Temas, disciplinas e campos filosóficos
A Filosofia existe há 25
séculos. Durante uma história tão longa e de tantos períodos diferentes,
surgiram temas, disciplinas e campos de investigação filosóficos enquanto
outros desapareceram. Desapareceu também a ideia de Aristóteles de que a
Filosofia era a totalidade dos conhecimentos teóricos e práticos da humanidade.
Também desapareceu uma imagem,
que durou muitos séculos, na qual a Filosofia era representada como uma grande
árvore frondosa, cujas raízes eram a metafísica e a teologia, cujo tronco era a
lógica, cujos ramos principais eram a filosofia da Natureza, a ética e a
política e cujos galhos extremos eram as técnicas, as artes e as invenções. A
Filosofia, vista como uma totalidade orgânica ou viva, era chamada de “rainha
das ciências”. Isso desapareceu.
Pouco a pouco, as várias
ciências particulares foram definindo seus objetivos, seus métodos e seus
resultados próprios, e se desligaram da grande árvore. Cada ciência, ao se
desligar, levou consigo os conhecimentos práticos ou aplicados de seu campo de
investigação, isto é, as artes e as técnicas a ele ligadas. As últimas ciências
a aparecer e a se desligar da árvore da Filosofia foram as ciências humanas
(psicologia, sociologia, antropologia, história, linguística, geografia, etc.).
Outros campos de conhecimento e de ação abriram-se para a Filosofia, mas a
ideia de uma totalidade de saberes que conteria em si todos os conhecimentos
nunca mais reapareceu.
No século XX, a Filosofia foi
submetida a uma grande limitação quanto à esfera de seus conhecimentos. Isso
pode ser atribuído a dois motivos principais:
1. Desde o final do
século XVIII, com o filósofo alemão Immanuel Kant, passou-se a considerar que a
Filosofia, durante todos os séculos anteriores, tivera uma pretensão
irrealizável. Que pretensão fora essa? A de que nossa razão pode conhecer as
coisas tais como são em si mesmas. Esse conhecimento da realidade em si, dos
primeiros princípios e das primeiras causas de todas as coisas chama-se metafísica.
Kant negou que a razão humana
tivesse tal poder de conhecimento e afirmou que só conhecemos as coisas tais
como são organizadas pela estrutura interna e universal de nossa razão, mas
nunca saberemos se tal organização corresponde ou não à organização em si da
própria realidade. Deixando de ser metafísica, a Filosofia se tornou o
conhecimento das condições de possibilidade do conhecimento verdadeiro enquanto
conhecimento possível para os seres humanos racionais.
A Filosofia tornou-se uma teoria
do conhecimento, ou uma teoria sobre a capacidade e a possibilidade humana
de conhecer, e uma ética, ou estudo das condições de possibilidade da
ação moral enquanto realizada por liberdade e por dever. Com isso, a Filosofia
deixava de ser conhecimento do mundo em si e tornava-se apenas conhecimento do
homem enquanto ser racional e moral.
2. Desde meados do século
XIX, como conseqüência da filosofia de Augusto Comte - chamada de positivismo
-, foi feita uma separação entre Filosofia e ciências positivas (matemática,
física, química, biologia, astronomia, sociologia). As ciências, dizia Comte,
estudam a realidade natural, social, psicológica e moral e são propriamente o
conhecimento. Para ele, a Filosofia seria apenas uma reflexão sobre o
significado do trabalho científico, isto é, uma análise e uma interpretação dos
procedimentos ou das metodologias usadas pelas ciências e uma avaliação dos
resultados científicos. A Filosofia tornou-se, assim, uma teoria das ciências
ou epistemologia (episteme, em grego, quer dizer ciência).
A Filosofia reduziu-se,
portanto, à teoria do conhecimento, à ética e à epistemologia. Como
conseqüência dessa redução, os filósofos passaram a ter um interesse primordial
pelo conhecimento das estruturas e formas de nossa consciência e também pelo
seu modo de expressão, isto é, a linguagem.
O interesse pela consciência reflexiva
ou pelo sujeito do conhecimento deu surgimento a uma corrente filosófica
conhecida como fenomenologia, iniciada pelo filósofo alemão Edmund
Husserl. Já o interesse pelas formas e pelos modos de funcionamento da
linguagem corresponde a uma corrente filosófica conhecida como filosofia
analítica cujo início é atribuído ao filósofo austríaco Ludwig
Wittgenstein.
