"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

O aparecimento da lógica: Platão e Aristóteles


No momento de seu apogeu, isto é, de Platão e de Aristóteles, a Filosofia oferecerá as duas soluções mais importantes para o problema da contradição-mudança e identidade-permanência dos seres. Não vamos, aqui, falar dessas duas filosofias, mas destacar um aspecto de cada uma delas relacionado com o nosso assunto, isto é, com o surgimento da lógica.
Platão considerou que Heráclito tinha razão no que se refere ao mundo material ou físico, isto é, ao mundo dos seres corporais, pois a matéria é o que está sujeito a mudanças contínuas e a oposições internas. Heráclito está certo no que diz respeito ao mundo de nossas sensações, percepções e opiniões: o mundo natural ou material (que Platão chama de mundo sensível) é o devir permanente.
No entanto, dizia Platão, esse mundo é uma aparência (é o mundo dos prisioneiros da caverna), é uma cópia ou sombra do mundo verdadeiro e real e, nesse, Parmênides é quem tem razão. O mundo verdadeiro é o das essências imutáveis (que Platão chama de mundo inteligível), sem contradições nem oposições, sem transformação, onde nenhum ser passa para o seu contraditório. Mas como conhecer as essências e abandonar as aparências? Como sair da caverna? Através de um método do pensamento e da linguagem chamado dialética.
Em grego, a palavra dia quer dizer dois, duplo; o sufixo lética deriva-se de logos e do verbo legin (cujo sentido estudamos nos capítulos dedicados à linguagem e ao pensamento). A dialética, como já vimos, é um diálogo ou uma conversa em que os interlocutores possuem opiniões opostas sobre alguma coisa e devem discutir ou argumentar de modo a passar das opiniões contrárias à mesma ideia ou ao mesmo pensamento sobre aquilo que conversam. Devem passar de imagens contraditórias a conceitos idênticos para todos os pensantes.
A dialética platônica é um procedimento intelectual e linguístico que parte de alguma coisa que deve ser separada ou dividida em dois ou duas partes contrárias ou opostas, de modo que se conheça sua contradição e se possa determinar qual dos contrários é verdadeiro e qual é falso. A cada divisão surge um par de contrários, que devem ser separados e novamente divididos, até que se chegue a um termo indivisível, isto é, não formado por nenhuma oposição ou contradição e que será a ideia verdadeira ou a essência da coisa investigada. Partindo de sensações, imagens, opiniões contraditórias sobre alguma coisa, a dialética vai separando os opostos em pares, mostrando que um dos termos é aparência e ilusão e o outro, verdadeiro ou essência.
A dialética é um debate, uma discussão, um diálogo entre opiniões contrárias e contraditórias para que o pensamento e a linguagem passem da contradição entre as aparências à identidade de uma essência. Superar os contraditórios e chegar ao que é sempre idêntico a si mesmo é a tarefa da discussão dialética, que revela o mundo sensível como heraclitiano (a luta dos contrários, a mudança incessante) e o mundo inteligível como parmenidiano (a identidade perene de cada ideia consigo mesma).
Aristóteles, por sua vez, segue uma via diferente da escolhida por Platão.
Considera desnecessário separar realidade e aparência em dois mundos diferentes – há um único mundo no qual existem essências e aparências – e não aceita que a mudança ou o devir seja mera aparência ilusória. Há seres cuja essência é mudar e há seres cuja essência é imutável. O erro de Heráclito foi supor que a mudança se realiza sob a forma da contradição, isto é, que as coisas se transformam nos seus opostos, pois a mudança ou transformação é a maneira pela qual as coisas realizam todas as potencialidades contidas em suas essência e esta não é contraditória, mas uma identidade que o pensamento pode conhecer.
Assim, por exemplo, quando a criança se torna adulta ou quando a semente se torna árvore, nenhuma delas tornou-se contrária a si mesma, mas desenvolveu uma potencialidade definida pela identidade própria de sua essência. Cabe à Filosofia conhecer como e por que as coisas, sem mudarem de essência, transformam-se, assim como cabe à Filosofia conhecer como e por que há seres imutáveis (como as entidades matemáticas e as divinas). Parmênides tem razão: o pensamento e a linguagem exigem a identidade. Heráclito tem razão: as coisas mudam. Ambos se enganaram ao supor que identidade e mudança são contraditórias. Tal engano levou Platão à desnecessária divisão dos mundos.
Em segundo lugar, Aristóteles considera que a dialética não é um procedimento seguro para o pensamento e a linguagem da Filosofia e da ciência, pois tem como ponto de partida simples opiniões contrárias dos debatedores, e a escolha de uma opinião contra outra não garante chegar à essência da coisa investigada. A dialética, diz Aristóteles, é boa para as disputas oratórias da política e do teatro, para a retórica, pois esta tem como finalidade persuadir alguém, oferecendo argumentos fortes que convençam o oponente e os ouvintes. É adequada para os assuntos sobre os quais só cabe a persuasão, mas não para a Filosofia e a ciência, porque, nestas, interessa a demonstração e a prova de uma verdade.
Substituindo a dialética por um conjunto de procedimentos de demonstração e prova, Aristóteles criou a lógica propriamente dita, que ele chamava de analítica (a palavra lógica será empregada, séculos mais tarde, pelos estoicos e Alexandre de Afrodísia).
Qual a diferença entre a dialética platônica e a lógica (ou analítica) aristotélica?
Em primeiro lugar, a dialética platônica é o exercício direto do pensamento e da linguagem, um modo de pensar que opera com os conteúdos do pensamento e do discurso. A lógica aristotélica é um instrumento que antecede o exercício do pensamento e da linguagem, oferecendo-lhes meios para realizar o conhecimento e o discurso. Para Platão, a dialética é um modo de conhecer. Para Aristóteles, a lógica (ou analítica) é um instrumento para o conhecer.
Em segundo lugar, a dialética platônica é uma atividade intelectual destinada a trabalhar contrários e contradições para superá-los, chegando à identidade da essência ou da ideia imutável. Depurando e purificando as opiniões contrárias, a dialética platônica chega à verdade do que é idêntico e o mesmo para todas as inteligências. A lógica aristotélica oferece procedimentos que devem ser empregados naqueles raciocínios que se referem a todas as coisas das quais possamos ter um conhecimento universal e necessário, e seu ponto de partida não são opiniões contrárias, mas princípios, regras e leis necessárias e universais do pensamento.


Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed. Ática, 2000.

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