"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

Renascimento (Parte 01/08)

GIOTTO - Cenas da vida de Cristo: a natividade

OS PRESSUPOSTOS DO RENASCIMENTO - (Páginas 212-218.)

(…)
Sofia ouviu passos que se aproximavam do outro lado. Então a porta se abriu. Era Alberto Knox. Ele havia trocado de roupa, mas também estava fantasiado. Alberto usava meias brancas até a altura dos joelhos, uma calça vermelha bem larga, também até a altura dos joelhos, e uma jaqueta amarela com gordos enchimentos nos ombros. Sua figura fez Sofia lembrar-se do curinga de um baralho. Se ela não estava enganada, aquele era um traje típico do Renascimento.



— Palhaço! — exclamou Sofia, ao mesmo tempo em que o empurrava para o lado e entrava no apartamento. Ela ainda estava totalmente fora de si por causa do cartão-postal que encontrara junto à escadaria.
— Acalme-se, minha filha — disse Alberto, fechando a porta.
(…)
Foram para a sala, a mais estranha que Sofia já tinha visto em toda a sua vida.
Alberto morava num sótão bem espaçoso, com uma parede inclinada e um teto baixo. No teto havia uma clarabóia que deixava entrar uma luz forte vinda diretamente do céu. A sala também tinha uma janela que dava para a cidade. Através dela, Sofia podia ver o telhado de muitos daqueles casarões antigos.
Mas era a decoração daquela sala enorme que mais deixava Sofia intrigada. A sala estava apinhada de móveis e objetos de diferentes épocas. O sofá devia ser dos anos 30, a velha escrivaninha era mais ou menos da virada do século e havia uma cadeira que devia ter pelo menos alguns séculos de idade. Mas os móveis não eram tudo! Nas prateleiras e estantes havia uma confusão de quinquilharias: relógios e vasos antigos, morteiros e retortas, facas e bonecas, canivetes e suportes para livros, octantes e sextantes, bússolas e barômetros. Uma parede inteira estava coberta de livros, mas não dos que a gente costuma encontrar em livrarias. A coleção de livros também parecia uma pequena amostra de toda a produção de livros de muitos séculos. Nas outras paredes havia gravuras e quadros. Alguns provavelmente datavam de algumas décadas, ao passo que outros pareciam ser muito antigos. E nas paredes havia também alguns mapas. Numa delas, o mapa da Noruega não estava muito certo: o fiorde de Sogne estava mais para o lado de Trøndelag, e o fiorde de Trondheim, muito ao norte.
Sofia ficou algum tempo parada, sem dizer nada. Virou-se algumas vezes e não sossegou enquanto não tinha examinado a sala por todos os ângulos.
— Você coleciona um monte de bugigangas — disse finalmente.
— Bugigangas, não. Imagine quantos séculos de história estão guardados nesta sala. Eu não chamaria isto de bugiganga.
— Por acaso você é dono de uma loja de antiguidades?
O rosto de Alberto assumiu uma expressão de desapontamento.
— Nem todos são capazes de simplesmente se deixar levar pelo fluxo da história, Sofia. Alguns precisam parar e recolher o que foi ficando pelas margens do rio.
— Que forma estranha de se expressar!
— Mas é a verdade, minha cara. Não vivemos apenas em nosso próprio tempo. Carregamos conosco também a nossa história. Não esqueça de que tudo o que você está vendo hoje aqui já foi novinho em folha um dia. Esta pequena boneca de madeira do século XVI, por exemplo, talvez tenha sido feita para a festa de quinze anos de uma garota. E talvez tenha sido feita por seu avô já bem velho… Depois a garota virou uma adolescente, cresceu e se casou. E talvez ela própria tenha tido uma filha, que herdou esta boneca. Depois ela foi ficando velha, até que deixou de existir. É possível que ela tenha vivido uma longa vida, mas agora não existe mais. E nunca mais vai voltar. No fundo, ela apenas fez uma breve visita à Terra. Sua boneca, porém… esta sim está bem sentadinha ali na estante.
— Colocando a coisa desse jeito, tudo ganha um ar triste e solene.
— Mas a vida é triste e solene. Somos deixados num mundo maravilhoso, encontramo-nos aqui com outras pessoas, somos apresentados uns aos outros e caminhamos juntos durante algum tempo. Depois nos separamos e desaparecemos tão rápida e inexplicavelmente quanto surgimos.
(…)
Alberto foi até o sofá e sentou-se. Sofia seguiu o seu exemplo e sentou-se numa poltrona muito confortável.

Extratos da obra de GAARDER, Jostein.
O Mundo de Sofia. Romance da História da Filosofia.
São Paulo: Cia das Letras, 1996.

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