"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

Berkeley


(…)
Alberto não respondeu. Atravessou a sala e sentou-se na poltrona, ao lado da mesinha.
— Ainda precisamos conversar um pouco sobre Berkeley — disse ele.
Sofia já tinha se sentado. Sem querer, flagrou-se roendo as unhas.
— George Berkeley foi um bispo irlandês, que viveu entre 1685 e 1753 — começou Alberto, e depois ficou um bom tempo sem dizer mais nada.
— Berkeley foi um bispo irlandês… — repetiu Sofia para retomar o fio da meada.
— Mas ele foi também um filósofo… 

— Sim?
— …para quem a filosofia e a ciência de seu tempo constituíam uma ameaça para a visão cristã do mundo. Além disso, Berkeley achava que o materialismo, cada vez mais consistente e difundido, colocava em risco a crença cristã de que Deus criou e mantém vivo tudo o que existe na natureza…
— Sim?
— Ao mesmo tempo, porém, Berkeley foi um dos mais coerentes representantes do empirismo.
— Ele também era da opinião de que não podemos saber do mundo mais do que percebemos pelos nossos sentidos?
— E não apenas isto. Berkeley dizia que as coisas do mundo são, de fato, exatamente da forma como nós as percebemos, mas que não são “coisas”.
— Explique um pouco melhor.
— Você ainda se lembra de que Locke chamara a atenção para o fato de não podermos afirmar nada sobre as “qualidades secundárias” das coisas. Nesse caso, não podemos afirmar que uma maçã é verde ou azeda. Tudo o que podemos dizer é que nós a percebemos assim. Mas Locke disse também que as “qualidades primárias”, tais como a densidade, o peso, a gravidade, realmente pertencem à realidade que nos cerca. Esta realidade exterior teria, portanto, uma “substância” física.
— Lembro-me muito bem disso. Aliás, acho que Locke conseguiu mostrar uma diferença muito importante.
— Ah, Sofia, se fosse só isso…
— Continue!
— Locke, assim como Descartes e Spinoza, considerava o mundo físico, portanto, uma realidade.
— Sim?
— É justamente isto que Berkeley coloca em dúvida. E ele o faz baseado num empirismo muito coerente. Berkeley diz que tudo o que existe é só o que percebemos, mas que aquilo que percebemos não é “matéria” ou “substância”. Não percebemos as coisas como “coisas” tangíveis. Para ele, pressupor que aquilo que percebemos possui uma “substância” que lhe é inerente não passa de uma conclusão precipitada. Nesse caso, faltam-nos meios para provar o que afirmamos com base na experiência.
— Besteira! Dê uma olhada nisso.
E, dizendo isto, Sofia bateu com a mão fechada na mesa.
— Ai! — deixou escapar, pois não previu a intensidade da batida. — Isto aqui não é a prova de que a mesa é uma mesa de verdade e de que ela é sim matéria ou substância?
— O que você sentiu quando bateu com o punho fechado na mesa?
— O impacto da mão contra uma coisa dura.
— Você experimentou nitidamente a sensação de bater em alguma coisa dura, mas não sentiu a verdadeira matéria da mesa. Da mesma forma, você pode sonhar que está batendo em alguma coisa dura, embora no sonho esta coisa não exista, não é mesmo?
— É… no sonho não existe.
— Você deve saber que é perfeitamente possível induzir alguém a achar que ele ou ela é capaz de “sentir” qualquer tipo de coisa. Uma pessoa pode ser hipnotizada e achar que sente calor e frio, ou então que está sendo acariciada ou levando um soco na cara.
— Mas se não foi a solidez da mesa em si, o que me levou a sentir o que eu senti?
— Berkeley acreditava que foi a vontade ou o espírito. Ele acreditava também que todas as nossas idéias tinham uma causa fora de nossa consciência, mas que esta causa não era de natureza material. Para Berkeley, esta causa era de natureza espiritual.
Sofia recomeçara a roer as unhas. Alberto continuou:
— Segundo Berkeley, portanto, minha alma pode ser a causa das minhas próprias idéias, assim como acontece quando sonho, mas só outra vontade, só outro espírito pode ser a causa das idéias que formam nosso mundo material. Berkeley dizia que tudo vinha do espírito “onipresente, por meio do qual tudo existe”.
— E que espírito seria este?
— É claro que Berkeley está pensando em Deus. Ele chegou mesmo a afirmar que percebemos com mais nitidez a existência de Deus do que a de qualquer outra pessoa.
— Quer dizer que não podemos ter certeza de que existimos?
— Bem… para Berkeley, tudo o que vemos e sentimos é um efeito da força de Deus, pois Deus está presente no fundo de nossa consciência e é a causa de toda a multiplicidade de idéias e sensações a que estamos constantemente sujeitos. Toda a natureza que nos cerca, e também toda a nossa existência, estariam portanto em Deus. Ele seria a causa única de tudo o que existe.
— Estou totalmente confusa, para dizer o mínimo.
— “Ser ou não ser” não seria, portanto, a questão central. Importante seria perguntar também o quê somos. Será que somos pessoas de verdade, feitas de carne e osso? Será que o nosso mundo consiste em coisas reais, ou será que tudo o que nos cerca não passa de consciência?
De novo Sofia começou a roer as unhas. Alberto continuou:
— Pois Berkeley não duvida apenas da realidade material. Ele duvida também que o tempo e o espaço possuam uma existência absoluta ou autônoma. Nossa percepção de tempo e espaço pode estar apenas em nossa consciência. Uma ou duas semanas para nós não precisam ser necessariamente uma ou duas semanas para Deus…

Extratos da obra de GAARDER, Jostein.
O Mundo de Sofia. Romance da História da Filosofia.
São Paulo: Cia das Letras, 1996.

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