"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

A razão instrumental


Por que há uma ideologia e uma mitologia da ciência?
Quando estudamos a teoria do conhecimento, examinamos a noção de ideologia como lógica social imaginária de ocultamento da realidade histórica. Ao estudarmos o nascimento da Filosofia, examinamos a diferença entre mythos e logos, isto é, entre a explicação antropomórfica e mágica do mundo e a explicação racional. Quando estudamos a razão, vimos que alguns filósofos alemães, reunidos na Escola de Frankfurt, descreveram a racionalidade ocidental como instrumentalização da razão. Se reunirmos esses vários estudos que fizemos até aqui, poderemos responder à pergunta sobre a ideologização e a mitologização da ciência. 

A razão instrumental – que os frankfurtianos, como Adorno, Marcuse e Horkheimer também designaram com a expressão razão iluminista – nasce quando o sujeito do conhecimento toma a decisão de que conhecer é dominar e controlar a Natureza e os seres humanos. Assim, por exemplo, o filósofo Francis Bacon, no início do século XVII, criou uma expressão para referir-se ao objeto do conhecimento científico: “a Natureza atormentada”.
Atormentar a Natureza é fazê-la reagir a condições artificiais, criadas pelo homem. O laboratório científico é a maneira paradigmática de efetuar esse tormento, pois, nele, plantas, animais, metais, líquidos, gases, etc. são submetidos a condições de investigação totalmente diversas das naturais, de maneira a fazer com que a experimentação supere a experiência, descobrindo formas, causas, efeitos que não poderiam ser conhecidos se contássemos apenas com a atividade espontânea da Natureza. Atormentar a Natureza é conhecer seus segredos para dominá-la e transformá-la.
O tormento da realidade aumenta com a ciência contemporânea, uma vez que esta não se contenta em conhecer as coisas e os seres humanos, mas os constrói artificialmente e aplica os resultados dessa construção ao mundo físico, biológico e humano (psíquico, social, político, histórico). Assim, por exemplo, a organização do processo de trabalho nas indústrias apresenta-se como científica porque é baseada em conceitos da psicologia, da sociologia, da economia, que permitem dominar e controlar o trabalho humano sob todos os aspectos (controle sobre o corpo e o espírito dos trabalhadores), a fim de que a produtividade seja a maior possível para render lucros ao capital.
Na medida em que a razão se torna instrumental, a ciência vai deixando de ser uma forma de acesso aos conhecimentos verdadeiros para tornar-se um instrumento de dominação, poder e exploração. Para que não seja percebida como tal, passa a ser sustentada pela ideologia cientificista, que, através da escola e dos meios de comunicação de massa, desemboca na mitologia cientificista.
Todavia, devemos distinguir entre o momento da investigação científica propriamente dita e o da ideologização-mitologização de uma ciência. Um exemplo poderá auxiliar-nos a perceber essa diferença. Quando Darwin elabora a teoria biológica da evolução das espécies, o modelo de explicação usado por ele permitia-lhe supor que o processo evolutivo ocorria por seleção natural dos mais aptos à sobrevivência.
Ora, na mesma época, a sociedade capitalista estava convencida de que o progresso social e histórico provinha da competição e da concorrência dos indivíduos, segundo a lei econômica da oferta e da procura. Um filósofo, Spencer, aplicou, então, a teoria darwiniana à sociedade: nesta, os mais “aptos” (isto é, os mais capazes de competir e concorrer) tornam-se naturalmente superiores aos outros, vencendo-os em riqueza, privilégios e poder.
Ao transpor uma teoria biológica para uma explicação filosófica sobre a essência da sociedade, Spencer transformou a teoria científica da evolução em ideologia evolucionista. Por quê? Em primeiro lugar, porque generalizou para toda a realidade resultados obtidos num campo particular de conhecimentos específicos. Em segundo lugar, porque tomou conceitos referentes a fatos naturais e os converteu em fatos sociais, como se não houvesse diferença entre Natureza e sociedade. Uma vez criada a ideologia evolucionista, o evolucionismo tornou-se teoria da História e, a seguir, mitologia científica do progresso humano.
A noção de razão instrumental nos permite compreender:
● a transformação de uma ciência em ideologia e mito social, isto é, em senso comum cientificista;
● que a ideologia da ciência não se reduz à transformação de uma teoria científica em ideologia, mas encontra-se na própria ciência, quando esta é concebida como instrumento de dominação, controle e poder sobre a Natureza e a sociedade;
● que as idéias de progresso técnico e neutralidade científica pertencem ao campo da ideologia cientificista.


Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed. Ática, 2000.

0 Response to "A razão instrumental"