O saber de todos nós
Ao considerar o
conhecimento no sentido mais amplo possível, percebemos que ele se faz no
enfrentamento contínuo das dificuldades que desafiam o Homem. E, como tal, não
é fruto exclusivo da razão, mas também dos sentidos, da memória, do hábito,
da imaginação, das crenças e desejos.
Chamamos senso comum (ou conhecimento
espontâneo, ou conhecimento vulgar) a essa primeira compreensão do mundo
resultante da herança fecunda de um grupo social e das experiências atuais que
continuam sendo efetuadas. Pelo senso comum, fazemos julgamentos, estabelecemos
projetos de vida, adquirimos convicções e confiança para agir.
O senso comum, sendo a
interpretação do mundo em que vivemos, dá-nos condições de operar sobre ele,
ao mesmo tempo que nos orienta na busca do sentido da existência.
No entanto, o senso
comum não é refletido; impõe-se sem críticas ao grupo social. Por ser um
conjunto de concepções fragmentadas, muitas vezes incoerentes, condiciona a
aceitação mecânica e passiva de valores não-questionados. Com frequência se
torna fonte de preconceitos, quando desconsidera opiniões divergentes.
Por isso é preciso
encontrar formas que possibilitem a passagem do senso comum para o bom senso, este
entendido como elaboração coerente do saber e como explicitação das intenções
conscientes dos indivíduos livres. Nessa perspectiva, o homem de bom senso é
ativo, capaz de reflexão e dono de si mesmo. Recebida a herança cultural pelo
senso comum, reelabora sua concepção considerando a realidade concreta que
precisa interpretar e transformar.
O bom senso tem sua
especificidade e vale enquanto forma vigorosa de orientação vital para todos os
homens. Por isso não podemos considerá-lo um saber menor ou sequer inferior a
formas mais rigorosas ou eficazes de conhecimento, como, por exemplo, a
ciência. Mesmo o cientista recorrerá ao bom senso nos inúmeros campos
não-abarcados pelo seu saber especializado.
Enquanto o senso comum
tende à rigidez, o bom senso é flexível, dinâmico, absorvendo com
discernimento as influências mais diversas. Por exemplo, quando foi constatado
pelos teóricos do heliocentrismo que a Terra não era o centro do universo,
coube ao bom senso repudiar as evidências dos sentidos que indicavam justamente
o contrário!
Por outro lado, o bom
senso resiste sabiamente à aceitação cega das determinações alheias, ainda que
venham de especialistas de qualquer natureza. Por exemplo, mesmo que não
entendamos de medicina, precisamos estar informados a propósito do tratamento
a ser aplicado, como também podemos discutir questões referentes à ética médica.
E, ainda que não sejamos economistas, podemos questionar os efeitos do plano
econômico que visa combater a inflação mediante arrocho salarial.
É necessário que
desmistifiquemos a tendência a cultuar as pessoas "estudadas" em
detrimento do homem "sem-letras" ou simplesmente não-especialista.
Qualquer homem, se não foi ferido em sua liberdade e dignidade e teve ocasião
de desenvolver a habilidade crítica, será capaz de autoconscientizar-se e de
analisar adequadamente a situação em que vive.
No entanto, a passagem
do senso comum para o bom senso não se faz espontaneamente, e podemos
constatar que nem sempre ocorre de fato. Veremos por quê.
Fonte:
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda e MARTINS, Maria Helena Pires. Temas
de Filosofia. São Paulo, Moderna, 2000 (edição digital).
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