"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

O ideal científico e a razão instrumental


O ideal científico

O percurso que fizemos no estudo das ciências evidencia a existência de um ideal científico: embora continuidades e rupturas marquem os conhecimentos científicos, a ciência é a confiança que a cultura ocidental deposita na razão como capacidade para conhecer a realidade, mesmo que esta, afinal, tenha que ser inteiramente construída pela própria atividade racional.
A lógica que rege o pensamento científico contemporâneo está centrada na ideia de demonstração e prova, a partir da definição ou construção do objeto do conhecimento por suas propriedades e funções e da posição do sujeito do conhecimento, através das operações de análise, síntese e interpretação. A ciência contemporânea funda-se: 

● na distinção entre sujeito e objeto do conhecimento, que permite estabelecer a ideia de objetividade, isto é, de independência dos fenômenos em relação ao sujeito que conhece e age;
● na ideia de método como um conjunto de regras, normas e procedimentos gerais, que servem para definir ou construir o objeto e para o autocontrole do pensamento durante a investigação e, após esta, para a confirmação ou falsificação dos resultados obtidos. A ideia de método tem como pressuposto que o pensamento obedece universalmente a certos princípios internos – identidade, não-contradição, terceiro excluído, razão suficiente – dos quais dependem o conhecimento da verdade e a exclusão do falso. A verdade pode ser compreendida seja como correspondência necessária entre os conceitos e a realidade, seja como coerência interna dos próprios conceitos;
● nas operações de análise e síntese, isto é, de passagem do todo complexo às suas partes constituintes ou de passagem das partes ao todo que as explica e determina. O objeto científico é um fenômeno submetido à análise e à síntese, que descrevem os fatos observados ou constroem a própria entidade objetiva como um campo de relações internas necessárias, isto é, uma estrutura que pode ser conhecida em seus elementos, suas propriedades, suas funções e seus modos de permanência ou de transformação;
● na ideia de lei do fenômeno, isto é, de regularidades e constâncias universais e necessárias, que definem o modo de ser e de comportar-se do objeto, seja este tomado como um campo separado dos demais, seja tomado em suas relações com outros objetos ou campos de realidade. A lei científica define o que é o fato-fenômeno ou o objeto construído pelas operações científicas. Em outras palavras, a lei científica diz como o objeto se constitui, como se comporta, por que e como permanece, por que e como se transforma, sobre quais fenômenos atua e de quais sofre ação. A lei define o objeto segundo um sistema complexo de relações necessárias de causalidade, complementaridade, inclusão e exclusão. A ideia de lei visa a marcar o caráter necessário do objeto e a afastar as idéias de acaso, contingência, indeterminação, oferecendo o objeto como completamente determinado pelo pensamento ou completamente conhecido ou cognoscível;
● no uso de instrumentos tecnológicos e não simplesmente técnicos. Os instrumentos técnicos são prolongamentos de capacidades do corpo humano e destinam-se a aumentá-las na relação do nosso corpo com o mundo. Os instrumentos tecnológicos são ciência cristalizada em objetos materiais, nada possuem em comum com as capacidades e aptidões do corpo humano; visam a intervir nos fenômenos estudados e mesmo a construir o próprio objeto científico; destinam-se a dominar e transformar o mundo e não simplesmente a facilitar a relação do homem com o mundo. A tecnologia confere à ciência precisão e controle dos resultados, aplicação prática e interdisciplinaridade. O caso da biologia genética revela como a tecnologia da física, da química e da cibernética determinaram uma atividade interdisciplinar que resultou em descobertas e mudanças na biologia;
● na criação de uma linguagem específica e própria, distante da linguagem cotidiana e da linguagem literária. A ciência procura afastar os dados qualitativos e perceptivo-emotivos dos objetos ou dos fenômenos, para guardar ou construir apenas seus aspectos quantitativos e relacionais.
A linguagem cotidiana e a literária são conotativas e polissêmicas, isto é, nelas as palavras possuem múltiplos significados simultâneos, subentendidos, ambiguidades e exprimem tanto o sujeito quanto as coisas, ou seja, exprimem as relações vividas entre o sujeito e o mundo qualitativo de sons, cores, formas, odores, valores, sentimentos, etc.
Nas ciências, porém, sons e cores são explicados como variação no comprimento das ondas sonoras e luminosas, observadas e medidas no laboratório. Valores e sentimentos são explicados pelas análises do corpo vivido e da consciência, feitas pela psicologia; pelas análises da estrutura e organização da sociedade, feitas pela sociologia e pela antropologia.
A linguagem científica destaca o objeto das relações com o sujeito, separa-o da experiência vivida cotidiana e constrói uma linguagem puramente denotativa para exprimir sem ambiguidades as leis do objeto. O simbolismo científico rompe com o simbolismo da linguagem cotidiana construindo uma linguagem própria, com símbolos unívocos e denotativos, de significado único e universal. A ciência constrói o algoritmo e fala através dos algoritmos ou de uma combinatória de estilo matemático.
Justamente por serem estes os principais traços do ideal científico, podemos compreender por que existem os problemas epistemológicos examinados nos capítulos precedentes. Em outras palavras, o ideal de cientificidade impõe às idéias critérios e finalidades que, quando impedidos de se concretizarem, forçam rupturas e mudanças teóricas profundas, fazendo desaparecer campos e disciplinas científicos ou levando ao surgimento de objetos, métodos, disciplinas e campos de investigação novos.


Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed. Ática, 2000.

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