A razão discursiva: dedução, indução e abdução
A intuição pode ser o ponto de chegada, a conclusão de um
processo de conhecimento, e pode também ser o ponto de partida de um processo
cognitivo. O processo de conhecimento, seja o que chega a uma intuição, seja o
que parte dela, constitui a razão discursiva ou o raciocínio.
Ao contrário da intuição, o raciocínio é o conhecimento que
exige provas e demonstrações e se realiza igualmente por meio de provas e
demonstrações das verdades que estão sendo conhecidas ou investigadas. Não é um
ato intelectual, mas são vários atos intelectuais internamente ligados ou
conectados, formando um processo de conhecimento.
Um caçador sai pela manhã em busca da caça. Entra no mato e
vê rastros: choveu na véspera e há pegadas no chão; pequenos galhos rasteiros
estão quebrados; o capim está amassado em vários pontos; a carcaça de um bicho
está à mostra, indicando que foi devorado há poucas horas; há um grande
silêncio no ar, não há canto de pássaros, não há ruídos de pequenos animais.
O caçador supõe que haja uma onça por perto. Ele pode,
então, tomar duas atitudes. Se, por todas as experiências anteriores, tiver
certeza de que a onça está nas imediações, pode preparar-se para enfrentá-la:
sabe que caminhos evitar, se não estiver em condições de caçá-la; sabe que
armadilhas armar, se estiver pronto para capturá-la; sabe como atraí-la, se
quiser conservá-la viva e preservar a espécie.
O caçador pode ainda estar sem muita certeza se há ou não
uma onça nos arredores e, nesse caso, tomará uma série de atitudes para
verificar a presença ou ausência do felino: pode percorrer trilhas que sabem
serem próprias de onças; pode examinar melhor as pegadas e o tipo de animal que
foi devorado; pode comparar, em sua memória, outras situações nas quais esteve
presente uma onça, etc.
Assim, partindo de indícios, o caçador raciocina para
chegar a uma conclusão e tomar uma decisão. Temos aí um exercício de raciocínio
empírico e prático (isto é, um pensamento que visa a uma ação) e que se
assemelha à intuição sensível ou empírica, isto é, caracteriza-se pela singularidade
ou individualidade do sujeito e do objeto do conhecimento.
Quando, porém, um raciocínio se realiza em condições tais
que a individualidade psicológica do sujeito e a singularidade do objeto são
substituídas por critérios de generalidade e universalidade, temos a dedução,
a indução e a abdução.
A dedução
Dedução e indução são procedimentos racionais
que nos levam do já conhecido ao ainda não conhecido, isto é, permitem que
adquiramos conhecimentos novos graças a conhecimentos já adquiridos. Por isso,
se costuma dizer que, no raciocínio, o intelecto opera seguindo cadeias de
razões ou os nexos e conexões internos e necessários entre as idéias ou
entre os fatos.
A dedução consiste em partir de uma verdade já
conhecida (seja por intuição, seja por uma demonstração anterior) e que
funciona como um princípio geral ao qual se subordinam todos os casos que serão
demonstrados a partir dela. Em outras palavras, na dedução parte-se de uma
verdade já conhecida para demonstrar que ela se aplica a todos os casos particulares
iguais. Por isso também se diz que a dedução vai do geral ao particular ou do
universal ao individual. O ponto de partida de uma dedução é ou uma idéia
verdadeira ou uma teoria verdadeira.
Por exemplo, se definirmos o triângulo como uma figura
geométrica cujos lados somados são iguais à soma de dois ângulos retos, dela
deduziremos todas as propriedades de todos os triângulos possíveis. Se tomarmos
como ponto de partida as definições geométricas do ponto, da linha, da
superfície e da figura, deduziremos todas as figuras geométricas possíveis.
No caso de uma teoria, a dedução permitirá que cada caso
particular encontrado seja conhecido, demonstrando que a ele se aplicam todas
as leis, regras e verdades da teoria. Por exemplo, estabelecida a verdade da
teoria física de Newton, sabemos que: 1) as leis da física são relações
dinâmicas de tipo mecânico, isto é, se referem à relações de força (ação e
reação) entre corpos dotados de figura, massa e grandeza; 2) os fenômenos
físicos ocorrem no espaço e no tempo; 3) conhecidas as leis iniciais de um
conjunto ou de um sistema de fenômenos, poderemos prever os atos que ocorrerão
nesse conjunto e nesse sistema.
Assim, se eu quiser conhecer um ato físico particular - por
exemplo, o que acontecerá com o corpo lançado no espaço por uma nave espacial,
ou qual a velocidade de um projétil lançado de um submarino para atingir um
alvo num tempo determinado, ou qual é o tempo e a velocidade para um certo
astro realizar um movimento de rotação em torno de seu eixo -, aplicarei a
esses casos particulares as leis gerais da física newtoniana e saberei com
certeza a resposta verdadeira.
