"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

Ciência desinteressada e utilitarismo


Desde a Renascença – isto é, desde o humanismo, que colocava o homem no centro do Universo e afirmava seu poder para conhecer e dominar a realidade – duas concepções sobre o valor da ciência estiveram sempre em confronto.
A primeira delas, que chamaremos de ideal do conhecimento desinteressado, afirma que o valor de uma ciência encontra-se na qualidade, no rigor e na exatidão, na coerência e na verdade de uma teoria, independentemente de sua aplicação prática. A teoria científica vale por trazer conhecimentos novos sobre fatos desconhecidos, por ampliar o saber humano sobre a realidade e não por ser aplicável praticamente. Em outras palavras, é por ser verdadeira que a ciência pode ser aplicada na prática, mas o uso da ciência é conseqüência e não causa do conhecimento científico. 

A segunda concepção, conhecida como utilitarismo, ao contrário, afirma que o valor de uma ciência encontra-se na quantidade de aplicações práticas que possa permitir. É o uso ou a utilidade imediata dos conhecimentos que prova a verdade de uma teoria científica e lhe confere valor. Os conhecimentos são procurados para resolver problemas práticos e estes determinam não só o aparecimento de uma ciência, mas também suas transformações no decorrer do tempo.
As duas concepções são verdadeiras, mas parciais. Se uma teoria científica fosse elaborada apenas por suas finalidades práticas imediatas, inúmeras pesquisas jamais teriam sido feitas e inúmeros fenômenos jamais teriam sido conhecidos, pois, com freqüência, os conhecimentos teóricos estão mais avançados do que as capacidades técnicas de uma época e, em geral, sua aplicação só é percebida e só é possível muito tempo depois de haver sido elaborada.
No entanto, se uma teoria científica não for capaz de suscitar aplicações, se não for capaz de permitir o surgimento de objetos técnicos e tecnológicos, instrumentos, utensílios, máquinas, medicamentos, de resolver problemas importantes para os seres humanos, então seremos obrigados a dizer que a técnica e a tecnologia são cegas, incertas, arriscadas e perigosas, porque são práticas sem bases teóricas seguras. Na realidade, teoria e prática científicas estão relacionadas na concepção moderna e contemporânea de ciência, mesmo que uma possa estar mais avançada do que a outra.
A distinção e a relação entre ciência pura e ciência aplicada pode solucionar o impasse ou o confronto entre as duas concepções sobre o valor das teorias científicas, garantindo, por um lado, que uma teoria possa e deva ser elaborada sem a preocupação com fins práticos imediatos, embora possa, mais tarde, contribuir para eles; e, por outro lado, garantindo o caráter científico de teorias construídas diretamente com finalidades práticas, as quais podem, por sua vez, suscitar investigações puramente teóricas.
Pode-se dizer que são problemas e dificuldades técnicas e práticas que suscitam o desenvolvimento de conhecimentos teóricos. Sabemos, por exemplo, que o químico Lavoisier decidiu estudar o fenômeno da combustão para resolver problemas econômicos da cidade de Paris, que Galileu e Torricelli investigaram o movimento dos corpos no vácuo para resolver problemas de carregamento de grandes pesos nos portos e para responder a uma pergunta dos construtores de fontes dos jardins da cidade de Florença.
No entanto, o que sempre se verifica é que a explicação científica e a teoria acabam conhecendo muito mais fatos e relações do que o que era necessário para solucionar o problema prático, de tal modo que as pesquisas teóricas vão avançando já sem a preocupação prática, embora comecem a surgir e a suscitar, tempos depois, soluções práticas para problemas novos. Assim, por exemplo, passou-se muito tempo até que a teoria eletromagnética de Hertz levasse às técnicas de radiodifusão.

Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed. Ática, 2000.

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