O ideal científico e a razão instrumental
O ideal científico
O percurso que fizemos no estudo
das ciências evidencia a existência de um ideal
científico: embora continuidades e rupturas marquem os conhecimentos
científicos, a ciência é a confiança que a cultura ocidental deposita na razão
como capacidade para conhecer a realidade, mesmo que esta, afinal, tenha que
ser inteiramente construída pela própria atividade racional.
A lógica que rege o pensamento
científico contemporâneo está centrada na ideia de demonstração e prova, a
partir da definição ou construção do objeto do conhecimento por suas
propriedades e funções e da posição do sujeito do conhecimento, através das
operações de análise, síntese e interpretação. A ciência contemporânea
funda-se:
● na distinção entre sujeito e objeto do conhecimento, que permite
estabelecer a ideia de objetividade, isto é, de independência dos fenômenos em
relação ao sujeito que conhece e age;
● na ideia de método como um conjunto de regras, normas e procedimentos gerais,
que servem para definir ou construir o objeto e para o autocontrole do
pensamento durante a investigação e, após esta, para a confirmação ou
falsificação dos resultados obtidos. A ideia de método tem como pressuposto que
o pensamento obedece universalmente a certos princípios internos – identidade,
não-contradição, terceiro excluído, razão suficiente – dos quais dependem o
conhecimento da verdade e a exclusão do falso. A verdade pode ser compreendida
seja como correspondência necessária entre os conceitos e a realidade, seja
como coerência interna dos próprios conceitos;
● nas operações de análise e síntese, isto é, de passagem do todo complexo
às suas partes constituintes ou de passagem das partes ao todo que as explica e
determina. O objeto científico é um fenômeno submetido à análise e à síntese,
que descrevem os fatos observados ou constroem a própria entidade objetiva como
um campo de relações internas necessárias, isto é, uma estrutura que pode ser
conhecida em seus elementos, suas propriedades, suas funções e seus modos de
permanência ou de transformação;
● na ideia de lei do fenômeno, isto é, de regularidades e constâncias
universais e necessárias, que definem o modo de ser e de comportar-se do
objeto, seja este tomado como um campo separado dos demais, seja tomado em suas
relações com outros objetos ou campos de realidade. A lei científica define o
que é o fato-fenômeno ou o objeto construído pelas operações científicas. Em
outras palavras, a lei científica diz como o objeto se constitui, como se
comporta, por que e como permanece, por que e como se transforma, sobre quais
fenômenos atua e de quais sofre ação. A lei define o objeto segundo um sistema
complexo de relações necessárias de causalidade, complementaridade, inclusão e
exclusão. A ideia de lei visa a marcar o caráter necessário do objeto e a afastar
as idéias de acaso, contingência, indeterminação, oferecendo o objeto como
completamente determinado pelo pensamento ou completamente conhecido ou
cognoscível;
● no uso de instrumentos tecnológicos e não simplesmente técnicos. Os
instrumentos técnicos são prolongamentos de capacidades do corpo humano e
destinam-se a aumentá-las na relação do nosso corpo com o mundo. Os
instrumentos tecnológicos são ciência cristalizada em objetos materiais, nada
possuem em comum com as capacidades e aptidões do corpo humano; visam a
intervir nos fenômenos estudados e mesmo a construir o próprio objeto
científico; destinam-se a dominar e transformar o mundo e não simplesmente a
facilitar a relação do homem com o mundo. A tecnologia confere à ciência
precisão e controle dos resultados, aplicação prática e interdisciplinaridade.
O caso da biologia genética revela como a tecnologia da física, da química e da
cibernética determinaram uma atividade interdisciplinar que resultou em
descobertas e mudanças na biologia;
● na criação de uma linguagem específica e própria, distante da linguagem
cotidiana e da linguagem literária. A ciência procura afastar os dados
qualitativos e perceptivo-emotivos dos objetos ou dos fenômenos, para guardar
ou construir apenas seus aspectos quantitativos e relacionais.
A linguagem cotidiana e a literária são conotativas e polissêmicas, isto é,
nelas as palavras possuem múltiplos significados simultâneos, subentendidos,
ambiguidades e exprimem tanto o sujeito quanto as coisas, ou seja, exprimem as
relações vividas entre o sujeito e o mundo qualitativo de sons, cores, formas,
odores, valores, sentimentos, etc.
Nas ciências, porém, sons e cores são explicados como variação no
comprimento das ondas sonoras e luminosas, observadas e medidas no laboratório.
Valores e sentimentos são explicados pelas análises do corpo vivido e da
consciência, feitas pela psicologia; pelas análises da estrutura e organização
da sociedade, feitas pela sociologia e pela antropologia.
A linguagem científica destaca o objeto das relações com o sujeito,
separa-o da experiência vivida cotidiana e constrói uma linguagem puramente
denotativa para exprimir sem ambiguidades as leis do objeto. O simbolismo
científico rompe com o simbolismo da linguagem cotidiana construindo uma
linguagem própria, com símbolos unívocos e denotativos, de significado único e
universal. A ciência constrói o algoritmo e fala através dos algoritmos ou de
uma combinatória de estilo matemático.
Justamente por serem estes os principais traços do ideal científico, podemos
compreender por que existem os problemas epistemológicos examinados nos
capítulos precedentes. Em outras palavras, o ideal de cientificidade impõe às
idéias critérios e finalidades que, quando impedidos de se concretizarem,
forçam rupturas e mudanças teóricas profundas, fazendo desaparecer campos e
disciplinas científicos ou levando ao surgimento de objetos, métodos,
disciplinas e campos de investigação novos.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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