Ampliando nossa ideia de razão.
A ideia de razão que apresentamos até aqui e que constitui
o ideal de racionalidade criado pela sociedade européia ocidental sofreu alguns
abalos profundos desde o início do século XX.
Aqui, vamos apenas oferecer alguns exemplos dos problemas
que a Filosofia precisou enfrentar e que levaram a uma ampliação da ideia da
razão.
Um primeiro abalo veio das ciências da Natureza ou, mais
precisamente, da física e atingiu o princípio do terceiro-excluído. A física da
luz (ou óptica) descobriu que a luz tanto pode ser explicada por ondas
luminosas quanto por partículas descontínuas. Isso significou que já não se
podia dizer: “ou a luz se propaga por ondas contínuas ou se propaga por
partículas descontínuas”, como exigiria o princípio do terceiro-excluído, mas
sim que a luz pode propagar-se tanto de uma maneira como de outra.
Por sua vez, a física atômica ou quântica abalou o
princípio da razão suficiente. Vimos que esse princípio afirma que, conhecido A,
posso determinar como dele necessariamente resultará B, ou, conhecido B,
posso determinar necessariamente como era A que o causou. Em outras
palavras, conhecido o estado E de um fenômeno, posso deduzir como será o
estado E2 ou E3 e vice-versa: conhecidos E3
e E2 posso dizer como era o estado E. Ora, a física
dos átomos revelou que isso não é possível, que não podemos saber as razões
pelas quais os átomos se movimentam, nem sua velocidade e direção, nem os
efeitos que produzirão.
Esses dois problemas levaram a introduzir um novo princípio
racional na Natureza: o princípio da indeterminação. Assim, o princípio
da razão suficiente é válido para os fenômenos macroscópicos, enquanto o
princípio da indeterminação é válido para os fenômenos em escala hipermicroscópica.
Um outro problema veio abalar o princípio da identidade e
da não-contradição. A física sempre considerou que a Natureza obedece às leis
universais da razão objetiva sem depender da razão subjetiva. Em outras
palavras, as leis da Natureza existem por si mesmas, são necessárias e
universais por si mesmas e não dependem do sujeito do conhecimento.
Contudo, a teoria da relatividade mostrou que as leis da
Natureza dependem da posição ocupada pelo observador, isto é, pelo sujeito do
conhecimento e, portanto, para um observador situado fora de nosso sistema
planetário, a Natureza poderá seguir leis completamente diferentes, de tal modo
que, por exemplo, o que é o espaço e o tempo para nós poderá não ser para
outros seres (se existirem) da galáxia; a geometria que seguimos pode não ser a
que tenha sentido noutro sistema planetário; o que pode ser contraditório para
nós poderá não ser para habitantes de outra galáxia e assim por diante.
Um outro problema, também atingindo os princípios da razão,
foi trazido pela lógica. O lógico alemão Frege apresentou o seguinte problema:
quando digo “a estrela da manhã é a estrela da tarde” estou caindo em
contradição e perdendo o princípio da identidade. No entanto, “estrela da
manhã” é o planeta Vênus e “estrela da tarde” também é o planeta Vênus; dessa
perspectiva, não há contradição alguma no que digo. É preciso, então,
distinguir em nosso pensamento e em nossa linguagem três níveis: o objeto a que
nós nos referimos, os enunciados que empregamos e o sentido desses enunciados
em sua relação com o objeto referido. Somente dessa maneira podemos manter a
racionalidade dos princípios da identidade, da não-contradição e do
terceiro-excluído.
Enfim, um outro tipo de problema foi trazido com o
desenvolvimento dos estudos da antropologia, que mostraram como outras culturas
podem oferecer uma concepção muito diferente
da que estamos acostumados sobre o pensamento e a realidade. Isso não
significa, como imaginaram durante séculos os colonizadores, que tais culturas
ou sociedades sejam irracionais ou pré-racionais, e sim que possuem uma outra
ideia do conhecimento e outros critérios para a explicação da realidade.
Como a palavra razão é européia e ocidental, parece
difícil falarmos numa outra razão, que seria própria de outros povos e culturas.
No entanto, o que os estudos antropológicos mostraram é que precisamos
reconhecer a “nossa razão” e a “razão deles”, que se trata de uma
outra razão e não da mesma razão em diferentes graus de uma única
evolução.
Indeterminação da Natureza, pluralidade de enunciados para
um mesmo objeto, pluralidade e diferenciação das culturas foram alguns dos
problemas que abalaram a razão, no século XX. A esse abalo devemos acrescentar
dois outros. O primeiro deles foi trazido por um não-filósofo, Marx, quando introduziu
a noção de ideologia; o segundo também foi trazido por um não-filósofo, Freud,
quando introduziu o conceito de inconsciente.
A noção de ideologia veio mostrar que as teorias e os
sistemas filosóficos ou científicos, aparentemente rigorosos e verdadeiros,
escondiam a realidade social, econômica e política, e que a razão, em lugar de
ser a busca e o conhecimento da verdade, poderia ser um poderoso instrumento de
dissimulação da realidade, a serviço da exploração e da dominação dos homens
sobre seus semelhantes. A razão seria um instrumento da falsificação da
realidade e de produção de ilusões pelas quais uma parte do gênero humano se
deixa oprimir pela outra.
A noção de inconsciente, por sua vez, revelou que a razão é
muito menos poderosa do que a Filosofia imaginava, pois nossa consciência é, em
grande parte, dirigida e controlada por forças profundas e desconhecidas que
permanecem inconscientes e jamais se tornarão plenamente conscientes e
racionais. A razão e a loucura fazem parte de nossa estrutura mental e de
nossas vidas e, muitas vezes, como por exemplo no fenômeno do nazismo, a razão
é louca e destrutiva.
Fatos como esses - as descobertas na física, na lógica, na
antropologia, na história, na psicanálise - levaram o filósofo francês
Merleau-Ponty a dizer que uma das tarefas mais importantes da Filosofia
contemporânea deveria ser a de encontrar uma nova ideia da razão, uma razão
alargada, na qual pudessem entrar os princípios da racionalidade definidos
por outras culturas e encontrados pelas descobertas científicas.
Esse alargamento é duplamente necessário e importante. Em
primeiro lugar, porque ele exprime a luta contra o colonialismo e contra o
etnocentrismo - isto é, contra a visão de que a “nossa” razão e a “nossa”
cultura são superiores e melhores do que as dos outros povos. Em segundo lugar,
porque a razão estaria destinada ao fracasso se não fosse capaz de oferecer
para si mesma novos princípios exigidos pelo seu próprio trabalho racional de
conhecimento.
Fonte:
CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia.
São
Paulo: Ed. Ática, 2000.
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