"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

O saber de todos nós



Ao considerar o conhecimento no sentido mais amplo possível, percebemos que ele se faz no enfrentamento contínuo das dificuldades que desafiam o Homem. E, como tal, não é fruto exclusivo da razão, mas também dos sentidos, da memória, do hábito, da imaginação, das crenças e desejos.
Chamamos senso comum (ou co­nhecimento espontâneo, ou conheci­mento vulgar) a essa primeira com­preensão do mundo resultante da he­rança fecunda de um grupo social e das experiências atuais que conti­nuam sendo efetuadas. Pelo senso co­mum, fazemos julgamentos, estabe­lecemos projetos de vida, adquirimos convicções e confiança para agir.
O senso comum, sendo a interpre­tação do mundo em que vivemos, dá-nos condições de operar sobre ele, ao mesmo tempo que nos orienta na bus­ca do sentido da existência.
No entanto, o senso comum não é refletido; impõe-se sem críticas ao grupo social. Por ser um conjunto de concepções fragmentadas, muitas vezes incoerentes, condiciona a aceitação mecânica e passiva de valores não-questionados. Com frequência se torna fonte de preconceitos, quando desconsidera opiniões divergentes.  

Por isso é preciso encontrar formas que possibilitem a passagem do senso comum para o bom senso, este entendi­do como elaboração coerente do saber e como explicitação das intenções cons­cientes dos indivíduos livres. Nessa perspectiva, o homem de bom senso é ativo, capaz de reflexão e dono de si mesmo. Recebida a herança cultural pe­lo senso comum, reelabora sua concepção considerando a realidade concreta que precisa interpretar e transformar.
O bom senso tem sua especificidade e vale enquanto forma vigorosa de orientação vital para todos os homens. Por isso não podemos considerá-lo um saber menor ou sequer inferior a formas mais rigorosas ou eficazes de conheci­mento, como, por exemplo, a ciência. Mesmo o cientista recorrerá ao bom senso nos inúmeros campos não-abarcados pelo seu saber especializado.
Enquanto o senso comum tende à ri­gidez, o bom senso é flexível, dinâmi­co, absorvendo com discernimento as influências mais diversas. Por exemplo, quando foi constatado pelos teóricos do heliocentrismo que a Terra não era o centro do universo, coube ao bom sen­so repudiar as evidências dos sentidos que indicavam justamente o contrário!
Por outro lado, o bom senso resiste sabiamente à aceitação cega das deter­minações alheias, ainda que venham de especialistas de qualquer natureza. Por exemplo, mesmo que não entendamos de medicina, precisamos estar informa­dos a propósito do tratamento a ser aplicado, como também podemos dis­cutir questões referentes à ética médi­ca. E, ainda que não sejamos economis­tas, podemos questionar os efeitos do plano econômico que visa combater a inflação mediante arrocho salarial.
É necessário que desmistifiquemos a tendência a cultuar as pessoas "es­tudadas" em detrimento do homem "sem-letras" ou simplesmente não-especialista. Qualquer homem, se não foi ferido em sua liberdade e dignida­de e teve ocasião de desenvolver a ha­bilidade crítica, será capaz de autoconscientizar-se e de analisar adequadamen­te a situação em que vive.
No entanto, a passagem do senso co­mum para o bom senso não se faz es­pontaneamente, e podemos constatar que nem sempre ocorre de fato. Vere­mos por quê.

Fonte:
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda e MARTINS, Maria Helena Pires. Temas de Filosofia. São Paulo, Moderna, 2000 (edição digital).

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