidência”. O common sense apelava à razão, e o fato de ela existir era évident.
— Entendo.

Extratos da obra de GAARDER, Jostein.
O Mundo de Sofia. Romance da História da Filosofia.
São Paulo: Cia das Letras, 1996.

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