A razão: inata ou adquirida?
Inatismo ou empirismo?
De onde vieram os princípios racionais (identidade,
não-contradição, terceiro-excluído e razão suficiente)? De onde veio a
capacidade para a intuição (razão intuitiva) e para o raciocínio (razão
discursiva)? Nascemos com eles? Ou nos seriam dados pela educação e pelo
costume? Seriam algo próprio dos seres humanos, constituindo a natureza deles,
ou seriam adquiridos através da experiência?
Durante séculos, a Filosofia ofereceu duas respostas a
essas perguntas. A primeira ficou conhecida como inatismo e a segunda,
como empirismo.
O inatismo afirma que nascemos trazendo em nossa
inteligência não só os princípios racionais, mas também algumas idéias
verdadeiras, que, por isso, são idéias inatas. O empirismo, ao contrário,
afirma que a razão, com seus princípios, seus procedimentos e suas idéias, é
adquirida por nós através da experiência. Em grego, experiência se diz: empeiria
– donde, empirismo, conhecimento empírico, isto é, conhecimento adquirido por
meio da experiência.
O inatismo
Vamos falar do inatismo tomando dois filósofos como
exemplo: o filósofo grego Platão (século IV a.C.) e o filósofo francês
Descartes (século XVII).
Inatismo platônico
Platão defende a tese do inatismo da razão ou das idéias
verdadeiras em várias de suas obras, mas as passagens mais conhecidas se
encontram nos diálogos Mênon e A República.
No Mênon, Sócrates dialoga com um jovem escravo analfabeto.
Fazendo-lhe perguntas certas na hora certa, o filósofo consegue que o jovem
escravo demonstre sozinho um difícil teorema de geometria (o teorema de
Pitágoras). As verdades matemáticas vão surgindo no espírito do escravo à
medida que Sócrates vai-lhe fazendo perguntas e vai raciocinando com ele.
Como isso seria possível, indaga Platão, se o escravo não
houvesse nascido com a razão e com os princípios da racionalidade? Como dizer
que conseguiu demonstrar o teorema por um aprendizado vindo da experiência, se
ele jamais ouvira falar de geometria?
Em A República, Platão desenvolve uma teoria que já
fora esboçada no Mênon: a teoria da reminiscência. Nascemos com a razão
e as idéias verdadeiras, e a Filosofia nada mais faz do que nos relembrar essas
idéias.
Platão é um grande escritor e usa em seus escritos um
procedimento literário que o auxilia a expor as teorias muito difíceis. Assim,
para explicar a teoria da reminiscência, narra o mito de Er.
O pastor Er, da região da Panfília, morreu e foi levado
para o Reino dos Mortos. Ali chegando, encontra as almas dos heróis gregos, de
governantes, de artistas, de seus antepassados e amigos. Ali, as almas
contemplam a verdade e possuem o conhecimento verdadeiro.
Er fica sabendo que todas as almas renascem em outras vidas
para se purificarem de seus erros passados até que não precisem mais voltar à
Terra, permanecendo na eternidade. Antes de voltar ao nosso mundo, as almas
podem escolher a nova vida que terão. Algumas escolhem a vida de rei, outras de
guerreiro, outras de comerciante rico, outras de artista, de sábio.
No caminho de retorno à Terra, as almas atravessam uma
grande planície por onde corre um rio, o Lethé (que, em grego, quer dizer esquecimento),
e bebem de suas águas. As que bebem muito esquecem toda a verdade que
contemplaram; as bebem pouco quase não se esquecem do que conheceram.
As que escolheram vidas de rei, de guerreiro ou de
comerciante rico são as que mais bebem das águas do esquecimento; as que
escolheram a sabedoria são as que menos bebem. Assim, as primeiras dificilmente
(talvez nunca) se lembrarão, na nova vida, da verdade que conheceram, enquanto
as outras serão capazes de lembrar e ter sabedoria, usando a razão.
Conhecer, diz Platão, é recordar a verdade que já existe em
nós; é despertar a razão para que ela se exerça por si mesma. Por isso,
Sócrates fazia perguntas, pois, através delas, as pessoas poderiam lembrar-se
da verdade e do uso da razão. Se não nascêssemos com a razão e com a verdade,
indaga Platão, como saberíamos que temos uma idéia verdadeira ao encontrá-la?
Como poderíamos distinguir o verdadeiro do falso, se não nascêssemos conhecendo
essa diferença?
Fonte:
CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia.
São
Paulo: Ed. Ática, 2000.
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