"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

A necessidade do método


A palavra método vem do grego, methodos, composta de meta: através de, por meio de, e de hodos: via, caminho. Usar um método é seguir regular e ordenadamente um caminho através do qual uma certa finalidade ou um certo objetivo é alcançado. No caso do conhecimento, é o caminho ordenado que o pensamento segue por meio de um conjunto de regras e procedimentos racionais, com três finalidades:
1. conduzir à descoberta de uma verdade até então desconhecida;
2. permitir a demonstração e a prova de uma verdade já conhecida;
3. permitir a verificação de conhecimentos para averiguar se são ou não verdadeiros. 

O método é, portanto, um instrumento racional para adquirir, demonstrar ou verificar conhecimentos.
Por que se sente a necessidade de um método? Porque, como vimos, o erro, a ilusão, o falso, a mentira rondam o conhecimento, interferem na experiência e no pensamento. Para dar segurança ao conhecimento, o pensamento cria regras e procedimentos que permitam ao sujeito cognoscente aferir e controlar todos os passos que realiza no conhecimento de algum objeto ou conjunto de objetos.
A Filosofia conheceu diferentes concepções de método.
Platão, por exemplo, considerava que o melhor caminho para o conhecimento verdadeiro era o que permitia ao pensamento libertar-se do conhecimento sensível (crenças, opiniões), isto é, das imagens e aparências das coisas. Atribuía esse papel liberador à discussão racional, sob a forma do diálogo.
No diálogo, os interlocutores, guiados pelas perguntas do filósofo (no caso, Sócrates), examinam e discutem opiniões que cada um deles possui sobre alguma coisa; descobrem que suas opiniões são contraditórias e não levam a conhecimento algum. Aceitam abandoná-las e conseguem, pouco a pouco, chegar à idéia universal ou à essência da coisa procurada. Por se tratar de um confronto entre imagens e opiniões contrárias ou contraditórias, esse método ou caminho era chamado por Platão de dialética (discussão de teses contrárias e em conflito ou oposição).
Aristóteles, no entanto, considerou a dialética inadequada ao pensamento, pois, dizia ele, tal procedimento lida com meras opiniões prováveis, não oferecendo qualquer garantia de que tenhamos superado o conflito de opiniões e alcançado a essência verdadeira da coisa investigada. Por esse motivo, definiu o procedimento filosófico-científico como um método demonstrativo que se realiza por meio de silogismos. O silogismo é um conjunto de três juízos ou proposições que permite obter uma conclusão verdadeira. Trata-se de um método dedutivo no qual, de duas premissas, deduz-se uma conclusão. Por exemplo:

Todos os homens são mortais.
Sócrates é homem.
Logo, Sócrates é mortal.

Aristóteles considerava, porém, que os objetos que são conhecidos por experiência, e não só pelo puro pensamento, deveriam seguir um método indutivo, no qual o silogismo seria o resultado final conseguido pelo conhecimento.
Durante a modernidade (isto é, a partir do século XVII), a necessidade de um método tornou-se ainda mais imperiosa do que antes, pois, como vimos, o sujeito do conhecimento não sabe se pode alcançar a verdade.
O sujeito do conhecimento descobre-se como uma consciência que parece não poder contar com o auxílio do mundo para guiá-lo, desconfia dos conhecimentos sensíveis e dos conhecimentos herdados. Está só. Conta apenas com seu próprio pensamento. Separado do mundo, isolado com suas percepções, opiniões, idéias, sua solidão torna indispensável um método que possa guiar o pensamento em direção aos conhecimentos verdadeiros e distingui-los dos falsos. Eis porque Descartes escreve o Discurso do método e as Regras para a direção do espírito. Sobre o método, diz ele, na regra IV das Regras:

Por método, entendo regras certas e fáceis, graças às quais todos os que as observem exatamente jamais tomarão como verdadeiro aquilo que é falso e chegarão, sem se cansar com esforços inúteis e aumentando progressivamente sua ciência, ao conhecimento verdadeiro de tudo o que lhes é possível esperar.

