Como funciona o pensamento conceitual
O pensamento conceitual ou
lógico opera de maneira diferente e mesmo oposta à do pensamento mítico. A
primeira e fundamental diferença está no fato de que enquanto o pensamento
mítico opera por bricolage (associação dos fragmentos heterogêneos), o
pensamento conceitual opera por método (procedimento lógico para a articulação
racional entre elementos homogêneos). Dessa diferença resultam outras:
● um conceito ou uma ideia não é
uma imagem nem um símbolo, mas uma descrição e uma explicação da essência ou
natureza própria de um ser, referindo-se a esse ser e somente a ele;
● um conceito ou uma ideia não
são substitutos para as coisas, mas a compreensão intelectual delas;
● um conceito ou uma ideia não
são formas de participação ou de relação de nosso espírito em outra realidade,
mas são resultado de uma análise ou de uma síntese dos dados da realidade ou do
próprio pensamento;
● um juízo e um raciocínio não
permanecem no nível da experiência, nem organizam a experiência nela mesma,
mas, partindo dela, a sistematizam em relações racionais que a tornam
compreensível do ponto de vista lógico;
● um juízo e um raciocínio
buscam as causas universais e necessárias pelas quais uma realidade é tal como
é, distinguindo o modo como ela nos aparece do modo como é em si mesma; as
causas e os efeitos são homogêneos, isto é, são de mesma natureza;
● um juízo e um raciocínio
estudam e investigam a diferença entre nossas vivências subjetivas, pessoais e
coletivas, e os conhecimentos gerais e objetivos, que são de todos e de ninguém
em particular. Estabelecem a diferença entre vivências subjetivas e a estrutura
objetiva do pensamento em geral;
● o pensamento lógico submete
seus procedimentos a métodos, isto é, a regras de verificação e de
generalização dos conhecimentos adquiridos; a regras de ordenamento e
sistematização dos procedimentos e dos resultados, de modo que um conhecimento
novo não pode simplesmente acrescentar-se aos anteriores (como no bricolage),
mas só se junta a eles se obedecer a certas regras e princípios intelectuais.
Assim, por exemplo, a teoria física elaborada por Aristóteles não pode ser
acrescida pela de Galileu, pois são contrárias; do mesmo modo, a física de
Galileu e de Newton não podem ser acrescentadas à teoria da relatividade, mas
podem apenas ser consideradas um caso especial da física, quando os objetos são
macroscópicos e quando a separação entre o observador e o observado são
possíveis.
O pensamento lógico ou racional
(ou o pensamento objetivo) opera de acordo com os princípios de identidade,
contradição, terceiro excluído, razão suficiente e causalidade; distingue
verdades de fato e verdades de razão; diferencia intuição, dedução, indução e
abdução; distingue análise e síntese; diferencia reflexão e verificação, teoria
e prática, ciência e técnica.
Se compararmos a explicação
cosmogônica e a cosmológica da realidade, tais como foram elaboradas na Grécia,
perceberemos melhor a diferença entre as duas modalidades de pensamento.
O pensamento cosmogônico
narrava a origem da Natureza através de genealogias divinas: as forças e os
seres naturais estavam personalizados e simbolizados pelos deuses, titãs e
heróis, cujas relações sexuais davam origem às coisas, aos homens, às estações
do ano, ao dia e à noite, às colheitas, à sociedade. Suas paixões não
correspondidas se exprimiam por raios, trovões, tempestades, tufões, desertos.
Seus amores e desejos realizados manifestavam-se na abundância da primavera,
das colheitas, da procriação dos animais.
O pensamento cosmológico
explicava a origem da Natureza pela existência de um ou alguns elementos
naturais (terra-seco, água-úmido, ar-frio, fogo-quente), que, por sua força
interna natural, se transformavam, dando origem a todas as coisas e aos homens.
Os primeiros filósofos consideravam os elementos originários como forças
divinas, mas já não eram personalizadas, nem sua ação explicada por desejos,
paixões e furores.
Aristóteles sistematizou lógica
e racionalmente as cosmologias ou teorias sobre a Natureza numa física, isto é,
numa teoria ou ciência sobre a matéria e a forma dos seres naturais e sobre as
causas de seus movimentos.
Para os gregos, como vimos,
movimento (kinesis) significa:
● toda mudança qualitativa de um
ser qualquer (por exemplo, uma semente que se torna árvore, um objeto branco
que amarelece, um animal que adoece, algo quente que esfria, algo frio que
esquenta, o duro que amolece, o mole que endurece, etc.);
● toda mudança ou alteração
quantitativa (por exemplo, um corpo que aumente e diminua, que se divida em
outros menores, que encompride ou encurte, alargue ou estreite, etc.);
● toda mudança de lugar ou
locomoção (subir, descer, cair, a trajetória de uma flecha, o deslocamento de
um barco, a queda de uma pedra, o levitar de uma pluma, etc.);
● toda geração ou nascimento e
toda corrupção ou morte dos seres.
Esses movimentos, diz
Aristóteles, possuem causas, pois tudo o que existe possui causa, e o
conhecimento verdadeiro é o conhecimento das causas. São quatro as causas dos
movimentos:
1. causa material, isto é, a
matéria de que alguma coisa é feita (madeira, pedra, metal, líquido);
2. causa formal, isto é, a forma
que alguma coisa possui e que a individualiza e a diferencia das outras (a mesa
é causa formal da madeira, a estátua é causa formal da pedra, a taça é causa
formal do metal, o vinho é causa formal do líquido);
3. causa motriz ou eficiente,
isto é, aquilo que faz uma matéria receber uma forma determinada (no caso dos
objetos artificiais ou artefatos, a causa eficiente é o artesão – o carpinteiro
que faz a mesa, o escultor que faz a estátua, o ferreiro que faz a taça, o
vinicultor que faz o vinho; no caso dos seres naturais, a causa eficiente
também é uma coisa natural – por exemplo, o calor derrete o metal, o Sol
esquenta um corpo e lhe dá outra consistência ou forma, etc.);
4. causa final, isto é, o motivo
ou finalidade para a qual a coisa existe, se transforma e se realiza (a mesa
existe para que possamos usá-la para refeições, escrever, depositar objetos,
etc.; a estátua, para o culto de um deus; a taça, para colocarmos bebidas; o
vinho, para bebermos).
Com a física aristotélica vemos
a Natureza tornar-se inteligível ao pensamento, que pode explicá-la, descrevê-la,
compreendê-la e interpretá-la conceitualmente.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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