Confusão entre ciência e técnica
Vimos que a ciência moderna e contemporânea transforma a técnica em
tecnologia, isto é, passa da máquina-utensílio à máquina como instrumento de
precisão, que permite conhecimentos mais exatos e novos conhecimentos.
Essa transformação traz duas conseqüências principais: a primeira se refere
ao conhecimento científico e a segunda, ao estatuto dos objetos técnicos:
1. o conhecimento científico é concebido como lógica da invenção (para a solução de problemas teóricos e
práticos) e como lógica da construção
(de objetos teóricos), graças à possibilidade de estudar os fenômenos sem
depender apenas dos recursos de nossa percepção e de nossa inteligência. É
assim que, por exemplo, Galileu se
refere ao telescópio como um instrumento cuja função não é a de simplesmente
aproximar objetos distantes, mas de corrigir as distorções de nossos olhos e
garantir-nos a imagem correta das coisas. O mesmo foi dito sobre o microscópio,
sobre a balança de precisão, sobre o cronômetro.
Em nosso tempo, os instrumentos técnico-tecnológicos vão além da correção
de nossa percepção, pois corrigem falhas de nosso pensamento, uma vez que são
inteligências artificiais (o computador foi chamado de “cérebro eletrônico”)
mais acuradas do que nossa inteligência individual. Evidentemente, são
conhecimentos científicos que permitem a construção desses instrumentos, mas
dando-lhes capacidades que cada um de nós, enquanto indivíduo, não possui. Ora,
os objetos técnico-tecnológicos ampliam a ideia da ciência como invenção e
construção dos próprios fenômenos;
2. os objetos técnicos são criados pela ciência como instrumentos de
auxílio ao trabalho humano, máquinas para dominar a Natureza e a sociedade,
instrumentos de precisão para o conhecimento científico e, sobretudo, em sua
forma contemporânea, como autômatos. Estes são o objeto técnico-tecnológico por
excelência, porque possuem as seguintes características, marcas do novo
estatuto desse objeto:
● são conhecimento científico objetivado, isto é, depositado e concretizado
num objeto. São resultado e corporificação de conhecimentos científicos;
● são objetos que possuem em si mesmos o princípio de sua regulação,
manutenção e transformação. As máquinas antigas dependiam de forças externas
para realizar suas funções (alavancas, polias, manivelas, força muscular de
seres humanos ou de animais, força hidráulica, etc.). As máquinas modernas são
autômatos porque, dado o impulso eletro-eletrônico inicial, realizam por si
mesmas todas as operações para as quais foram programadas, incluindo a correção
de sua própria ação, a realimentação de energia, a transformação. São
auto-reguladas e autoconservadas, porque possuem em si mesmas as informações
necessárias ao seu funcionamento;
● como conseqüência, não são propriamente um objeto singular ou individual,
mas um sistema de objetos
interligados por comandos recíprocos;
● são sistemas que, uma vez programados, realizam operações teóricas
complexas, que modificam o conteúdo dos próprios conhecimentos científicos,
isto é, os objetos técnico-tecnológicos fazem parte do trabalho teórico.
Ora, o senso comum social ignora essas transformações da ciência e da
técnica e conhece apenas seus resultados mais imediatos: os objetos que podem
ser usados por nós (máquina de lavar, videogame,
televisão a cabo, máquina de calcular, computador, robô industrial, etc.).
Como, para usá-los, precisamos receber um conjunto de informações
detalhadas e sofisticadas, tendemos a identificar o conhecimento científico com
seus efeitos tecnológicos. Com isso, deixamos de perceber o essencial, isto é,
que as ciências passaram a fazer parte das forças econômicas produtivas da
sociedade e trouxeram mudanças sociais de grande porte na divisão social do
trabalho, na produção e na distribuição dos objetos, na forma de consumi-los.
Não percebemos que as pesquisas científicas são financiadas por empresas e
governos, demandando grandes somas de recursos que retornam, graças aos
resultados obtidos, na forma de lucro e poder para os agentes financiadores.
Por não percebermos o poderio econômico das ciências, lutamos para ter
acesso, para possuir e consumir os objetos tecnológicos, mas não lutamos pelo
direito de acesso tanto aos conhecimentos como às pesquisas científicas, nem
lutamos pelo direito de decidir seu modo de inserção na vida econômica e
política de uma sociedade.
Eis porque, entre outros efeitos de nossa confusão entre ciência e
tecnologia, aceitamos, no Brasil, políticas educacionais que profissionalizam
os jovens no segundo grau – portanto, antes que tenham podido ter acesso às
ciências propriamente ditas – e que destinam poucos recursos públicos às áreas
de pesquisa nas universidades – portanto, mantendo os cientistas na mera
condição de reprodutores de ciências produzidas em outros países e sociedades.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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