No entanto, a atividade
filosófica não se restringiu à teoria do conhecimento, à lógica, à
epistemologia e à ética. Desde o início do século XX, a História da
Filosofia tornou-se uma disciplina de grande prestígio e, com ela, a
história das idéias e a história das ciências.
Desde a Segunda Guerra Mundial,
com o fenômeno do totalitarismo - fascismo, nazismo, stalinismo -, com as
guerras de libertação nacional contra os impérios coloniais e as revoluções
socialistas em vários países; desde os anos 60, com as lutas contra ditaduras e
com os movimentos por direitos (negros, índios, mulheres, idosos, homossexuais,
loucos, crianças, os excluídos econômica e politicamente); e desde os anos 70,
com a luta pela democracia em países submetidos a regimes autoritários, um
grande interesse pela filosofia política ressurgiu e, com ele, as
críticas de ideologias e uma nova discussão sobre as relações entre a ética e a
política, além das discussões em torno da filosofia da História.
Atualmente, um movimento
filosófico conhecido como desconstrutivismo ou pós-modernismo,
vem ganhando preponderância. Seu alvo principal é a crítica de todos os
conceitos e valores que, até hoje, sustentaram a Filosofia e o pensamento dito
ocidental: razão, saber, sujeito, objeto, História, espaço, tempo, liberdade,
necessidade, acaso, Natureza, homem, etc.
Quais são os campos próprios em
que se desenvolve a reflexão filosófica nestes vinte e cinco séculos? São eles:
Ontologia ou metafísica:
conhecimento dos princípios e fundamentos últimos de toda a realidade, de todos
os seres;
Lógica: conhecimento das
formas gerais e regras gerais do pensamento correto e verdadeiro,
independentemente dos conteúdos pensados; regras para a demonstração científica
verdadeira; regras para pensamentos não-científicos; regras sobre o modo de
expor os conhecimentos; regras para a verificação da verdade ou falsidade de um
pensamento, etc.;
Epistemologia: análise
crítica das ciências, tanto as ciências exatas ou matemáticas, quanto as
naturais e as humanas; avaliação dos métodos e dos resultados das ciências;
compatibilidades e incompatibilidades entre as ciências; formas de relações
entre as ciências, etc.;
Teoria do conhecimento ou
estudo das diferentes modalidades de conhecimento humano: o conhecimento
sensorial ou sensação e percepção; a memória e a imaginação; o conhecimento
intelectual; a idéia de verdade e falsidade; a idéia de ilusão e realidade;
formas de conhecer o espaço e o tempo; formas de conhecer relações;
conhecimento ingênuo e conhecimento científico; diferença entre conhecimento
científico e filosófico, etc.;
Ética: estudo dos valores
morais (as virtudes), da relação entre vontade e paixão, vontade e razão;
finalidades e valores da ação moral; idéias de liberdade, responsabilidade,
dever, obrigação, etc.;
Filosofia política:
estudo sobre a natureza do poder e da autoridade; ideia de direito, lei,
justiça, dominação, violência; formas dos regimes políticos e suas
fundamentações; nascimento e formas do Estado; idéias autoritárias,
conservadoras, revolucionárias e libertárias; teorias da revolução e da
reforma; análise e crítica das ideologias;
Filosofia da História:
estudo sobre a dimensão temporal da existência humana como existência
sociopolítica e cultural; teorias do progresso, da evolução e teorias da
descontinuidade histórica; significado das diferenças culturais e históricas,
suas razões e conseqüências;
Filosofia da arte ou estética:
estudo das formas de arte, do trabalho artístico; ideia de obra de arte e de
criação; relação entre matéria e forma nas artes; relação entre arte e
sociedade, arte e política, arte e ética;
Filosofia da linguagem: a
linguagem como manifestação da humanidade do homem; signos, significações; a
comunicação; passagem da linguagem oral à escrita, da linguagem cotidiana à
filosófica, à literária, à científica; diferentes modalidades de linguagem como
diferentes formas de expressão e de comunicação;
História da Filosofia: estudo
dos diferentes períodos da Filosofia; de grupos de filósofos segundo os temas e
problemas que abordam; de relações entre o pensamento filosófico e as condições
econômicas, políticas, sociais e culturais de uma sociedade; mudanças ou
transformações de conceitos filosóficos em diferentes épocas; mudanças na
concepção do que seja a Filosofia e de seu papel ou finalidade.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia.
São Paulo: Ed. Ática, 2000.
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