O problema do uso das ciências
Além do problema anterior, isto é, de teorias científicas serem formuladas
a partir de certas decisões e escolhas do cientista ou do laboratório onde
trabalham os cientistas, com conseqüências sérias para os seres humanos, um
outro problema também é trazido pelas ciências: o de seu uso.
Vimos que uma teoria científica pode nascer para dar resposta a um problema
prático ou técnico. Vimos também que a investigação científica pode ir
avançando para descobertas de fenômenos e relações que já não possuem relação
direta com os problemas práticos iniciais e, como conseqüência, é freqüente uma
teoria estar muito mais avançada do que as técnicas e tecnologias que poderão
aplicá-la. Muitas vezes, aliás, o cientista sequer imagina que a teoria terá
aplicação prática.
É exatamente isso que torna o uso da ciência algo delicado, que, em geral,
escapa das mãos dos próprios pesquisadores. É assim, por exemplo, que a
microfísica ou física quântica desemboca na fabricação das armas nucleares; a
bioquímica e a genética, na de armas bacteriológicas. Teorias sobre a luz e o
som permitem a construção de satélites artificiais, que, se são conectáveis
instantaneamente em todo o globo terrestre para a comunicação e informação,
também são responsáveis por espionagem militar e por guerras com armas
teleguiadas.
Uma das características mais novas da ciência está em que as pesquisas
científicas passaram a fazer parte das forças produtivas da sociedade, isto é,
da economia. A automação, a informatização, a telecomunicação determinam formas
de poder econômico, modos de organizar o trabalho industrial e os serviços,
criam profissões e ocupações novas, destroem profissões e ocupações antigas,
introduzem a velocidade na produção de mercadorias e em sua distribuição e
consumo, modificando padrões industriais, comerciais e estilos de vida. A
ciência tornou-se parte integrante e indispensável da atividade econômica.
Tornou-se agente econômico e político.
Além de fazer parte essencial da atividade econômica, a ciência também
passou a fazer parte do poder político. Não é por acaso, por exemplo, que
governos criem ministérios e secretarias de ciência e tecnologia e que destinem
verbas para financiar pesquisas civis e militares. Do mesmo modo que as grandes
empresas financiam pesquisas e até criam centros e laboratórios de investigação
científica, assim também os governos determinam quais as ciências que irão ser
desenvolvidas e, nelas, quais as pesquisas que serão financiadas.
Essa nova posição das ciências na sociedade contemporânea, além de indicar
que é mínimo ou quase inexistente o grau de neutralidade e de liberdade dos
cientistas, indica também que o uso
das ciências define os recursos financeiros que nelas serão investidos.
A sociedade, porém, não luta pelo direito de interferir nas decisões de
empresas e governos quando estes decidem financiar um tipo de pesquisa em vez
de outra. Dessa maneira, o campo científico torna-se cada vez mais distante da
sociedade sem que esta encontre meios para orientar o uso das ciências, pois
este é definido antes do início das
próprias pesquisas e fora do
controle que a sociedade poderia exercer sobre ele.
Um exemplo de luta social para intervir nas decisões sobre as pesquisas e
seus usos encontra-se nos movimentos ecológicos e em muitos movimentos sociais
ligados a reivindicações de direitos. De um modo geral, porém, a ideologia
cientificista tende a ser muito mais forte do que eles e a limitar os
resultados que desejariam obter.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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