A ilusão da neutralidade da ciência
Como a ciência se caracteriza pela separação e pela distinção entre o
sujeito do conhecimento e o objeto; como a ciência se caracteriza por retirar
dos objetos do conhecimento os elementos subjetivos; como os procedimentos
científicos de observação, experimentação e interpretação procuram alcançar o
objeto real ou o objeto construído como modelo aproximado do real; e, enfim,
como os resultados obtidos por uma ciência não dependem da boa ou má vontade do
cientista nem de suas paixões, estamos convencidos de que a ciência é neutra ou
imparcial. Diz à razão o que as coisas são em si mesmas. Desinteressadamente.
Quando o cientista escolhe uma certa definição de seu objeto, decide usar
um determinado método e espera obter certos resultados, sua atividade não é
neutra nem imparcial, mas feita por escolhas precisas. Vamos tomar três
exemplos que nos ajudarão a esclarecer este ponto.
O racismo não é apenas uma ideologia social e política. É também uma teoria
que se pretende científica, apoiada em observações, dados e leis conseguidas
com a biologia, a psicologia, a sociologia. É uma certa maneira de construir
tais dados, de sorte a transformar diferenças étnicas e culturais em diferenças
biológicas naturais imutáveis e separar os seres humanos em superiores e
inferiores, dando aos primeiros justificativas para explorar, dominar e mesmo
exterminar os segundos.
Por que Copérnico teve que esconder os resultados de suas pesquisas e Galileu foi forçado a comparecer perante a
Inquisição e negar que a Terra se movia ao redor do Sol? Porque a concepção
astronômica geocêntrica (elaborada, na Antiguidade, por Ptolomeu e Aristóteles)
permitia que a Igreja Romana mantivesse a ideia de que a realidade é
constituída por uma hierarquia de seres, que vão dos mais perfeitos – os
celestes – aos mais imperfeitos – os infernais – e que essa hierarquia colocava
a Igreja acima dos imperadores, estes acima dos barões e estes acima dos
camponeses e servos.
Se a astronomia demonstrasse que a Terra não é o centro do Universo e que o
Sol não é apenas uma perfeição imóvel, e se a mecânica galileana demonstrasse
que todos os seres estão submetidos às mesmas leis do movimento, então as
hierarquias celestes, naturais e humanas, perderiam legitimidade e fundamento,
não precisando ser respeitadas. A física e a astronomia pré-copernicanas
(elaboradas por Ptolomeu e Aristóteles) serviam – independentemente da vontade
de Ptolomeu e de Aristóteles, é verdade – a uma sociedade e a uma concepção do
poder que se viram ameaçadas por uma nova concepção científica.
Um último exemplo pode ser dado através da antropologia. Durante muito
tempo, os antropólogos afirmaram que havia duas formas de pensamento
cientificamente observáveis e com leis diferentes: o pensamento lógico-racional
dos civilizados (europeus brancos adultos) e o pensamento pré-lógico e
pré-racional dos selvagens ou primitivos (africanos, índios, tribos
australianas). O primeiro era considerado superior, verdadeiro e evoluído; o
segundo, inferior, falso, supersticioso e atrasado, cabendo aos brancos
europeus “auxiliar” os selvagens “primitivos” a abandonar sua cultura e adquirir
a cultura “evoluída” dos colonizadores.
O melhor caminho para perceber a impossibilidade de uma ciência neutra é
levar em consideração o modo como a pesquisa científica se realiza em nosso
tempo.
Durante séculos, os cientistas trabalharam individualmente (mesmo que
possuíssem auxiliares e discípulos) em seus pequenos laboratórios. Suas
pesquisas eram custeadas ou por eles mesmos ou por reis, nobres e burgueses
ricos, que desejavam a glória de patrocinar descobertas e as vantagens práticas
que delas poderiam advir. Por sua vez, o senso comum social olhava o cientista
como inventor e gênio.
Hoje, os cientistas trabalham coletivamente, em equipes, nos grandes
laboratórios universitários, nos dos institutos de pesquisa e nos das grandes
empresas transnacionais que participam de um sistema conhecido como complexo
industrial-militar. As pesquisas são financiadas pelo Estado (nas universidades
e institutos), pelas empresas privadas (em seus laboratórios) e por ambos (nos
centros de investigação do complexo industrial-militar). São pesquisas que
exigem altos investimentos econômicos e das quais se esperam resultados que a
opinião pública nem sempre conhece. Além disso, os cientistas de uma mesma área
de investigação competem por recursos, tendem a fazer segredo de suas
descobertas, pois dependem delas para conseguir fundos e vencer a competição
com outros.
Sabemos, hoje, que a maioria dos resultados científicos que usamos em nossa
vida cotidiana – máquinas, remédios, fertilizantes, produtos de limpeza e de
higiene, materiais sintéticos, computadores – tiveram como origem investigações
militares e estratégicas, competições econômicas entre grandes empresas
transnacionais e competições políticas entre grandes Estados. Muito do que
usamos em nosso cotidiano provém de pesquisas nucleares, bacteriológicas e
espaciais.
O senso comum social, agora, vê o cientista como engenheiro e mago, em roupas brancas no interior de grandes
laboratórios repletos de objetos incompreensíveis, rodeado de outros
cientistas, fazendo cálculos misteriosos diante de dezenas de computadores.
Tanto na visão anterior – o cientista como inventor e gênio solitário –
quanto na atual – o cientista como membro de uma equipe de engenheiros e magos
-, o senso comum vê a ciência desligada do contexto das condições de sua
realização e de suas finalidades. Eis porque tende a acreditar na neutralidade
científica, na ideia de que o único compromisso da ciência é o conhecimento
verdadeiro e desinteressado e a solução correta de nossos problemas.
A ideologia cientificista usa essa imagem idealizada para consolidar a da
neutralidade científica, dissimulando, com isso, a origem e a finalidade da
maioria das pesquisas, destinadas a controlar a Natureza e a sociedade segundo
os interesses dos grupos que controlam os financiamentos dos laboratórios.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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