"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

A metafísica cristã


Embora a metafísica cristã seja uma reelaboração da metafísica grega, muitas das idéias gregas não poderiam ser aceitas pelo cristianismo. Vejamos alguns exemplos:
● para os gregos, o mundo (sensível e inteligível) é eterno; para os cristãos, o mundo foi criado por Deus a partir do nada e terminará no dia do Juízo Final.
● para os gregos, a divindade é uma força cósmica racional impessoal; para os cristãos, Deus é pessoal, é a unidade de três pessoas e por isso é dotado de intelecto e de vontade, como o homem, embora superior a este, porque o intelecto divino é onisciente (sabe tudo desde toda a eternidade) e a vontade divina é onipotente (pode tudo desde toda a eternidade); 

● para os gregos, o homem é um ser natural, dotado de corpo e alma, esta possuindo uma parte superior e imortal que é o intelecto ou razão; para os cristãos, o homem é um ser misto, natural por seu corpo, mas sobrenatural por sua alma imortal;
● para os gregos, a liberdade humana é uma forma de ação, isto é, a capacidade da razão para orientar e governar a vontade, a fim de que esta escolha o que é bom, justo e virtuoso; para os cristãos, o homem é livre porque sua vontade é uma capacidade para escolher tanto o bem quanto o mal, sendo mais poderosa do que a razão e, pelo pecado, destinada à perversidade e ao vício, de modo que a ação moral só será boa, justa e virtuosa se for guiada pela fé e pela Revelação;
● para os gregos, o conhecimento é uma atividade do intelecto (o êxtase místico de que falavam os neoplatônicos não era algo misterioso ou irracional, mas a forma mais alta da intuição intelectual); para os cristãos, a razão humana é limitada e imperfeita, incapaz de, por si mesma e sozinha, alcançar a verdade, precisando ser socorrida e corrigida pela fé e pela Revelação.
Essas diferenças – e muitas outras que não foram mencionadas aqui – acarretaram muitas mudanças na metafísica herdada dos gregos. O problema principal para os cristãos foi o de encontrar um meio para reunir as verdades da razão (Filosofia) e as verdades da fé (religião), isto é, para reunir novamente aquilo que, ao nascer, a Filosofia havia separado, pois separara razão e mito. De modo bastante resumido, podemos dizer que os aspectos que passaram a constituir o centro da nova metafísica foram os seguintes:
● provar a existência de Deus e os atributos ou predicados de sua essência. Para a metafísica grega, a divindade era uma força imaterial, racional e impessoal conhecida por nossa razão. Para a metafísica cristã, Deus é uma pessoa trina ou uma pessoa misteriosa, que se revela ao espírito dos que possuem fé. Como conciliar a concepção racionalista dos gregos e a concepção religiosa dos cristãos? Provando racionalmente que Deus existe, mesmo que a causa de sua existência seja um mistério da fé. E provando racionalmente que ele possui, por essência, os seguintes predicados: eternidade, infinitude, onisciência, onipotência, bondade, justiça e misericórdia, mesmo que tais atributos sejam um mistério da fé;
● provar que o mundo existe e não é eterno, mas foi criado do nada por Deus e retornará ao nada, no dia do Juízo Final; provar que o mundo resulta da vontade divina e é governado pela Providência divina, a qual age tanto por meios naturais (as leis da Natureza), quanto por meios sobrenaturais (os milagres). Por que era necessária essa prova? Porque, do ponto de vista da razão, Deus, sendo perfeito, completo, pleno e eterno, não carecia de nada, não precisava de nada e, portanto, não tinha por que nem para que criar o mundo;
● provar que, embora Deus seja imaterial e infinito, são ação pode ter efeitos materiais e finitos, como o mundo e o homem; portanto, provar que Deus é causa eficiente de todas as coisas e que uma causa imaterial e infinita pode produzir um efeito material e finito, mesmo que isso seja um mistério da fé que a razão é obrigada a aceitar.
De fato, a Filosofia grega, em nome dos princípios da identidade e da não-contradição, sempre demonstrou que uma causa precisa ser de mesma natureza que seu efeito e, por esse motivo, as Idéias (em Platão) e o Primeiro Motor Imóvel (em Aristóteles) eram causas finais e jamais causas materiais, formais ou eficientes. Por quê? Porque uma causa final age à distância, sem se identificar com aquilo que a deseja, a procura. Ao contrário, as outras três causas agem diretamente sobre as coisas semelhantes a elas, de mesma natureza que elas. Uma planta causa outra planta, um animal causa outro animal semelhante, um humano causa o nascimento de outro ser humano, e assim por diante.
Ora, a criação do mundo por Deus seria, para a metafísica grega, uma irracionalidade e uma contradição, pois se trata de um ser infinito e imaterial, cuja ação produz um efeito oposto à natureza da causa, isto é, finito e material. Um mistério da fé, dirão os metafísicos cristãos.
