"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

A imaginação sociológica (I)


Aprender a pensar sociologicamente – olhando – em outras palavras, de forma mais ampla – significa cultivar a imaginação. Estudar Sociologia não pode ser apenas um processo rotineiro de adquirir conhecimento. Um sociólogo é alguém que é capaz de se libertar das imediatidades das circunstâncias pessoais e apresentar as coisas num contexto mais amplo. O trabalho sociológico daquilo que o autor norte-americano C. Wright Mills, numa frase famosa chamou de imaginação sociológica. ( Mills, 1970)”  (Giddens, A. Sociologia, Porto Alegre: Artmed,2005).

A imaginação sociológica, acima de tudo, exige de nós que pensemos fora das rotinas familiares de nossas vidas cotidianas a fim de que as observemos de modo renovado, livre dos juízos de valor e da influência do senso comum. Giddens[1] em seu livro Sociologia, usa o exemplo do café, mas podemos aqui usar uma série de outros exemplos para demonstrar como “funciona” a imaginação sociológica. Ao usar o café como exemplo, Giddens ressalta que o café possuí valor simbólico como parte de nossas atividades sociais diárias; podemos então usar a cerveja como exemplo, embora não muito feliz, geralmente ao fim do expediente de trabalho ou aos finais de semana, homens e mulheres se reunem para “tomar uma cerveja para relaxar” usando a bebida como subterfúgio, mas neste ato aparentemente simples, inofensivo, corriqueiro, existe uma série de questões, como por exemplo o alcoolismo, a lei seca, o “não saber parar”, a produção desta bebida, o consumo por menores de idade, iniciado geralmente em casa, sua história, a publicidade etc.  

