"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

A atividade racional


A atividade racional e suas modalidades

A Filosofia distingue duas grandes modalidades da atividade racional, realizadas pela razão subjetiva ou pelo sujeito do conhecimento: a intuição (ou razão intuitiva) e o raciocínio (ou razão discursiva).
A atividade racional discursiva, como a própria palavra indica, discorre, percorre uma realidade ou um objeto para chegar a conhecê-lo, isto é, realiza vários atos de conhecimento até conseguir captá-lo. A razão discursiva ou o pensamento discursivo chega ao objeto passando por etapas sucessivas de conhecimento, realizando esforços sucessivos de aproximação para chegar ao conceito ou à definição do objeto.
A razão intuitiva ou intuição, ao contrário, consiste num único ato do espírito, que, de uma só vez, capta por inteiro e completamente o objeto. Em latim, intuitos significa: ver. A intuição é uma visão direta e imediata do objeto do conhecimento, um contato direto e imediato com ele, sem necessidade de provas ou demonstrações para saber o que conhece.  


A intuição
A intuição é uma compreensão global e instantânea de uma verdade, de um objeto, de um fato. Nela, de uma só vez, a razão capta todas as relações que constituem a realidade e a verdade da coisa intuída. É um ato intelectual de discernimento e compreensão, como, por exemplo, tem um médico quando faz um diagnóstico e apreende de uma só vez a doença, sua causa e o modo de tratá-la. Os psicólogos se referem à intuição usando o termo insight, para referirem-se ao momento em que temos uma compreensão total, direta e imediata de alguma coisa, ou o momento em que percebemos, num só lance, um caminho para a solução de um problema científico, filosófico ou vital.
Um exemplo de intuição pode ser encontrado no romance de Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas. Riobaldo e Diadorim são dois jagunços ligados pela mais profunda amizade e lealdade, companheiros de lutas e cumpridores de uma vingança de sangue contra os assassinos da família de Diadorim. Riobaldo, porém, sente-se cheio de angústia e atormentado, pois seus sentimentos por Diadorim são confusos, como se entre eles houvesse muito mais do que a amizade. Diadorim é assassinado. Quando o corpo é trazido para ser preparado para o funeral, Riobaldo descobre que Diadorim era mulher. De uma só vez, num só lance, Riobaldo compreende tudo o que sentia, todos os fatos acontecidos entre eles, todas as conversas que haviam tido, todos os gestos estranhos de Diadorim e compreende, instantaneamente, a verdade: estivera apaixonado por Diadorim.
A razão intuitiva pode ser de dois tipos: intuição sensível ou empírica e intuição intelectual.

1. A intuição sensível ou empírica (do grego, empeiria: experiência sensorial) é o conhecimento que temos a todo o momento de nossa vida. Assim, com um só olhar ou num só ato de visão percebemos uma casa, um homem, uma mulher, uma flor, uma mesa. Num só ato, por exemplo, capto que isto é uma flor: vejo sua cor e suas pétalas, sinto a maciez de sua textura, aspiro seu perfume, tenho-a por inteiro e de uma só vez diante de mim.
A intuição empírica é o conhecimento direto e imediato das qualidades sensíveis do objeto externo: cores, sabores, odores, paladares, texturas, dimensões, distâncias. É também o conhecimento direto e imediato de estados internos ou mentais: lembranças, desejos, sentimentos, imagens.
A intuição sensível ou empírica é psicológica, isto é, refere-se aos estados do sujeito do conhecimento enquanto um ser corporal e psíquico individual - sensações, lembranças, imagens, sentimentos, desejos e percepções são exclusivamente pessoais.
Assim, a marca da intuição empírica é sua singularidade: por um lado, está ligada à singularidade do objeto intuído (ao “isto” oferecido à sensação e à percepção) e, por outro, está ligada à singularidade do sujeito que intui (aos “meus” estados psíquicos, às “minhas” experiências). A intuição empírica não capta o objeto em sua universalidade e a experiência intuitiva não é transferível para um outro objeto. Riobaldo teve uma intuição empírica.

