"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

Kant (Parte 08/08)



— Posso considerar meu dever conseguir dinheiro para os que não têm o que comer ou onde morar.
— Sim, e o importante é que você o faça porque considera isto certo. Mesmo que o dinheiro que você conseguiu ajuntar se perca a caminho e jamais chegue a saciar a fome daqueles a quem se destinava, ainda assim você seguiu a lei moral. A sua atitude estava correta e a atitude correta é para Kant decisiva para que possamos chamar algo de moralmente correto, não as conseqüências da ação. Por isso é que também chamamos a ética de Kant de ética da atitude

— Por que era tão importante para ele saber quando exatamente estamos agindo segundo a lei moral? Não é muito mais importante que o que fazemos sirva às outras pessoas?
— Sim, Kant certamente concordaria com você. Mas só quando nós mesmos sabemos que estamos agindo segundo a lei moral é que agimos em liberdade.
— Só porque obedecemos a uma lei estamos agindo em liberdade? Isto não é um pouco estranho?
— Kant acha que não. Você ainda se lembra de que ele teve de “afirmar” ou “postular” que o homem possui livre-arbítrio. Este é um ponto importante, pois Kant também acredita que tudo segue a lei da causalidade. Nesse caso, como poderíamos ter livre-arbítrio?
— Boa pergunta.
— Aqui Kant divide a humanidade em duas partes, e nesse sentido ele lembra Descartes, para quem o homem era um ser dual composto de um corpo e de uma razão. Para Kant, enquanto seres sensíveis, estamos absolutamente entregues às imutáveis leis da causalidade. Não decidimos o que sentimos: os sentimentos e sensações aparecem forçosamente e nos marcam, queiramos ou não. Mas o homem não é apenas um ser dotado de sentidos. Ele é também um ser dotado de razão.
— Explique.
— Enquanto seres dotados de sentidos pertencemos inteiramente à ordem da natureza; por conseqüência, também estamos sujeitos à lei da causalidade. Desse ponto de vista, não possuímos livre-arbítrio. Como seres dotados de razão, porém, também temos em nós uma parte do mundo “em si”, ou seja, do mundo que existe independentemente de nossos sentidos. Somente quando seguimos nossa “razão prática”, que nos habilita a fazer uma escolha moral, é que possuímos livre-arbítrio. Isto porque ao nos curvarmos à lei moral somos nós mesmos que estamos determinando a lei que vai nos governar.
— Sim, de certa forma isto está certo. Afinal, sou eu, ou alguma coisa em mim, quem diz que não devo maltratar os outros.
— Quando você mesma decide não maltratar mais os outros, ainda que isto venha a ferir os seus próprios interesses, nesse momento você está agindo em liberdade.
— De qualquer forma, ninguém é particularmente livre e independente quando segue apenas os seus desejos.
— A gente pode se escravizar a toda a sorte de coisas. Podemos nos tornar escravos do nosso próprio egoísmo, por exemplo. Ir além de seus próprios desejos e vícios é uma coisa que requer exatamente autonomia e liberdade.
— E quanto aos animais? Eles só seguem a sua vontade e a sua necessidade. Isto significa que eles não têm a liberdade de seguir uma lei moral?
— Isso mesmo. E é exatamente esta liberdade que faz de nós seres humanos.
— Agora entendi.
— Para concluir, podemos dizer que Kant conseguiu encontrar uma saída para o impasse a que a filosofia tinha chegado através da briga entre racionalistas e empíricos. Com Kant termina, assim, toda uma épica da história da filosofia. Ele morreu em 1804, no início da época que chamamos de Romantismo. A lápide de seu túmulo em Königsberg traz inscrita uma de suas citações mais conhecidas: “Duas coisas me enchem a alma de crescente admiração e respeito, quanto mais intensa e freqüentemente o pensamento delas se ocupa: o céu estrelado sobre mim e a lei moral dentro de mim”. Aí estão os grandes enigmas que o moveram e à sua filosofia.

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