Um outro exemplo é o chá, o que poderíamos dizer, a partir de uma perspectiva sociológica acerca do consumo desta bebida, deste ritual associado geralmente a britânicos, a pontualidade e a reuniões de mulheres (chá de bebê, chá de panela)?
Para começar, muito embora este “ritual”, esta tradição do consumo de chá esteja associada aos britânicos, na verdade a história do chá remonta à antiguidade no território chinês. Entre muitas lendas que narram o “surgimento” desta bebida, a mais famosa relata que suas raízes provém de 5000 anos atrás, ao governo do Imperador Sheng Nong (ou Nung, dependendo da fonte), popularmente conhecido como o Curandeiro Divino. Tentando solucionar a constante incidência de surtos epidêmicos em seus domínios, ele criou uma lei que obrigava o povo a ferver a água antes de ingeri-la. Diz a lenda que repousando sob uma árvore, o soberano deixou sua xícara de água esfriando, e logo percebeu que algumas folhas haviam caído sobre o líquido, conferindo-lhe um tom castanho. Ao experimentar a bebida, descobriu que ela possuía um sabor agradável, disseminando o consumo desta bebida entre os seus súditos; a China desempenha um papel crucial na disseminação do consumo do chá pelo mundo.
Viu só? Iniciamos uma linha de pensamento acerca do surgimento do ritual de consumo do chá, e descobrimos que esta bebida não é proveniente da Inglaterra e nem está associada a sofisticação e a pontualidade britânica.
Em princípios do século IX alguns monges provenientes do Japão levaram consigo algumas sementes, iniciando assim o cultivo do hábito que se tornaria tradição neste país. Tanto na China quanto no Japão, o chá conquistou um desenvolvimento sem igual, em todos os ambientes, até mesmo os artísticos e os religiosos, campo no qual passou a integrar um cerimonial sagrado.O desembarque do chá na Europa se deu gradativamente através da Ásia Central e da Rússia, logo após dos portugueses, que difundiram o uso do chá por toda a Europa, a partir do fim do século XV. Os navios de Portugal transportavam a mercadoria até os portos de Lisboa, sendo daí conduzida para a Holanda e a França.
O aventureiro Marco Pólo, ao registrar suas famosas viagens, teria incluído referências ao chá em suas narrativas; do século XIX em diante, o hábito de consumir o chá se disseminou velozmente na Inglaterra, tornando-se tradição. A partir das terras inglesas esta bebida se propagou rapidamente aos Estados Unidos, à Austrália e ao Canadá, até se tornar popular em todo o planeta. Enquanto isso, no Japão, o preparo do chá tornou-se uma arte, bem como o seu consumo.
Dando prosseguimento a nossa análise acerca do chá, agora partimos para uma perspectiva sociológica direcionada a questões políticas e econômicas, neste sentido devemos lembrar do ano de 1773, quando uma certa lei foi criada, estudamos isso na disciplina de história, lembram?
Esta lei aumentou consideravelmente a aquisição de impostos sobre a comercialização do chá, que era muito consumido nas colônias. Também foi instituída a exclusividade de sua venda (o monopólio comercial) à Companhia das Índias Orientais. Foi uma medida inglesa que impediu os colonos de participar do comércio de Chá, que era bastante lucrativo, o que favorecia os comerciantes ingleses, dando-lhes o monopólio do mercado desse produto nas treze colônias[2], seu nome: Lei do chá. A resposta americana teve lugar em Boston, no episódio conhecido como Festa do Chá, quando americanos vestidos como índios saquearam navios ingleses, jogando ao mar sua carga de chá.
Agora que sabemos um pouco mais sobre a história do chá podemos concluir que o chá não é simplesmente uma bebida que pode ser consumida quente ou gelada, possuí sobretudo, valor simbólico em muitas culturas como a inglesa, a chinesa e principalmente a japonesa. No Japão, o preparo do chá tornou-se uma arte, bem como o seu consumo, os participantes da cerimônia do chá devem sempre esperar em um recinto, até se desconectarem das preocupações do dia-a-dia. Se pensarmos bem, em todas as sociedades, em todos os tempos, comer e beber são ações que produzem oportunidades para interação social e para a encenação de rituais, ou seja um ótimo tema para estudos sociológicos.
Outro ponto, um individuo que bebe chá está envolvido em uma complicada rede de relações sociais, econômicas e culturais que se estendem pelo mundo desde os tempos antigos. O chá é um produto que conecta as pessoas, o rico, o pobre, todos e todas podem consumir chá hoje em dia, inclusive tornou-se mais acessível do que o café, mas nem sempre foi assim. O entusiasmo dos britânicos pelo chá é algo que ainda hoje se mantém, no entanto, nos primeiros anos de consumo, esta bebida não estava ao alcance de todos porque tinha um imposto tão alto que, em 1689 as vendas de chá quase pararam, ocasionando contrabando de chá em larga escala que, infelizmente, adulterava muitas vezes as folhas de chá, adicionando-lhes folhas de outras plantas. Este negócio de mercado negro chegou a tal proporções que, em 1784, o primeiro-ministro William Pitt colocou um ponto final na situação ao reduzir o imposto de 119% para 12.5%. De um dia para o outro, o chá tornou-se acessível e o contrabando deixou de ser um negócio lucrativo.
Aqui no Brasil o chá é produzido em várias regiões, entre elas São Miguel (Açores) onde os produtores criaram uma associação para certificar o seu chá produzido de forma orgânica; hoje, a produção de chá no mundo é calculada por volta de 2,34 bilhões de kg por ano. A Índia, um país pobre, e repleto de contradições econômicas é o numero 1 na produção como a maior nação produtora de chá do mundo, com uma produção anual de aproximadamente 850 milhões kg.  A China, onde o chá originou-se, hoje sustenta a segunda posição e contribui com 22% da produção mundial de chá. Outros países são importantes produtores de chá como a Argentina, Sri Lanka, Turquia, Geórgia, Kenya, Indonésia e Japão. A produção, o transporte, e a distribuição do chá demandam transações entre pessoas a milhares de quilômetros de distância do seu consumidor, estudar estas transações também é tarefa da sociologia.
Atualmente, o chá continua a ser consumido por diversos povos espalhados pelo mundo, sendo ainda mais popular do que o café. Ao bebermos chá nos envolvemos em todo um processo passado de desenvolvimento social e econômico, por exemplo, a Stassen Natural Food é um dos principais produtores e exportadores de chá de qualidade do Sri Lanka e um antigo parceiro do Comércio Justo[3]. O Sri Lanka é um importante exportador de chá no mundo, a economia do país depende fortemente da produção de chá, o governo é detentor da maioria das fábricas de processamento de chá, e o chá é vendido em leilões controlados pelo Estado.
Logo, os pequenos produtores de chá são excluídos da produção e comercialização, e isso torna difícil para as organizações de Comércio Justo introduzir o Comércio Justo de fato como uma alternativa à produção e exportação de chá neste país,  entretanto esta empresa mostrou um particular interesse no Comércio Justo e possuí aparentemente objetivos partilhados, como a melhoria das condições de trabalho e de vida das pessoas que trabalham nas plantações de chá, e a promoção da agricultura biológica[4]. Podemos escolher entre acreditar ou não neste “comprometimento”.Também podemos escolher entre tomarmos chá proveniente de produtores que objetivam o comércio justo e não fazem uso de fertilizantes, pesticidas e que respeitam os ciclos de vida naturais, ou dos que exploram mão de obra, utilizam fertilizantes comprometendo nossa saúde e não respeitam a natureza, claro que a partir de pesquisas acerca dos produtores, obtendo informações através de fontes confiáveis etc.
Politizamos assim o consumo desta bebida, e seguramente contribuímos para um análise sociológica acerca das questões que envolvem a produção do chá; após todas estas informações, mesmo que ainda superficiais iniciamos um processo de análise contextualizando historicamente seu consumo e  produção para compreender uma série de questões, os sociólogos estão interessados em compreender como a globalização aumenta a consciência das pessoas acerca de assuntos que vêm ocorrendo em locais distantes, como por exemplo na Índia, no Sri Lanka, encorajando-as a produzir novos conhecimentos, a ponderar, e pensar criticamente.

