Os vários sentidos da palavra razão.
Em nossa vida cotidiana usamos a palavra razão em muitos
sentidos. Dizemos, por exemplo, “eu estou com a razão”, ou “ele não tem razão”,
para significar que nos sentimos seguros de alguma coisa ou que sabemos com
certeza alguma coisa. Também dizemos que, num momento de fúria ou de desespero,
“alguém perde a razão”, como se a razão fosse alguma coisa que se pode ter ou
não ter, possuir e perder, ou recuperar, como na frase: “Agora ela está lúcida,
recuperou a razão”.
Falamos também frases como: “Se você me disser suas razões,
sou capaz de fazer o que você me pede”, querendo dizer com isso que queremos
ouvir os motivos que alguém tem para querer ou fazer alguma coisa. Fazemos
perguntas como: “Qual a razão disso?”, querendo saber qual a causa de alguma
coisa e, nesse caso, a razão parece ser alguma propriedade que as próprias
coisas teriam, já que teriam uma causa.
Assim, usamos “razão” para nos referirmos a “motivos” de
alguém, e também para nos referirmos a “causas” de alguma coisa, de modo que
tanto nós quanto as coisas parecemos dotados de “razão”, mas em sentido
diferente.
Esses poucos exemplos já nos mostram quantos sentidos
diferentes a palavra razão possui: certeza, lucidez, motivo, causa. E todos
esses sentidos encontram-se presentes na Filosofia.
Por identificar razão e certeza, a Filosofia afirma que a
verdade é racional; por identificar razão e lucidez (não ficar ou não estar
louco), a Filosofia chama nossa razão de luz e luz natural; por identificar
razão e motivo, por considerar que sempre agimos e falamos movidos por motivos,
a Filosofia afirma que somos seres racionais e que nossa vontade é racional;
por identificar razão e causa e por julgar que a realidade opera de acordo com
relações causais, a Filosofia afirma que a realidade é racional.
É muito conhecida a célebre frase de Pascal, filósofo
francês do século XVII: “O coração tem razões que a razão desconhece”. Nessa
frase, as palavras razões e razão não têm o mesmo significado,
indicando coisas diversas. Razões são os motivos do coração, enquanto razão
é algo diferente de coração; este é o nome que damos para as emoções e
paixões, enquanto “razão” é o nome que damos à consciência intelectual e moral.
Ao dizer que o coração tem suas próprias razões, Pascal
está afirmando que as emoções, os sentimentos ou as paixões são causas de muito
do que fazemos, dizemos, queremos e pensamos. Ao dizer que a razão desconhece
“as razões do coração”, Pascal está afirmando que a consciência intelectual e
moral é diferente das paixões e dos sentimentos e que ela é capaz de uma
atividade própria não motivada e causada pelas emoções, mas possuindo seus
motivos ou suas próprias razões.
Assim, a frase de Pascal pode ser traduzida da seguinte
maneira: Nossa vida emocional possui causas e motivos (as “razões do coração”),
que são as paixões ou os sentimentos, e é diferente de nossa atividade
consciente, seja como atividade intelectual, seja como atividade moral.
A consciência é a razão. Coração e razão, paixão e
consciência intelectual ou moral são diferentes. Se alguém “perde a razão” é
porque está sendo arrastado pelas “razões do coração”. Se alguém “recupera a
razão” é porque o conhecimento intelectual e a consciência moral se tornaram
mais fortes do que as paixões. A razão, enquanto consciência moral, é a vontade
racional livre que não se deixa dominar pelos impulsos passionais, mas realiza
as ações morais como atos de virtude e de dever, ditados pela inteligência ou
pelo intelecto.
Além da frase de Pascal, também ouvimos outras que elogiam
as ciências, dizendo que elas manifestam o “progresso da razão”. Aqui, a razão
é colocada como capacidade puramente intelectual para conseguir o conhecimento
verdadeiro da Natureza, da sociedade, da História e isto é considerado algo
bom, positivo, um “progresso”.
Por ser considerado um “progresso”, o conhecimento
científico é visto como se realizando no tempo e como dotado de continuidade,
de tal modo que a razão é concebida como temporal também, isto é, como capaz de
aumentar seus conteúdos e suas capacidades através dos tempos.
Algumas vezes ouvimos um professor dizer a outro: “Fulano
trouxe um trabalho irracional; era um caos, uma confusão. Incompreensível. Já o
trabalho de beltrano era uma beleza: claro, compreensível, racional”. Aqui, a
razão, ou racional, significa clareza das idéias, ordem, resultado de esforço
intelectual ou da inteligência, seguindo normas e regras de pensamento e de
linguagem.
Todos esses sentidos constituem a nossa idéia de razão. Nós
a consideramos a consciência moral que observa as paixões, orienta a vontade e
oferece finalidades éticas para a ação. Nós a vemos como atividade intelectual
de conhecimento da realidade natural, social, psicológica, histórica. Nós a
concebemos segundo o ideal da clareza, da ordenação e do rigor e precisão dos
pensamentos e das palavras.
Para muitos filósofos, porém, a razão não é apenas a
capacidade moral e intelectual dos seres humanos, mas também uma propriedade ou
qualidade primordial das próprias coisas, existindo na própria realidade. Para
esses filósofos, nossa razão pode conhecer a realidade (Natureza, sociedade,
História) porque ela é racional em si mesma.
Fala-se, portanto, em razão objetiva (a realidade é
racional em si mesma) e em razão subjetiva (a razão é uma capacidade
intelectual e moral dos seres humanos). A razão objetiva é a afirmação de que o
objeto do conhecimento ou a realidade é racional; a razão subjetiva é a
afirmação de que o sujeito do conhecimento e da ação é racional. Para
muitos filósofos, a Filosofia é o momento do encontro, do acordo e da harmonia
entre as duas razões ou racionalidades.
Fonte:
CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia.
São
Paulo: Ed. Ática, 2000.
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