Aprendendo a ler o mundo
Pensando
um pouco sobre o dia de ontem, percebo que fui obrigada a interpretar, ou seja, a dar
significado a uma série de acontecimentos que invadiram o meu dia e me
levaram a abandonar, temporariamente, o projeto de escrever. Vamos destacar
alguns.
Primeiro,
foi o cheiro ao qual atribuí o significado "feijão queimado". Em
seguida, ao fato de o feijão ter queimado dei outro significado: a perda do
almoço.
Segundo,
foi o caso do som: associei-o inicialmente à campainha da porta. Percebendo que
o som se repetia, sempre igual, e a intervalos regulares, tive a pista para
chegar ao seu significado exato: era o telefone que estava tocando. E assim
fazemos o dia todo, a vida toda. A essa
atividade de atribuir significados podemos dar o nome de leitura. A
leitura, nesse sentido, passa a ser uma atividade bastante ampla: é efetuada
toda vez que "lemos" um significado em algum acontecimento, alguma
atitude, algum texto escrito, comportamento, quadro, mapa e até, por exemplo,
nas gracinhas de um cachorro. A tudo isso podemos chamar de leitura do mundo. E, para que possamos
fazer uma leitura adequada do mundo à nossa volta, é preciso saber observá-lo,
recolhendo informações dos mais variados tipos. Mas voltemos à história
inicial. Ao sentir o cheiro, tive uma informação olfativa. Ao ver o feijão queimado
grudado na panela, tive uma informação visual. Com relação ao telefone, tive
uma informação auditiva. Ao ligar cada informação às minhas experiências
anteriores, cheguei ao significado dos acontecimentos. Por exemplo, como já
havia sentido antes o cheiro de feijão queimado, identifiquei-o mesmo antes de
olhar a panela.
Assim,
precisamos estar atentos a tudo o que acontece à nossa volta e saber que todos
os nossos sentidos (olfato, visão, paladar, audição, tato e a cinestesia, isto
é, a capacidade de sentir o espaço através dos nossos movimentos) estão
constantemente nos fornecendo inúmeras informações a respeito do mundo. Basta
que prestemos atenção a elas.
Neste
ponto, podemos ampliar, também, o conceito de texto: em latim, texto significa "tecido" e pode ser entendido como
qualquer significado tecido ou articulado através de uma linguagem determinada.
Assim, por exemplo, um quadro pode ser um texto,
pois tem um significado
articulado através da linguagem da
pintura (linguagem pictórica). Um filme, além do texto verbal dos diálogos,
apresenta um texto visual, constituído pelas imagens que se sucedem na tela. O
mesmo acontece na televisão. Quantas vezes "lemos", isto é, damos um
significado às imagens que vemos na "telinha" mesmo que não estejamos
ouvindo o som?
No
entanto, precisamos lembrar que essa tarefa de leitura, de atribuição de
significados depende da vivência de cada leitor, porque é essa vivência que faz
cada um de nós observar o mundo de forma diferente dos outros. Toda leitura
depende de nossas experiências, idade, sexo, país e época em que vivemos,
classe social a que pertencemos, enfim, de nossa história de vida.
Vamos
considerar, por exemplo, apenas os objetos presentes em nossa vida diária, para
poder entender melhor como o significado se modifica de acordo com a situação
individual de cada leitor. Examinemos o caso do leite. Para as crianças que
moram na cidade, o leite chega em embalagem de plástico, pasteurizado, pronto
para o consumo imediato. Para as crianças da área rural, no entanto, o leite é
associado à vaca que o produz, ao bezerro que dele se alimenta, ao trabalho de
quem o tira, à presença de grande quantidade de nata, à necessidade de ser
fervido para não estragar, e assim por diante. Esses diferentes significados
atribuídos ao mesmo objeto — o leite — são fruto de experiências de vida
diversas entre si.
Concluindo,
todos nós, alfabetizados ou não, precisamos aprender a observar o mundo ao
nosso redor, aprender a estar constantemente indagando: o que isto significa? o
que quer dizer?, pois é nesse momento que estamos aprendendo a ler.
Fonte:
ARANHA, Maria Lúcia de
Arruda e MARTINS, Maria Helena Pires. Temas de Filosofia. São Paulo,
Moderna, 2000 (edição digital).
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