"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

Ampliando nossa ideia de razão.


A ideia de razão que apresentamos até aqui e que constitui o ideal de racionalidade criado pela sociedade européia ocidental sofreu alguns abalos profundos desde o início do século XX.
Aqui, vamos apenas oferecer alguns exemplos dos problemas que a Filosofia precisou enfrentar e que levaram a uma ampliação da ideia da razão.
Um primeiro abalo veio das ciências da Natureza ou, mais precisamente, da física e atingiu o princípio do terceiro-excluído. A física da luz (ou óptica) descobriu que a luz tanto pode ser explicada por ondas luminosas quanto por partículas descontínuas. Isso significou que já não se podia dizer: “ou a luz se propaga por ondas contínuas ou se propaga por partículas descontínuas”, como exigiria o princípio do terceiro-excluído, mas sim que a luz pode propagar-se tanto de uma maneira como de outra.  

Por sua vez, a física atômica ou quântica abalou o princípio da razão suficiente. Vimos que esse princípio afirma que, conhecido A, posso determinar como dele necessariamente resultará B, ou, conhecido B, posso determinar necessariamente como era A que o causou. Em outras palavras, conhecido o estado E de um fenômeno, posso deduzir como será o estado E2 ou E3 e vice-versa: conhecidos E3 e E2 posso dizer como era o estado E. Ora, a física dos átomos revelou que isso não é possível, que não podemos saber as razões pelas quais os átomos se movimentam, nem sua velocidade e direção, nem os efeitos que produzirão.
Esses dois problemas levaram a introduzir um novo princípio racional na Natureza: o princípio da indeterminação. Assim, o princípio da razão suficiente é válido para os fenômenos macroscópicos, enquanto o princípio da indeterminação é válido para os fenômenos em escala hipermicroscópica.
Um outro problema veio abalar o princípio da identidade e da não-contradição. A física sempre considerou que a Natureza obedece às leis universais da razão objetiva sem depender da razão subjetiva. Em outras palavras, as leis da Natureza existem por si mesmas, são necessárias e universais por si mesmas e não dependem do sujeito do conhecimento.
Contudo, a teoria da relatividade mostrou que as leis da Natureza dependem da posição ocupada pelo observador, isto é, pelo sujeito do conhecimento e, portanto, para um observador situado fora de nosso sistema planetário, a Natureza poderá seguir leis completamente diferentes, de tal modo que, por exemplo, o que é o espaço e o tempo para nós poderá não ser para outros seres (se existirem) da galáxia; a geometria que seguimos pode não ser a que tenha sentido noutro sistema planetário; o que pode ser contraditório para nós poderá não ser para habitantes de outra galáxia e assim por diante.
Um outro problema, também atingindo os princípios da razão, foi trazido pela lógica. O lógico alemão Frege apresentou o seguinte problema: quando digo “a estrela da manhã é a estrela da tarde” estou caindo em contradição e perdendo o princípio da identidade. No entanto, “estrela da manhã” é o planeta Vênus e “estrela da tarde” também é o planeta Vênus; dessa perspectiva, não há contradição alguma no que digo. É preciso, então, distinguir em nosso pensamento e em nossa linguagem três níveis: o objeto a que nós nos referimos, os enunciados que empregamos e o sentido desses enunciados em sua relação com o objeto referido. Somente dessa maneira podemos manter a racionalidade dos princípios da identidade, da não-contradição e do terceiro-excluído.
Enfim, um outro tipo de problema foi trazido com o desenvolvimento dos estudos da antropologia, que mostraram como outras culturas podem oferecer uma concepção muito diferente  da que estamos acostumados sobre o pensamento e a realidade. Isso não significa, como imaginaram durante séculos os colonizadores, que tais culturas ou sociedades sejam irracionais ou pré-racionais, e sim que possuem uma outra ideia do conhecimento e outros critérios para a explicação da realidade.
Como a palavra razão é européia e ocidental, parece difícil falarmos numa outra razão, que seria própria de outros povos e culturas. No entanto, o que os estudos antropológicos mostraram é que precisamos reconhecer a “nossa razão” e a “razão deles”, que se trata de uma outra razão e não da mesma razão em diferentes graus de uma única evolução.
Indeterminação da Natureza, pluralidade de enunciados para um mesmo objeto, pluralidade e diferenciação das culturas foram alguns dos problemas que abalaram a razão, no século XX. A esse abalo devemos acrescentar dois outros. O primeiro deles foi trazido por um não-filósofo, Marx, quando introduziu a noção de ideologia; o segundo também foi trazido por um não-filósofo, Freud, quando introduziu o conceito de inconsciente.
A noção de ideologia veio mostrar que as teorias e os sistemas filosóficos ou científicos, aparentemente rigorosos e verdadeiros, escondiam a realidade social, econômica e política, e que a razão, em lugar de ser a busca e o conhecimento da verdade, poderia ser um poderoso instrumento de dissimulação da realidade, a serviço da exploração e da dominação dos homens sobre seus semelhantes. A razão seria um instrumento da falsificação da realidade e de produção de ilusões pelas quais uma parte do gênero humano se deixa oprimir pela outra.
A noção de inconsciente, por sua vez, revelou que a razão é muito menos poderosa do que a Filosofia imaginava, pois nossa consciência é, em grande parte, dirigida e controlada por forças profundas e desconhecidas que permanecem inconscientes e jamais se tornarão plenamente conscientes e racionais. A razão e a loucura fazem parte de nossa estrutura mental e de nossas vidas e, muitas vezes, como por exemplo no fenômeno do nazismo, a razão é louca e destrutiva.
Fatos como esses - as descobertas na física, na lógica, na antropologia, na história, na psicanálise - levaram o filósofo francês Merleau-Ponty a dizer que uma das tarefas mais importantes da Filosofia contemporânea deveria ser a de encontrar uma nova ideia da razão, uma razão alargada, na qual pudessem entrar os princípios da racionalidade definidos por outras culturas e encontrados pelas descobertas científicas.
Esse alargamento é duplamente necessário e importante. Em primeiro lugar, porque ele exprime a luta contra o colonialismo e contra o etnocentrismo - isto é, contra a visão de que a “nossa” razão e a “nossa” cultura são superiores e melhores do que as dos outros povos. Em segundo lugar, porque a razão estaria destinada ao fracasso se não fosse capaz de oferecer para si mesma novos princípios exigidos pelo seu próprio trabalho racional de conhecimento.

Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia.

São Paulo: Ed. Ática, 2000.

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