Consciência imaginativa
Distanciando-se da tradição, a fenomenologia fala na consciência
imaginativa como uma forma de consciência diferente da percepção e da
memória, tendo como ato o imaginar e como conteúdo, ou correlato, o imaginário
ou o objeto-em-imagem. A imaginação é a capacidade da consciência para fazer
surgir os objetos imaginários ou objetos-em-imagem.
Pela imaginação, relacionamo-nos com o ausente e com o
inexistente. Perceber este livro é relacionar-se com sua presença e
existência. Imaginar um livro é relacionar-se ou com a imagem do livro
percebido ou com um livro ausente e inexistente, que ainda não foi escrito e é
apenas o-livro-possível. Graças à imaginação, abre-se para nós o tempo futuro e
o campo dos possíveis.
A percepção observa as coisas, as pessoas, as situações.
Observar é jamais ter uma coisa, pessoa ou situação de uma só vez e por
inteiro. A percepção observa porque alcança as coisas, as pessoas, as situações
por perfis, perspectivas, faces diferentes que vão sendo articuladas umas às
outras, num processo sem fim, podendo sempre enriquecer nosso conhecimento,
perceber aspectos novos, ir “completando” o percebido com novos dados ou
aspectos.
A imaginação, ao contrário, não observa o objeto: cada
imagem põe o objeto por inteiro. O filósofo francês Sartre dá um exemplo:
quando imagino uma rua ou um edifício, tenho de uma só vez a rua-em-imagem ou o
edifício-em-imagem, cada um deles possui uma única face e é essa que existe em
imagem. Podemos ter muitas imagens da mesma rua ou do mesmo edifício, mas cada uma
delas é uma imagem distinta das outras. Uma imagem, diz Sartre, é inobservável.
Se uma pessoa apaixonada tem diante de si a pintura ou a
fotografia da pessoa amada, tem a imagem dela. Ao olhá-la, não olha para as
manchas coloridas, para os traços reproduzidos no papel, não presta atenção no
trabalho do pintor nem do fotógrafo, mas torna presente a pessoa amada ausente.
A imagem é diferente do percebido porque ela é um análogo do ausente,
sua presentificação.
Em outras palavras, percebemos e imaginamos ao mesmo tempo,
embora perceber e imaginar sejam diferentes. Percebo a fotografia e imagino a
pessoa amada. Percebo a fisionomia da pessoa fotografada (o olhar, o sorriso,
as mãos, a roupa) e imagino a sedução do olhar, a doçura do sorriso, a sutileza
dos gestos, a preferência por certas roupas. São dois estados de consciência
simultâneos e diferentes.
Quando Clarice Lispector descreve o inseto e o ovo,
percepção e imaginação são simultâneos e diferentes. Diante do
verde-corpo-superfície-traço-que-caminha (percepção do inseto), Clarice imagina
como seriam o desejo e o amor das “esperanças” (pergunta sobre as glândulas do
inseto cujo corpo percebido parece impossível de conter algo em seu interior
porque não tem interior). O inseto percebido e o inseto imaginado são duas
consciências diferentes do mesmo inseto.
Quando a criança brinca, sua imaginação desfaz a percepção:
todos os objetos, todas as pessoas e todos os lugares nada têm a ver com seu
sentido percebido, mas remetem a outros sentidos, criam sentidos inexistentes
ou presentificam o ausente. Um armário é um navio-em-imagem, um tapete é um
mar-em-imagem, um cabo de vassoura é uma espada-em-imagem, uma folha de jornal
é um mapa-em-imagem, um avental preso às costas é uma capa-em-imagem. A
imaginação é, assim, uma capacidade irrealizadora.
A força irrealizadora da imaginação significa, por um lado,
que ela é capaz de tornar ausente o que está presente (o armário deixa de estar
presente), de tornar presente o ausente (o navio torna-se presente) e criar
inteiramente o inexistente (a aventura nos mares). É por isso que a imaginação
tem também uma força prospectiva, isto é, consegue inventar o futuro, como na
canção de John Lennon, Imagine, ou como na invenção de uma teoria
científica ou de um objeto técnico. Pelo mesmo motivo, a imaginação pode criar
um mundo irreal que julgamos melhor do que o nosso, a ponto de recusarmos viver
neste para “viver” imaginariamente naquele, perdendo todo o contato com o real.
É o que acontece, por exemplo, na loucura, quando passamos definitivamente para
o “outro lado”. Mas é também o que acontece todos os dias, quando sonhamos ou
entramos em devaneio.
Embora vigília e sonho sejam diferentes, a vigília pode ser
sentida como intolerável e insuportável e somos arrastados pelo desejo de ficar
no sonho e de, embora acordados, viver como se o sonho fosse real, porque nossa
imaginação o faz real para nós. Irrealizando o mundo percebido e realizando o
sonho, a imaginação pode ocupar o lugar da percepção e passamos a perceber
imaginariamente.
Quando o fazemos para criar um outro mundo ao qual os
outros seres humanos também podem ter acesso, a imaginação passa do sonho à
obra de arte. Quando o fazemos para criar um outro mundo só nosso e ao qual
ninguém mais pode ter acesso, a imaginação passa do sonho à loucura. Assim, a
diferença entre sonho, arte e loucura é muito pequena e frágil: a imaginação
aberta aos outros (arte) ou fechada aos outros (loucura).
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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