A metafísica clássica ou moderna
A partir do final do século XVI
e, com maior intensidade, no início do século XVII, o pensamento ocidental
começa a sofrer uma mudança considerável, que irá manifestar-se na metafísica.
Os filósofos clássicos (século
XVII) julgavam-se modernos por terem rompido com a tradição do pensamento
platônico, aristotélico e neoplatônico e, por conseguinte, por não mais
aceitarem a tradição que havia sido elaborada pelos medievais. Um dos exemplos
mais conhecidos da modernidade é a recusa do geocentrismo e a adoção do
heliocentrismo, em astronomia. Um outro exemplo é a nova física ou mecânica,
elaborada por Galileu contra a herança aristotélica.
Podemos, de modo resumido,
apontar os seguintes traços característicos da nova metafísica:
● afirmação da incompatibilidade
entre fé e razão, acarretando a separação de ambas, de sorte que a religião e a
Filosofia possam seguir caminhos próprios, mesmo que a segunda não esteja
publicamente autorizada a expor idéias que contradigam as verdades ou dogmas da
fé (a Inquisição e o Santo Ofício, criados pela Igreja Católica para controlar
os pensamentos dos cristãos, eram atuantes e não foram poucos os pensadores
submetidos a tais tribunais, como foi o caso de Galileu);
● redefinição do conceito de ser
ou substância. Em lugar de considerar que existem inumeráveis tipos de seres ou
substâncias, afirma-se que existem três e apenas três seres ou substâncias: a
substância infinita (Deus), a substância pensante (alma) e a substância extensa
(corpo). Uma substância é definida pelo seu atributo principal: a substância
infinita é definida por sua infinitude; a pensante, pelo intelecto e pela
vontade; a extensa, pelo movimento e pelo repouso, que determinam a massa, a
figura e o volume (isto é, por atributos geométricos e físicos).
Os entes individuais concretos
se distribuem como substâncias pensantes ou extensas e o homem é uma substância
mista. À substância infinita corresponde um único ente, Deus. Não há seres ou
substâncias ou essências universais, mas somente individuais. Nota-se,
portanto, uma imensa simplificação do campo de investigação da metafísica,
graças à redefinição da substância.
Substância é o ser que existe em
si e por si mesmo, que subsiste em si e por si mesmo. Uma substância não se
define pelo conjunto de atributos essenciais e acidentais que possui, mas pelo
seu modo de existir. A essência da substância é a existência em si e por si, a
auto-suficiência. Há, portanto, três e apenas três substâncias: a que existe
absolutamente em si e por si, isto é, o infinito ou Deus; a que existe em si,
mas para existir teve que ser criada pelo infinito, isto é, a criada ou finita,
que existe sob duas formas: como pensamento (ou alma) e como espaço ou
figura-volume-massa (ou corpo).
Os seres individuais nada mais
são do que manifestações diversificadas das duas substâncias criadas finitas.
Mesmo que os consideremos substâncias, eles os são simplesmente por serem
realizações particulares das substâncias pensante e extensa;
● redefinição do conceito de
causa ou causalidade. Causa é aquilo que produz um efeito. O efeito pode ser
produzido por uma ação anterior ou por uma finalidade posterior. Por exemplo, o
fogo realiza uma ação anterior, cujo efeito é o aquecimento e a dilatação de um
outro corpo; uma pessoa pode escolher entre fazer ou não fazer alguma coisa,
tendo em vista a finalidade que pretende alcançar, de sorte que o fim ou o
objetivo é algo posterior à ação e causa da decisão tomada.
Causa eficiente é aquela na qual
uma ação anterior determina como conseqüência necessária a produção de um
efeito. Causa final é aquela que determina, para os seres pensantes, a
realização ou não-realização de uma ação. Há duas e somente duas modalidades de
causas – a eficiente e a final – e a causa final só atua na substância
pensante, referindo-se às ações de um sujeito. Não há causa final para os
corpos ou para a substância extensa, mas apenas causa eficiente. Desaparecendo
as noções de causa material e causa formal, desaparecem as de potência e ato,
matéria e forma como explicações da pluralidade dos seres e de suas
transformações;
● a metafísica não se divide em
teologia, psicologia racional e cosmologia racional. A teologia é um
conhecimento diferente da metafísica, embora, como esta, estude a substância
infinita; a psicologia racional é um conhecimento diferente da metafísica, embora,
como esta, estude a substância pensante; a cosmologia é diferente da
metafísica, embora, como esta, estude a substância extensa.
Que estuda a metafísica? A
essência do infinito, a essência do pensamento e a essência da extensão. Como
as estuda a metafísica? Como conceitos ou idéias rigorosamente racionais.
A substância infinita é a ideia
racional de um fundamento ou princípio absoluto que produz a essência e a
existência de tudo o que existe. A substância pensante é a ideia racional de
uma faculdade intelectual e volitiva que produz pensamentos e ações segundo
normas, regras e métodos estabelecidos por ela mesma enquanto poder de
conhecimento – é a consciência como faculdade de reflexão e de representação da
realidade por meio de idéias verdadeiras. A substância extensa é a ideia
racional de uma realidade físico-geométrica que produz os corpos como figuras e
formas dotadas de massa, volume e movimento – é a Natureza como sistema de leis
necessárias definidas pela mecânica e pela matemática;
● o ponto de partida da
metafísica é a teoria do conhecimento, isto é, a investigação sobre a
capacidade humana para conhecer a verdade, de modo que uma coisa ou um ente só
é considerado real se a razão humana puder conhecê-lo, isto é, se puder ser
objeto de uma ideia verdadeira estabelecida rigorosa e metodicamente pelo
intelecto humano. Assim, a metafísica não começa com a pergunta: “O que é
realidade?”, mas com a questão: “Podemos conhecer a realidade?”.
Três idéias e apenas três operam
na metafísica: a ideia da substância infinita como causa eficiente da Natureza
e do homem; a ideia da substância pensante como causa eficiente dos
pensamentos, dos conceitos e das ações humanas; a ideia da substância extensa
ou Natureza como causa eficiente que, pelas relações de movimento e repouso,
produz todos os corpos. A substância infinita ou Deus é a causa da existência e
da essência das substâncias pensante e extensa; e é causa das relações entre
ambas, no caso do homem (já que este é uma substância mista).
Deus, homem e Natureza são os
objetos da metafísica. Infinito, finito, causa eficiente e causa final são os
primeiros princípios de que se ocupa a metafísica. Idéias verdadeiras
produzidas pelo intelecto humano, com as quais o sujeito do conhecimento
representa e conhece a realidade, são os fundamentos da metafísica como ciência
verdadeira ou como Primeira Filosofia.
Se tomarmos a história da
metafísica, veremos que seu campo de investigação foi, gradualmente,
comportando novos temas e objetos de estudo, que exprimem as exigências do
pensamento de cada época. Resumidamente, os temas e objetos da metafísica podem
ser assim apresentados:
● O Ser como substância e como
essência;
● diferença entre essência e
acidente;
● origem e estrutura do mundo ou
da realidade;
● o infinito e o finito
(diferenças e relações);
● o espírito e a matéria
(diferenças e relações);
● o espaço e o tempo (diferenças
e relações);
● a vida e a morte;
● a alma e o corpo (diferenças e
relações);
● a essência da mente humana;
● a consciência e o mundo
(diferenças e relações);
● essência e existência
(diferenças e relações);
● a destinação do homem;
● Deus, a Natureza e o homem
(diferenças e relações).
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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