Descartes enuncia, portanto, as três principais características das regras do método:
1. certas (o método dá segurança ao pensamento);
2. fáceis (o método economiza esforços inúteis); e
3. que permitam alcançar todos os conhecimentos possíveis para o entendimento humano.
Por sua vez, Francis Bacon definiu o método como o modo seguro e certo de “aplicar a razão à experiência”, isto é, de aplicar o pensamento lógico aos dados oferecidos pelo conhecimento sensível.
O método, nas várias formulações que recebeu no correr da história da Filosofia e das ciências, sempre teve o papel de um regulador do pensamento, isto é, de aferidor e avaliador das idéias e teorias: guia o trabalho intelectual (produção das idéias, dos experimentos, das teorias) e avalia os resultados obtidos.
Desde Aristóteles, a Filosofia considera que, ao lado de um método geral que todo e qualquer conhecimento deve seguir, tanto para a aquisição quanto para a demonstração e verificação de verdades, outros métodos particulares são necessários, pois os objetos a serem conhecidos também exigem métodos que estejam em conformidade com eles e, assim, haverá diferentes métodos conforme a especificidade do objeto a ser conhecido. Dessa maneira, são diferentes entre si os métodos da geometria e da física, da biologia e da sociologia, da história e da química, e assim por diante.
É interessante notar, todavia, que, em certos períodos da história da Filosofia e das ciências, chegou-se a pensar num método único que ofereceria os mesmos princípios e as mesmas regras para todos os campos do conhecimento. Assim, por exemplo, Galileu julgou que o método matemático deveria ser usado em todos os conhecimentos da Natureza, pois, dizia ele, “A Natureza é um livro escrito em caracteres matemáticos”.
Descartes, indo mais longe que Galileu, julgou que um só e mesmo método deveria ser empregado pela Filosofia e por todas as ciências, uma mathesis universalis, ou o conhecimento da ordem necessárias das idéias, válida para todos os objetos de conhecimento. Conhecer seria ordenar e encadear em nexos contínuos as idéias referentes a um objeto e tal procedimento deveria ser o mesmo em todos os conhecimentos porque esse é o modo próprio do pensamento, seja qual for o objeto a ser conhecido.
Os filósofos e cientistas do final do século XIX também afirmavam que um método único deveria ser seguido. Entusiasmados com os desenvolvimentos da física, julgaram que todos os campos do saber deveriam empregar o método usado pela “ciência da Natureza”, mesmo quando o objeto fosse o homem. Agora, não era tanto a idéia de ordenamento interno das idéias que levava à defesa de um único método de conhecimento, mas a idéia da causalidade ou de explicação causal de todos os fatos, fossem eles naturais ou humanos.
Hoje, porém, sobretudo com a fenomenologia de Husserl e com a corrente do pensamento conhecida como estruturalismo, considera-se que cada campo do conhecimento deva ter seu método próprio, determinado pela natureza do objeto, pela forma como o sujeito do conhecimento pode aproximar-se desse objeto e pelo conceito de verdade que cada esfera do conhecimento define para si própria.
Assim, por exemplo, considera-se o método matemático, isto é, dedutivo, próprio para objetos que existem apenas idealmente e que são construídos inteiramente pelo nosso pensamento; ao contrário, o método experimental, isto é, indutivo, é próprio das ciências naturais, que observam seus objetos e realizam experimentos.
Já as ciências humanas têm métodos de compreensão e de interpretação do sentido das ações, das práticas, dos comportamentos, das instituições sociais e políticas, dos sentimentos, dos desejos, das transformações históricas, pois o homem, objeto dessas ciências, é um ser histórico-cultural que produz as instituições e o sentido delas. Tal sentido é o que precisa ser conhecido.
No caso das ciências exatas (as matemáticas), o método é chamado axiomático, isto é, baseia o conhecimento num conjunto de termos primitivos e de axiomas, que são o ponto de partida da construção e demonstração dos objetos.
No caso das ciências naturais (física, química, biologia, etc.), o método é chamado experimental e hipotético. Experimental, porque se baseia em observações e em experimentos, tanto para formular quanto para verificar as teorias. Hipotético, porque os cientistas partem de hipóteses sobre os objetos que guiam os experimentos e a avaliação dos resultados.
No caso das ciências humanas (psicologia, sociologia, antropologia, história, etc.), o método é chamado compreensivo-interpretativo, porque seu objeto são as significações ou os sentidos dos comportamentos, das práticas e das instituições realizadas ou produzidas pelos seres humanos.
Quanto à Filosofia, embora os filósofos tenham oscilado entre vários métodos possíveis, atualmente quatro traços são comuns aos diferentes métodos filosóficos:
1. o método é reflexivo – parte da auto-análise ou do autoconhecimento do pensamento;
2. é crítico – investiga os fundamentos e as condições necessárias da possibilidade do conhecimento verdadeiro, da ação ética, da criação artística e da atividade política;
3. é descritivo – descreve as estruturas internas ou essências de cada campo de objetos do conhecimento e das formas de ação humana;
4. é interpretativo – busca as formas da linguagem e as significações ou os sentidos dos objetos, dos fatos, das práticas e das instituições, suas origens e transformações.


Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed. Ática, 2000.

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