2. A intuição intelectual difere da sensível justamente por sua universalidade e necessidade. Quando penso: “Uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo”, sei, sem necessidade de provas ou demonstrações, que isto é verdade. Ou seja, tenho conhecimento intuitivo do princípio da contradição. Quando digo: “O amarelo é diferente do azul”, sei, sem necessidade de provas e demonstrações, que há diferenças. Vejo, na intuição sensível, a cor amarela e a cor azul, mas vejo, na intuição intelectual, a diferença entre cores. Quando afirmo: “O todo é maior do que as partes”, sei, sem necessidade de provas e demonstrações, que isto é verdade, porque intuo uma forma necessária de relação entre as coisas.
A intuição intelectual é o conhecimento direto e imediato dos princípios da razão (identidade, contradição, terceiro excluído, razão suficiente), das relações necessárias entre os seres ou entre as idéias, da verdade de uma idéia ou de um ser.
Na história da Filosofia, o exemplo mais célebre de intuição intelectual é conhecido como o cogito cartesiano, isto é, a afirmação de Descartes: “Penso (cogito), logo existo”. De fato, quando penso, sei que estou pensando e não é preciso provar ou demonstrar isso, mesmo porque provar e demonstrar é pensar e para demonstrar e provar é preciso, primeiro, pensar e saber que se pensa.
Quando digo: “Penso, logo existo”, estou simplesmente afirmando racionalmente que sei que sou um ser pensante ou que existo pensando, sem necessidade de provas e demonstrações. A intuição capta, num único ato intelectual, a verdade do pensamento pensando em si mesmo.
Um outro exemplo de intuição intelectual é oferecido pela fenomenologia, criada por Husserl. Trata-se da intuição intelectual de essências ou significações. Toda consciência, diz Husserl, é sempre “consciência de” ou consciência de alguma coisa, isto é, toda consciência é um ato pelo qual visamos um objeto, um fato, uma idéia. A consciência representa os objetos, os fatos, as pessoas. Cada representação pode ser obtida por um passeio ou um percurso que nossa consciência faz à volta de um objeto. Essas várias representações são psicológicas e individuais, e o objeto delas, o representado, também é individual ou singular.
Por exemplo, diz Husserl, quando quero pensar em alguém, como Napoleão, posso representá-lo ganhando a batalha de Waterloo, prisioneiro na ilha de Elba e na ilha de Santa Helena, montado em seu cavalo branco, usando o chapéu de três pontas e com a mão direita enfiada na túnica.
Cada uma dessas representações é singular: por um lado, cada uma delas é um ato psicológico singular que eu realizo (um ato de lembrar, um ato de ver a imagem de Napoleão num quadro, um ato de ler sobre ele num livro, etc.) e, por outro, cada uma delas possui um representante singular (Napoleão a cavalo, Napoleão na batalha de Waterloo, Napoleão fugindo de Elba, etc.). No entanto, embora sejam singulares e distintas umas das outras, todas possuem o mesmo representado, o mesmo significado, a mesma significação ou a mesma essência: Napoleão.
Quando colocamos de lado a singularidade psicológica de cada uma de nossas representações e a singularidade de cada um dos representantes, ficando apenas com a idéia ou significação “Napoleão”, como uma universalidade ou generalidade, temos uma intuição da essência “Napoleão”. A intuição da essência é a apreensão intelectual imediata e direta de uma significação, deixando de lado as particularidades dos representantes que indicam empiricamente a significação. É assim que tenho intuição intelectual da essência ou significação “triângulo”, “imaginação”, “memória”, “natureza”, “cor”, “diferença”, “Europa”, “pintura”, “literatura”, “tempo”, “espaço”, “coisa”, “quantidade”, “qualidade”, etc. Intuímos idéias.
Fala-se também de uma intuição emotiva ou valorativa. Trata-se daquela intuição na qual, juntamente com o sentido ou significação de alguma coisa, captamos também seu valor, isto é, com a idéia intuímos também se a coisa ou essência é verdadeira ou falsa, bela ou feia, boa ou má, justa ou injusta, possível ou impossível, etc. Ou seja, a intuição intelectual capta a essência do objeto (o que ele é) e a intuição emotiva ou valorativa capta essa essência pelo que o objeto vale.

Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia.

São Paulo: Ed. Ática, 2000.

0 Response to "A atividade racional"