● provar que a alma humana existe e que é imortal, estando destinada à salvação ou à condenação eternas, segundo a vontade da Providência divina;
● provar que não há contradição entre a liberdade humana e a onisciência-onipotência de Deus. A contradição existe para a razão, mas não existe para a fé.
Qual seria a contradição racional entre a liberdade humana para fazer o bem ou o mal, e a onisciência-onipotência divina? A contradição estaria no fato de que, se Deus fez cada um dos homens e, desde a eternidade, sabe o que cada um deles escolherá, então o homem não é livre, mas já foi predeterminado pela vontade de Deus. Para a fé não há contradição alguma nisso, embora haja mistério.
● provar que as idéias (platônicas), ou as emanações (neoplatônicas), ou os gêneros e espécies (aristotélicos) existem, são substâncias reais, criadas pelo intelecto e pela vontade de Deus e existem na mente divina. Em outras palavras, idéias, emanações, gêneros e espécies são substâncias universais e os universais existem tanto quanto os indivíduos;
● provar que o Ser se diz ou deve ser entendido de modo diferente conforme se refira a Deus ou às criaturas. Para os gregos, no entanto, o Ser existia de diferentes maneiras, mas possuía um único sentido no que se refere à realidade e à essência de todos os entes. Essa idéia, para os cristãos, não poderá ser mantida.
Platão, por exemplo, afirmou que o Ser só podia estar referido às idéias do mundo inteligível, pois as coisas sensíveis eram o Não-Ser, cópia, imagem, sombra do verdadeiro Ser. Já Aristóteles considerou o Ser como real para as coisas naturais ou sensíveis, para o Primeiro Motor Imóvel, para os seres matemáticos, pois a diferença entre eles referia-se apenas ao fato de poderem estar ou não submetidos à mudança ou ao devir.
No caso do cristianismo, porém, não era possível manter a diferença platônica entre o Ser e o Não-Ser, pois este mundo e tudo o que nele existe é obra de Deus, é criatura de Deus e não mera aparência. Mas também não era possível manter a idéia aristotélica de que a diferença entre os seres estaria apenas na presença ou ausência do devir ou da mudança, pois para os cristãos o ser de Deus é de natureza diferente do ser das coisas, uma vez que ele é criador e elas são criaturas, e não há nada em comum entre eles. O resultado da necessidade de afirmar que o Ser não possui o mesmo sentido, quando aplicado a Deus e às criaturas, foi a divisão da metafísica em três tipos de conhecimento:
1. a teologia, que se refere ao Ser como ser divino ou Deus;
2. a psicologia racional, que se refere ao Ser como essência da alma humana;
3. a cosmologia racional, que se refere ao Ser como essência das coisas naturais ou do mundo.
● finalmente, e como conseqüência de todas essas concepções, provar que fé e razão, revelação e conhecimento intelectual são não incompatíveis nem contraditórios e, quando o forem, a fé ou revelação deve ser considerada superior à razão e ao intelecto, que devem submeter-se a ela.
Evidentemente, os pensadores cristãos nunca se puseram de acordo sobre todos esses aspectos, e uma das marcas características da metafísica cristã foi a controvérsia.
Para alguns, por exemplo, os chamados “universais” (idéias, emanações, gêneros, espécies) eram nomes gerais criados por nossa razão e não seres, substâncias ou essências reais. Para outros, o Ser deveria ser afirmado com o mesmo sentido para Deus e para as criaturas, a diferença entre eles sendo de grau e não de natureza. Para muitos, fé e razão eram incompatíveis e deveriam ser inteiramente separadas, cada qual com seu campo próprio de conhecimento, sem que uma devesse submeter-se à outra. E assim por diante.
Independentemente das controvérsias, divergências e diferenças entre os pensadores, o cristianismo legou para a metafísica a separação entre teologia (Deus), psicologia racional (alma) e cosmologia racional (mundo), bem como a identificação de três conceitos: ser, essência e substância, que se tornaram sinônimos.
Como conseqüência da identificação entre ser, essência e substância, de um lado, e, de outro a afirmação de que existem essências ou substâncias universais tanto quanto individuais, a metafísica passou a ter um número ilimitado de seres para investigar: as substâncias universais como água, ar, terra, fogo, homem, anjo, animal, vegetal, o bem, o verdadeiro, o justo, o belo, o pesado, o leve; as substâncias individuais ou os seres particulares; as substâncias celestes, as terrestres, as aquáticas, as matemáticas, as orgânicas, as inorgânicas, etc. Cada uma delas era investigada segundo os três princípios (identidade, contradição, terceiro excluído), as quatro causas (material, formal, eficiente, final), o ato e a potência, a matéria e a forma, as categorias (qualidade, quantidade, ação, paixão, relação, tempo, lugar, etc.), o simples e o composto, etc.


Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed. Ática, 2000.

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