A grande crise da metafísica: David Hume
O lugar ocupado pela teoria do
conhecimento como condição da metafísica, isto é, a antecedência da pergunta “O
que e como podemos conhecer?” diante da pergunta antiga “O que é a realidade?”,
forçou a Filosofia a pagar um alto preço. Esse preço foi a crise da metafísica.
Se a realidade investigada pela
metafísica é aquela que pode e deve ser racionalmente estabelecida pelas idéias
verdadeiras produzidas pelo pensamento ou pela razão humana, que acontecerá se
se provar que tais idéias são hábitos mentais do sujeito do conhecimento e não
correspondem a realidade alguma?
A metafísica antiga e medieval
baseava-se na afirmação de que a realidade ou o Ser existe em si mesmo e que
ele se oferece tal como é ao pensamento.
A metafísica clássica ou moderna
baseava-se na afirmação de que o intelecto humano ou o pensamento possui o
poder para conhecer a realidade tal como é em si mesma e que, graças às
operações intelectuais ou aos conceitos que representam as coisas e as
transformam em objetos de conhecimento, o sujeito do conhecimento tem acesso ao
Ser.
Tanto num caso como noutro, a
metafísica baseava-se em dois pressupostos: 1. a realidade em si existe e pode
ser conhecida; 2. idéias ou conceitos são um conhecimento verdadeiro da
realidade, porque a verdade é a correspondência entre as coisas e os
pensamentos, ou entre o intelecto e a realidade.
Esses dois pressupostos assentavam-se
num único fundamento: a existência de um Ser Infinito (Deus) que garantia a
realidade e a inteligibilidade de todas as coisas, dotando os humanos de um
intelecto capaz de conhecê-las tais como são em si mesmas.
David Hume dirá que os dois
pressupostos da metafísica não têm fundamento, não possuem validade alguma.
A metafísica – antiga, medieval
e clássica ou moderna – era sustentada por três princípios: identidade,
não-contradição e razão suficiente ou causalidade. Os dois primeiros serviam de
garantia para a ideia de substância ou essência; o terceiro servia de garantia
para explicar a origem e a finalidade das coisas, bem como as relações entre os
seres.
Hume, partindo da teoria do
conhecimento, mostrou que o sujeito do conhecimento opera associando sensações,
percepções e impressões recebidas pelos órgãos dos sentidos e retidas na
memória. As idéias nada mais são do que hábitos mentais de associação de
impressões semelhantes ou de impressões sucessivas.
Que é a ideia de substância ou
de essência? Nada mais do que um nome geral dado para indicar um conjunto de
imagens e de ideias que nossa consciência tem o hábito de associar por causa
das semelhanças entre elas. O princípio da identidade e o da não-contradição
são simplesmente o resultado de percebermos repetida e regularmente certas
coisas semelhantes e sempre da mesma maneira, levando-nos a supor que, porque
as percebemos como semelhantes e sempre da mesma maneira, isso lhes daria uma
identidade própria, independente de nós.
Que é a ideia de causalidade? O
mero hábito que nossa mente adquire de estabelecer relações de causa e efeito
entre percepções e impressões sucessivas, chamando as anteriores de causas e as
posteriores de efeitos. A repetição constante e regular de imagens ou
impressões sucessivas nos leva à crença de que há uma causalidade real,
externa, própria das coisas e independente de nós.
Substância, essência, causa,
efeito, matéria, forma e todos os outros conceitos da metafísica (Deus, mundo,
alma, infinito, finito, etc.) não correspondem a seres, a entidades reais e
externas, independentes do sujeito do conhecimento, mas são nomes gerais com
que o sujeito nomeia e indica seus próprios hábitos associativos. Eis porque a
metafísica foi sempre alimentada por controvérsias infindáveis, pois não se
referia a nenhuma realidade externa existente em si e por si, mas a hábitos
mentais dos sujeitos, hábitos que são muito variáveis e dão origem a inúmeras
doutrinas filosóficas sem qualquer fundamento real.
A partir de Hume, a metafísica,
tal como existira desde o século IV a.C., tornava-se impossível.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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