Pensamento mítico e pensamento lógico
Vimos que
a língua grega possuía duas palavras para referir-se à linguagem: mythos
e logos. Vimos também, tanto no estudo da linguagem quanto no da
inteligência, que falar e pensar são inseparáveis. Por isso mesmo, podemos
referir-nos a duas modalidades do pensamento, conforme predomine o mythos
ou o logos.
A tradição filosófica, sobretudo
a partir do século XVIII (com a filosofia da Ilustração) e do século XIX (com a
filosofia da história de Hegel e o positivismo de Comte), afirmava que do mito
à lógica havia uma evolução do espírito humano, isto é, o mito era uma fase ou
etapa do espírito humano e da civilização que antecedia o advento da lógica ou
do pensamento lógico, considerado a etapa posterior e evoluída do pensamento e
da civilização. Essa tradição filosófica fez crer que o mito pertenceria a
culturas “inferiores”, “primitivas” ou “atrasadas”, enquanto o pensamento
lógico ou racional pertenceria a culturas “superiores”, “civilizadas” e
“adiantadas”.
Essa separação temporal e
evolutiva de duas modalidades de pensamento fazia com que se julgasse a presença,
em nossas sociedades, de explicações míticas (isto é, as religiões, a
literatura, as artes) como uma espécie de “resíduo” ou “resto” de uma fase
passada da evolução da humanidade, destinada a desaparecer com a plena evolução
da racionalidade científica e filosófica.
Hoje, porém, sabe-se que a
concepção evolutiva está equivocada. O pensamento mítico pertence ao campo do
pensamento simbólico e da linguagem simbólica, que coexistem com o campo do
pensamento e da linguagem conceituais. Duas linhas de estudos mostraram essa
coexistência, embora essas duas modalidades de pensamento e de linguagem sejam
não só diferentes, mas também, freqüentemente, contrárias e opostas.
A primeira linha vem da
antropologia social, que estuda os mitos das sociedades ditas selvagens e
também as mitologias de nossas sociedades, ditas civilizadas. Os antropólogos
mostraram que, no caso de nossas sociedades, a presença simultânea do
conceitual e do mítico decorre do modo como a imaginação social transforma em
mito aquilo que o pensamento conceitual elabora nas ciências e na Filosofia.
Basta ver o caráter mágico-maravilhoso dado aos satélites e computadores para
vermos a passagem da ciência ao mito.
A segunda linha vem da
neurologia e da análise da anatomia e da fisiologia do cérebro humano,
mostrando que esse órgão possui duas partes ou dois hemisférios, num deles
localizando-se a linguagem e o pensamento simbólicos e noutro, a linguagem e o
pensamento conceituais. Certas pessoas, como os artistas, desenvolvem mais o
hemisfério simbólico, enquanto outras, como os cientistas, desenvolvem mais o
hemisfério conceitual e lógico.
Assim, a predominância de uma ou
outra forma do pensamento depende, por um lado, das tendências pessoais e da
história da vida dos indivíduos e, de outro lado, do modo como uma sociedade ou
uma cultura recorrem mais a uma do que à outra forma para interpretar a
realidade, intervir no mundo e explicar-se a si mesma.
Numa passagem célebre de uma de
suas obras, Marx dizia que o mito de Zeus (portador de raios, trovões e
tempestades) não mais poderia funcionar numa sociedade que inventou o
pára-raios, isto é, descobriu cientificamente a eletricidade. Mas o próprio
Marx mostrou como tal sociedade cria novos mitos, adaptados à era da máquina e
da tecnologia.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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