"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

A ideologia



O conceito de ideologia tem inúmeros significados. Por isso é importante verificar em que sentido é usado dentro de determinado contexto.
A ideologia pode ser considerada o conjunto de ideias, concepções ou opi­niões sobre algum ponto sujeito a dis­cussão. Por exemplo, a ideologia da ra­ça pura, a ideologia da segurança nacional.
Ou, ainda, ideologia significa o con­junto de ideias sistematizadas que jus­tificam determinada prática. Por exem­plo, a ideologia de um partido político, a ideologia religiosa ou a ideologia de uma escola.
O filósofo italiano Gramsci dizia ser importante não considerar toda ideologia como sendo de antemão arbitrária e, portanto, inútil para transformar a realidade. Pois há ideologias historicamente necessárias que "organizam as massas humanas, formam o terreno sobre o qual os homens se movimentam, adquirem consciência de sua posição, lutam etc.". Pode-se dar ao conceito de ideologia "o significado mais alto de uma concepção de mundo que se manifesta implicitamente na arte, no direito, na atividade econômica, em todas as manifestações de vida individuais e coletivas" e que tem por função conservar a unidade ideológica de todo o bloco social.
Aqui, vamos privilegiar a análise feita por Marx, cuja interpretação já foi incorporada ao pensamento político e econômico até de teóricos não-marxistas, tal sua fecundidade e aplicabilidade em diversos campos de reflexão.  

Segundo Marx, todas as formas de pensamento e de representação depen­dem das relações de produção e de tra­balho: enquanto muitos pensam que "as ideias movem o mundo", Marx considera, ao contrário, que as ideias são derivadas das condições materiais de produção da existência.
Ora, onde existe sociedade dividida em classes, há exploração do trabalho e separação entre trabalho intelectual e trabalho manual. Tal situação leva à alienação, uma vez que a grande maio­ria dos trabalhadores perde a autono­mia.
É justamente a ideologia que não permite a percepção da alienação e im­pede a revolta contra a dominação. Sem precisar recorrer à violência física, a ideologia mantém o consenso e a coe­são da sociedade, escondendo as dis­torções, mascarando as desigualdades sociais e ocultando a exploração.
A ideologia é o conjunto de repre­sentações e ideias, bem como de nor­mas de conduta por meio das quais o homem é levado a pensar, sentir e agir da maneira que convém à classe dominante. Essa consciência da rea­lidade é uma falsa consciência, por­que camufla a divisão existente den­tro da sociedade, apresentando-a co­mo una e harmônica, como se todos partilhassem dos mesmos objetivos e ideais.
Revendo: a ideologia, no sentido po­sitivo, exerce a função de cimento do grupo social, tornando a sociedade de fato unida em tomo de crenças comuns que fazem justamente a força das tra­dições. No sentido negativo, a unidade é falsa, pois esconde a divisão injusta da sociedade para manter a dominação.

Examinemos alguns exemplos.
O trabalhador braçal geralmente é semianalfabeto (não frequentou esco­la ou abandonou os estudos muito ce­do); ganha mal; não tem casa própria; não melhora seu padrão de vida; os fi­lhos reproduzem seus passos.
Uma interpretação ideológica justifi­caria a situação da seguinte maneira: ele é um trabalhador braçal porque não tem competência para outro tipo de ser­viço; não fez o devido esforço para es­tudar (talvez por preguiça ou por defi­ciência intelectual); se não tem bens é porque esbanjou o que ganha, não fez poupança; se não melhora o padrão de vida é porque não cumpre as exigên­cias de um bom empregado, aplicado e perseverante. Em todo caso, convém não perder as esperanças, um dia a sor­te poderá lhe sorrir. E, quem sabe, com esforço seu filho possa até se formar doutor!
As justificativas são todas de ordem individual, como se cada homem fos­se o único responsável pelo seu próprio destino. Embora seja verdadeiro que as pessoas são sempre responsáveis pelas suas escolhas, em sociedades de clas­ses as oportunidades oferecidas não são iguais, o que lança os desprivilegiados em um "jogo de cartas marcadas" no qual as chances de melhorar dependem menos deles e mais daqueles que de­têm os meios de produção.
Isso significa que os bens produzidos pela sociedade serão usufruídos por uma minoria. A exclusão e evasão es­colar não ocorrem porque as crianças pobres são pouco inteligentes ou preguiçosas, mas porque esse bem é de fa­to negado a elas. O mesmo acontece com a melhor remuneração do traba­lho, o direito à produção e consumo da cultura, o acesso ao lazer etc.
O discurso ideológico impede que o oprimido tenha uma visão própria do mundo porque lhe impõe os valores da classe dominante, tornados universais, Além disso, "naturaliza" as ações hu­manas, explicando-as como decorren­tes da "ordem natural das coisas" e não como o resultado da injusta repartição dos bens.
Isso não significa que alguns conhe­çam a realidade e a maior parte se en­contre "enganada" pela ideologia. Esta permeia toda a sociedade, o que permite que a classe privilegiada conside­re natural a sua dominação.
A ideologia é veiculada das mais di­versas maneiras: pela família, escola, empresa, Igreja, quartel, meios de co­municação de massa, enfim, pelos res­ponsáveis pela sua disseminação e re­produção.
Como superar a ação da ideologia?

Fonte:
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda e MARTINS, Maria Helena Pires. Temas de Filosofia. São Paulo, Moderna, 2000 (edição digital).

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