A razão instrumental
Por que há uma ideologia e uma
mitologia da ciência?
Quando estudamos a teoria do
conhecimento, examinamos a noção de ideologia como lógica social imaginária de
ocultamento da realidade histórica. Ao estudarmos o nascimento da Filosofia,
examinamos a diferença entre mythos e
logos, isto é, entre a explicação
antropomórfica e mágica do mundo e a explicação racional. Quando estudamos a
razão, vimos que alguns filósofos alemães, reunidos na Escola de Frankfurt,
descreveram a racionalidade ocidental como instrumentalização da razão. Se
reunirmos esses vários estudos que fizemos até aqui, poderemos responder à
pergunta sobre a ideologização e a mitologização da ciência.
A razão instrumental – que os
frankfurtianos, como Adorno, Marcuse e Horkheimer também designaram com a
expressão razão iluminista – nasce
quando o sujeito do conhecimento toma a decisão de que conhecer é dominar e controlar a Natureza e os seres humanos. Assim, por exemplo, o
filósofo Francis Bacon, no início do século XVII, criou uma expressão para
referir-se ao objeto do conhecimento científico: “a Natureza atormentada”.
Atormentar a Natureza é fazê-la
reagir a condições artificiais, criadas pelo homem. O laboratório científico é
a maneira paradigmática de efetuar esse tormento, pois, nele, plantas, animais,
metais, líquidos, gases, etc. são submetidos a condições de investigação
totalmente diversas das naturais, de maneira a fazer com que a experimentação
supere a experiência, descobrindo formas, causas, efeitos que não poderiam ser
conhecidos se contássemos apenas com a atividade espontânea da Natureza.
Atormentar a Natureza é conhecer seus segredos para dominá-la e transformá-la.
O tormento da realidade aumenta
com a ciência contemporânea, uma vez que esta não se contenta em conhecer as
coisas e os seres humanos, mas os constrói artificialmente e aplica os
resultados dessa construção ao mundo físico, biológico e humano (psíquico,
social, político, histórico). Assim, por exemplo, a organização do processo de
trabalho nas indústrias apresenta-se como científica porque é baseada em
conceitos da psicologia, da sociologia, da economia, que permitem dominar e
controlar o trabalho humano sob todos os aspectos (controle sobre o corpo e o
espírito dos trabalhadores), a fim de que a produtividade seja a maior possível
para render lucros ao capital.
Na medida em que a razão se
torna instrumental, a ciência vai deixando de ser uma forma de acesso aos
conhecimentos verdadeiros para tornar-se um instrumento de dominação, poder e
exploração. Para que não seja percebida como tal, passa a ser sustentada pela
ideologia cientificista, que, através da escola e dos meios de comunicação de massa,
desemboca na mitologia cientificista.
Todavia, devemos distinguir
entre o momento da investigação científica propriamente dita e o da
ideologização-mitologização de uma ciência. Um exemplo poderá auxiliar-nos a
perceber essa diferença. Quando Darwin elabora a teoria biológica da evolução
das espécies, o modelo de explicação usado por ele permitia-lhe supor que o
processo evolutivo ocorria por seleção natural dos mais aptos à sobrevivência.
Ora, na mesma época, a sociedade
capitalista estava convencida de que o progresso social e histórico provinha da
competição e da concorrência dos indivíduos, segundo a lei econômica da oferta
e da procura. Um filósofo, Spencer, aplicou, então, a teoria darwiniana à
sociedade: nesta, os mais “aptos” (isto é, os mais capazes de competir e
concorrer) tornam-se naturalmente
superiores aos outros, vencendo-os em riqueza, privilégios e poder.
Ao transpor uma teoria biológica
para uma explicação filosófica sobre a essência da sociedade, Spencer
transformou a teoria científica da
evolução em ideologia evolucionista.
Por quê? Em primeiro lugar, porque generalizou para toda a realidade resultados
obtidos num campo particular de conhecimentos específicos. Em segundo lugar,
porque tomou conceitos referentes a fatos naturais e os converteu em fatos
sociais, como se não houvesse diferença entre Natureza e sociedade. Uma vez
criada a ideologia evolucionista, o evolucionismo tornou-se teoria da História
e, a seguir, mitologia científica do progresso humano.
A noção de razão instrumental
nos permite compreender:
● a transformação de uma ciência em ideologia e mito social, isto é, em
senso comum cientificista;
● que a ideologia da ciência não se reduz à transformação de uma teoria
científica em ideologia, mas encontra-se na própria ciência, quando esta é
concebida como instrumento de dominação, controle e poder sobre a Natureza e a
sociedade;
● que as idéias de progresso técnico e neutralidade científica pertencem ao
campo da ideologia cientificista.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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