A dedução é um procedimento pelo qual um fato ou objeto
particulares são conhecidos por inclusão numa teoria geral.
Costuma-se representar a dedução pela seguinte fórmula:
Todos os x são y (definição ou teoria geral);
A é x (caso particular);
Portanto, A é y (dedução).
Exemplos:
1.
Todos os homens (x) são mortais (y);
Sócrates (A) é homem (x);
Portanto, Sócrates (A) é mortal (y).
2.
Todos os metais (x) são bons condutores de eletricidade (y);
O mercúrio (A) é um metal (x);
Portanto, o mercúrio (A) é bom condutor de eletricidade (y).
A razão oferece regras especiais para realizar uma dedução
e, se tais regras não forem respeitadas, a dedução será considerada falsa.
A indução
A indução realiza um caminho exatamente contrário ao
da dedução. Com a indução, partimos de casos particulares iguais ou semelhantes
e procuramos a lei geral, a definição geral ou a teoria geral que explica e
subordina todos esses casos particulares. A definição ou a teoria são obtidas
no ponto final do percurso. E a razão também oferece um conjunto de regras
precisas para guiar a indução; se tais regras não forem respeitadas, a indução
será considerada falsa.
Por exemplo, colocamos água no fogo e observamos que ela
ferve e se transforma em vapor; colocamos leite no fogo e vemos também que ele
se transforma em vapor; colocamos vários tipos de líquidos no fogo e vemos
sempre sua transformação em vapor. Induzimos desses casos particulares que o
fogo possui uma propriedade que produz a evaporação dos líquidos. Essa
propriedade é o calor.
Verificamos, porém, que os diferentes líquidos não evaporam
sempre na mesma velocidade; cada um deles, portanto, deve ter propriedades
específicas que os fazem evaporar em velocidades diferentes. Descobrimos,
porém, que a velocidade da evaporação não é o fato a ser observado e sim quanto
de calor cada líquido precisa para começar a evaporar. Se considerarmos a água
nosso padrão de medida, diremos que ela ferve e começa a evaporar a partir de
uma certa quantidade de calor e que é essa quantidade de calor que precisa ser
conhecida. Podemos, a seguir, verificar um fenômeno diferente. Vemos que água e
outros líquidos, colocados num refrigerador, endurecem e se congelam, mas que,
como no caso do vapor, cada líquido se congela ou se solidifica em velocidades
diferentes. Procuramos, novamente, a causa dessa diferença de velocidade e
descobrimos que depende tanto de certas propriedades de cada líquido quanto da
quantidade de frio que há no refrigerador. Percebemos, finalmente, que é essa
quantidade que devemos procurar.
Com essas duas séries de fatos (vapor e congelamento),
descobrimos que os estados dos líquidos variam (evaporação e solidificação) em
decorrência da temperatura ambiente (calor e frio) e que cada líquido atinge o
ponto de evaporação ou de solidificação em temperaturas diferentes. Com esses
dados podemos formular uma teoria da relação entre os estados da matéria -
sólido, líquido e gasoso - e as variações de temperatura, estabelecendo uma
relação necessária entre o estado de um corpo e a temperatura ambiente.
Chegamos, por indução, a uma teoria.
A dedução e a indução são conhecidas com o nome de inferência,
isto é, concluir alguma coisa a partir de outra já conhecida. Na dedução, dado X,
infiro (concluo) a, b, c, d. Na indução, dados a,
b, c, d, infiro (concluo) X.
A abdução
O filósofo inglês Peirce considera que, além da dedução e
da indução, a razão discursiva ou raciocínio também se realiza numa terceira
modalidade de inferência, embora esta não seja propriamente demonstrativa. Essa
terceira modalidade é chamada por ele de abdução.
A abdução é uma espécie de intuição, mas que não se dá de
uma só vez, indo passo a passo para chegar a uma conclusão. A abdução é a busca
de uma conclusão pela interpretação racional de sinais, de indícios, de signos.
O exemplo mais simples oferecido por Peirce para explicar o que seja a abdução
são os contos policiais, o modo como os detetives vão coletando indícios ou sinais
e formando uma teoria para o caso que investigam.
Segundo Peirce, a abdução é a forma que a razão possui
quando inicia o estudo de um novo campo científico que ainda não havia sido
abordado. Ela se aproxima da intuição do artista e da adivinhação do detetive,
que, antes de iniciarem seus trabalhos, só contam com alguns sinais que indicam
pistas a seguir. Os historiadores costumam usar a abdução.
De modo geral, diz-se que a indução e a abdução são
procedimentos racionais que empregamos para a aquisição de
conhecimentos, enquanto a dedução é o procedimento racional que empregamos para
verificar ou comprovar a verdade de um conhecimento já adquirido.
Fonte:
CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia.
São
Paulo: Ed. Ática, 2000.
24 de outubro de 2015 às 01:06
Ótimo texto. Só uma correção, Peirce não era inglês, era norte-americano.