Fonte: Texto “Sociologia – 1º Ano do Ensino Médio” da Profª Bianca Wild


[1] é um sociólogo britânico, renomado por sua Teoria da estruturação. 
[2] As Treze Colônias foram as colônias Norte-Americanas que se rebelaram contra o domínio britânico, em 1775, quando formaram um governo provisório, Norte-Americano, o qual proclamou a sua independência no dia 4 de julho de 1776. Subsequentemente, as colônias constituíram-se nos treze primeiros Estados americanos. As demais colônias da britânicas na América do Norte não aderiram imediatamente ao movimento de independência. As colônias foram fundadas entre 1607 (Virgínia) e 1733 (Georgia). 
[3] O comércio justo é um dos pilares da sustentabilidade econômica e ecológica.Trata-se de um movimento social e uma modalidade de comércio internacional que busca o estabelecimento de preços justos, bem como de padrões sociais e ambientais equilibrados, nas cadeias produtivas.A ideia de um comércio justo surgiu nos anos 1960 e ganhou corpo em 1967, quando foi criada, na Holanda, a Fair Trade Organisatie. Dois anos depois, foi inaugurada a primeira loja de comércio justo. O café foi o primeiro produto a seguir o padrão de certificação desse tipo de comércio, em 1988. O comércio justo é definido pela News! (a rede europeia de lojas de comércio justo) como "uma parceria entre produtores e consumidores que trabalham para ultrapassar as dificuldades enfrentadas pelos primeiros, para aumentar seu acesso ao mercado e para promover o processo de desenvolvimento sustentável. O comércio justo procura criar os meios e oportunidades para melhorar as condições de vida e de trabalho dos produtores, especialmente os pequenos produtores desfavorecidos. Sua missão é promover a equidade social, a proteção do ambiente e a segurança econômica através do comércio e da promoção de campanhas de conscientização".

[4] Agricultura orgânica ou agricultura biológica é o termo frequentemente usado para designar a produção de alimentos e outros produtos vegetais que não faz uso de produtos químicos sintéticos, tais como fertilizantes e pesticidas, nem de organismos geneticamente modificados, e geralmente adere aos princípios de agricultura sustentável.

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