A inteligência
A psicologia costuma definir a
inteligência por sua função, considerando-a uma atividade de adaptação ao
ambiente, através do estabelecimento de relações entre meios e fins para a
solução de um problema ou de uma dificuldade. Essa definição concebe, portanto,
a inteligência como uma atividade eminentemente prática e a distingue de duas
outras que também possuem finalidade adaptativa e relacionam meios e fins: o
instinto e o hábito.
Compartilhamos o instinto e o
hábito com os animais. O instinto, por exemplo, nos leva automaticamente a
contrair a pupila quando nossos olhos estão muito expostos à luz e a dilatá-la
quando estamos na escuridão; leva-nos a afastar rapidamente a mão de uma
superfície muito quente que possa queimar-nos. O instinto é inato. Ao
contrário, o hábito é adquirido, mas, como o instinto, tende a realizar-se
automaticamente. Por exemplo, quem adquire o hábito de dirigir um veículo, muda
as marchas, pisa na embreagem, no acelerador ou no freio sem precisar pensar
nessas operações; quem aprende a patinar ou a nadar, realiza maquinalmente os
gestos necessários, depois de adquiri-los.
Instinto e hábito são formas de
comportamento cuja principal característica é serem especializados ou
específicos: a abelha sabe fazer a colméia, mas é incapaz de fazer o ninho; o
joão-de-barro constrói uma “casa”, mas é incapaz de fazer uma colméia; posso
aprender a nadar, mas esse hábito não me faz saber andar de bicicleta.
O instinto e o hábito
especializam as funções, os meios e os fins e não possuem flexibilidade para mudá-los
ou para adaptar um novo meio para um novo fim, nem para usar meios novos para
um fim já existente. A tendência do instinto ou do hábito é a repetição e o
automatismo das respostas aos problemas.
A inteligência difere do
instinto e do hábito por sua flexibilidade, pela capacidade de encontrar novos
meios para um novo fim, ou de adaptar meios existentes para uma finalidade
nova, pela possibilidade de enfrentar de maneira diferente situações novas e
inventar novas soluções para elas, pela capacidade de escolher entre vários
meios possíveis e entre vários fins possíveis. Nesse nível prático, a
inteligência é capaz de criar instrumentos, isto é, de dar uma função
nova e um sentido novo a coisas já existentes, para que sirvam de meios a novos
fins.
Compartilhamos a inteligência
prática com alguns animais, especialmente com os chimpanzés. O psicólogo Köhler
fez experiências com alguns desses animais e demonstrou que eram capazes de
comportamentos inteligentes:
● colocado um chimpanzé numa
pequena sala, põe-se a seu lado um certo número de caixotes e prende-se uma
banana no teto. Após saltos instintivos (infrutíferos) para a agarrar a banana,
o chimpanzé consegue empilhar os caixotes, subir neles e agarrar o alimento;
● colocado um chimpanzé numa
pequena sala, nas mesmas circunstâncias anteriores, mas oferecendo bambus em
vez de caixotes, o chimpanzé termina por encaixar os bambus uns nos outros,
formando um instrumento para apanhar a banana.
Os gestaltistas explicam o
comportamento do chimpanzé mostrando que ele se comporta percebendo um campo
perceptivo no qual a banana, os caixotes e os bambus formam uma totalidade e se
relacionam enquanto partes de um todo, de modo que os caixotes e os bambus são
percebidos como parte da paisagem e como meios para um fim (agarrar a banana).
O fato de que o chimpanzé
percebe um campo perceptivo, e não objetos isolados, é demonstrado quando, no
lugar dos bambus, são colocados arames, que o animal enganchará uns nos outros
para colher a fruta; ou quando, no lugar dos caixotes, são colocadas mesinhas
de tamanhos diferentes, que podem ser empilhadas pelo animal para agarrar a
banana.
No entanto, observa-se algo
interessante. Depois de comer a banana, o chimpanzé nada faz com os caixotes,
os bambus, os arames ou as mesas. Ficam à sua volta como objetos sem sentido.
Ao contrário, uma criança nas mesmas circunstâncias, depois de conseguir
apanhar um doce, por exemplo, examinará os objetos. Se descobrir que são
desmontáveis, ela tentará fazer, com os caixotes e as mesas, uma escada, e com
os bambus e os arames, uma rede.
Essa diferença nos
comportamentos do chimpanzé e da criança revela que esta última ultrapassa a
situação imediata de fome e de uso direto dos objetos e prevê uma situação futura
para a qual encontra uma solução, transformando os objetos em instrumentos
propriamente ditos.
A criança antecipa uma
situação e transforma os dados de uma situação presente, fabricando
meios para certos fins que ainda estão ausentes. Ela se lembra da
situação passada, espera a situação futura, organiza a situação
presente a partir dos dados lembrados, esperados e percebidos, imagina
uma situação nova e responde a ela, mesmo que ainda esteja ausente.
A criança se relaciona com o
tempo e transforma seu espaço por essa relação temporal. A criança representa
seu mundo e atua praticamente sobre ele. Sua inteligência difere,
portanto, da do animal.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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