Ciência desinteressada e utilitarismo
Desde a Renascença – isto é, desde o humanismo, que colocava o homem no
centro do Universo e afirmava seu poder para conhecer e dominar a realidade –
duas concepções sobre o valor da ciência estiveram sempre em confronto.
A primeira delas, que chamaremos de ideal do conhecimento desinteressado,
afirma que o valor de uma ciência encontra-se na qualidade, no rigor e na
exatidão, na coerência e na verdade de uma teoria, independentemente de sua
aplicação prática. A teoria científica vale por trazer conhecimentos novos
sobre fatos desconhecidos, por ampliar o saber humano sobre a realidade e não
por ser aplicável praticamente. Em outras palavras, é por ser verdadeira que a
ciência pode ser aplicada na prática, mas o uso da ciência é conseqüência e não
causa do conhecimento científico.
A segunda concepção, conhecida como utilitarismo, ao contrário, afirma que
o valor de uma ciência encontra-se na quantidade de aplicações práticas que
possa permitir. É o uso ou a utilidade imediata dos conhecimentos que prova a
verdade de uma teoria científica e lhe confere valor. Os conhecimentos são
procurados para resolver problemas práticos e estes determinam não só o
aparecimento de uma ciência, mas também suas transformações no decorrer do
tempo.
As duas concepções são verdadeiras, mas parciais. Se uma teoria científica
fosse elaborada apenas por suas finalidades práticas imediatas, inúmeras
pesquisas jamais teriam sido feitas e inúmeros fenômenos jamais teriam sido
conhecidos, pois, com freqüência, os conhecimentos teóricos estão mais
avançados do que as capacidades técnicas de uma época e, em geral, sua
aplicação só é percebida e só é possível muito tempo depois de haver sido
elaborada.
No entanto, se uma teoria científica não for capaz de suscitar aplicações,
se não for capaz de permitir o surgimento de objetos técnicos e tecnológicos,
instrumentos, utensílios, máquinas, medicamentos, de resolver problemas
importantes para os seres humanos, então seremos obrigados a dizer que a
técnica e a tecnologia são cegas, incertas, arriscadas e perigosas, porque são
práticas sem bases teóricas seguras. Na realidade, teoria e prática científicas
estão relacionadas na concepção moderna e contemporânea de ciência, mesmo que
uma possa estar mais avançada do que a outra.
A distinção e a relação entre ciência pura e ciência aplicada pode
solucionar o impasse ou o confronto entre as duas concepções sobre o valor das
teorias científicas, garantindo, por um lado, que uma teoria possa e deva ser
elaborada sem a preocupação com fins práticos imediatos, embora possa, mais
tarde, contribuir para eles; e, por outro lado, garantindo o caráter científico
de teorias construídas diretamente com finalidades práticas, as quais podem,
por sua vez, suscitar investigações puramente teóricas.
Pode-se dizer que são problemas e dificuldades técnicas e práticas que
suscitam o desenvolvimento de conhecimentos teóricos. Sabemos, por exemplo, que
o químico Lavoisier decidiu estudar o fenômeno da combustão para resolver
problemas econômicos da cidade de Paris, que Galileu
e Torricelli investigaram o movimento dos corpos no vácuo para resolver
problemas de carregamento de grandes pesos nos portos e para responder a uma
pergunta dos construtores de fontes dos jardins da cidade de Florença.
No entanto, o que sempre se verifica é que a explicação científica e a
teoria acabam conhecendo muito mais fatos e relações do que o que era
necessário para solucionar o problema prático, de tal modo que as pesquisas
teóricas vão avançando já sem a preocupação prática, embora comecem a surgir e
a suscitar, tempos depois, soluções práticas para problemas novos. Assim, por
exemplo, passou-se muito tempo até que a teoria eletromagnética de Hertz
levasse às técnicas de radiodifusão.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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