Imaginação e teoria do conhecimento
Do ponto de vista da teoria do conhecimento, a imaginação
possui duas faces: a de auxiliar precioso para o conhecimento da verdade e a de
perigo imenso para o conhecimento verdadeiro.
Quando lemos relatos dos cientistas sobre suas pesquisas e
investigações, com freqüência eles se referem aos momentos em que tiveram que
imaginar, isto é, criar pelo pensamento a imagem total ou completa do fenômeno
pesquisado para, graças a ela, orientar os detalhes e pormenores da pesquisa
concreta que realizavam.
Essa imagem é negadora e antecipadora. Negadora: graças a
ela, o cientista pode negar ou recusar as teorias já existentes. Antecipadora:
graças a ela, o cientista pode antever o significado completo de sua própria
pesquisa, mesmo que esta ainda esteja em andamento; a imaginação orienta o
pensamento. O filósofo Gaston Bachelard atribui à imaginação a capacidade para
encorajar o pensamento a dizer “não” a teorias existentes e propor novas.
Muitas vezes, lendo um romance ou vendo um filme,
compreendemos e conhecemos muito melhor uma realidade do que se lêssemos livros
científicos ou jornais. Por quê? Porque o artista, através da imaginação, capta
o essencial e reúne o que estava disperso na realidade, fazendo-nos compreender
o sentido profundo e invisível de alguma coisa ou de alguma situação. O artista
nos mostra o inusitado, o excepcional, o exemplar ou o impossível por meio dos
quais nossa realidade ganha sentido e pode ser mais bem conhecida.
Outras vezes, porém, sobretudo quando se trata da
imaginação reprodutora, somos lançados no mundo dos ídolos, de que fala Francis
Bacon, ou no mundo da prevenção e dos preconceitos, de que fala Descartes.
Agora surge um tecido de imagens ou um imaginário,
que desvia nossa atenção da realidade, ou que serve para nos dar compensações
ilusórias para as desgraças de nossas vidas ou de nossa sociedade, ou que é
usado como máscara para ocultar a verdade. O imaginário reprodutor (nas
ciências, na Filosofia, no cinema, na televisão, na literatura, etc.) bloqueia
nosso conhecimento porque apenas reproduz nossa realidade, mas dando a ela
aspectos sedutores, mágicos, embelezados, cheios de sonhos que já parecem
realizados e que reforçam nosso presente como algo inquestionável e inelutável.
É um imaginário de explicações feitas e acabadas, justificador do mundo tal
como ele parece ser. Quando esse imaginário é social, chama-se ideologia.
Sob esse aspecto, a imaginação reprodutora se opõe à
imaginação utópica. Utopia é uma palavra grega que significa: em lugar
nenhum e em tempo nenhum. A imaginação utópica cria uma outra realidade para
mostrar erros, desgraças, infâmias, angústias, opressões e violências da
realidade presente e para despertar, em nossa imaginação, o desejo de mudança.
Assim, enquanto o imaginário reprodutor procura abafar o desejo de
transformação, o imaginário utópico procura criar esse desejo em nós. Pela
invenção de uma outra sociedade que não existe em lugar nenhum e em tempo
nenhum, a utopia nos ajuda a conhecer a realidade presente e buscar sua
transformação.
Em outras palavras, o imaginário reprodutor opera com
ilusões, enquanto a imaginação criadora e a imaginação utópica operam com a
invenção do novo e da mudança, graças ao conhecimento crítico do presente.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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