As tradições metafísicas encontradas pelo cristianismo
Evidentemente, as duas grandes
tradições metafísicas incorporadas pelo cristianismo foram o platonismo e o
aristotelismo. No entanto, como as obras de Platão e Aristóteles haviam ficado
perdidas durante vários séculos, antes de incorporá-las o cristianismo tomou
contato com três outras tradições metafísicas, que formaram, assim, o conteúdo
das primeiras elaborações metafísicas cristãs: o neoplatonismo, o estoicismo e
o gnosticismo.
O neoplatonismo, como o nome
indica, foi uma retomada da filosofia de Platão, mas com um conteúdo
espiritualista e místico. Os neoplatônicos afirmavam a existência de três
realidades distintas por essência: o mundo sensível da matéria ou dos corpos, o
mundo inteligível das puras formas imateriais, e, acima desses dois mundos, uma
realidade suprema, separada de todo o resto, inalcançável pelo intelecto
humano, luz pura e esplendor imaterial, o Uno ou o Bem. Por ser uma luz, o Uno
se irradia; suas irradiações (que os neoplatônicos chamavam de emanações)
formaram o mundo inteligível, onde estão o Ser, a Inteligência e a Alma do
Mundo.
Dessas primeiras emanações
perfeitas, seguiram outras, mais afastadas do Uno e, por isso, imperfeitas: o
mundo sensível da matéria, imagem decaída ou cópia imperfeita do mundo
inteligível. Por seu intelecto, o homem participa do mundo inteligível.
Purificando-se da matéria de seu corpo, desenvolvendo seu intelecto, o homem
pode subir além do pensamento e ter o êxtase místico, pelo qual se funde com a
luz do Uno e retorna ao seio da realidade suprema ou do Bem.
O estoicismo, embora muito
diferente do neoplatonismo – pois negava a existência de realidades separadas e
superiores ao mundo sensível -, também influenciou o pensamento cristão. Os
estóicos afirmavam a existência de uma Razão Universal ou Inteligência
Universal, que produz e governa toda a realidade, de acordo com um plano
racional necessário, a que davam o nome de Providência. O homem, embora
impulsionado por instintos como os animais, participa da Razão Universal porque
possui razão e vontade.
A participação na racionalidade
universal não se dá pelo simples conhecimento intelectual, mas pela ação moral,
isto é, pela renúncia a todos os instintos, pelo domínio voluntário racional de
todos os desejos e pela aceitação da Providência. A Razão Universal é a
Natureza; a Providência é o conjunto das leis necessárias que regem a Natureza;
a ação racional humana (própria do sábio) é a vida em conformidade com a
Natureza e com a Providência.
O gnosticismo era um dualismo
metafísico, isto é, afirmava a existência de dois princípios supremos de onde
provinha toda a realidade: o Bem, ou a luz imaterial, e o Mal, ou a treva
material. Para os gnósticos, o mundo natural ou o mundo sensível é o resultado
da vitória do Mal sobre o Bem e por isso afirmavam que a salvação estava em
libertar-se da matéria (do corpo), através do conhecimento intelectual e do êxtase
místico. Gnosticismo vem da palavra grega gnosis, que significa:
conhecimento. Para os gnósticos, o conhecimento intelectual pode, por si mesmo,
alcançar a verdade plena e total do Bem e afastar os poderes materiais do Mal.
Que fez o cristianismo nascente?
Adaptou à nova fé várias
concepções da metafísica neoplatônica, disso resultando os seguintes pontos
doutrinários:
● separação entre
material-corporal e espiritual-incorporal;
● separação entre Deus-Uno e o
mundo material;
● transformação da primeira
emanação neoplatônica (Ser, Inteligência, Alma do Mundo) na idéia da Trindade
divina, pela afirmação de que o Deus-Uno se manifesta em três emanações
idênticas a ele próprio: o Ser, que é o Pai; a Inteligência, que é o Espírito
Santo; a Alma do Mundo, que é o Filho;
● afirmação de que há uma
segunda emanação, isto é, aquela que vem da luz da Trindade e que forma o mundo
inteligível das puras formas ou inteligências imateriais perfeitas, que são os
anjos (arcanjos, querubins, serafins, etc.);
● modificação da ideia
neoplatônica quanto ao mundo sensível pela afirmação de que o mundo sensível ou
material não é uma emanação de Deus, mas uma criação: Deus fez o mundo
do nada, como diz a Bíblia, no livro da Gênese;
● admissão de que a alma humana
participa da divindade, mas não diretamente, e sim pela mediação do Filho e do
Espírito Santo, e que o conhecimento intelectual não é suficiente para levar ao
êxtase místico e ao contato com Deus, sendo necessária a graça santificante,
que o crente recebe por um mistério divino.
Do estoicismo, o cristianismo
manteve duas idéias:
● a de que existe uma
Providência divina racional, que governa todas as coisas e o homem;
● a de que a perfeição humana
depende de abandonar todos os apetites, impulsos e desejos corporais ou
carnais, entregando-se à Providência. Essa entrega, porém, não é, como pensavam
os estoicos, uma ação deliberada de nossa vontade guiada pela razão, mas exige
como condição a fé em Cristo e a graça santificante.
O gnosticismo será considerado
uma heresia e, por isso, rejeitado. No entanto, o cristianismo conservará do
gnosticismo duas idéias:
● que o Mal existe realmente: é
o demônio;
● que a matéria ou a carne é o
centro onde o demônio, isto é, o Mal, age sobre o mundo e sobre o homem.
Alguns séculos mais tarde, o
cristianismo tomou conhecimento de algumas das obras de Platão e de algumas das
obras de Aristóteles que haviam sido conservadas e traduzidas por filósofos
árabes, como Averróis, Avicena e Alfarabi e comentadas por filósofos judeus
como Filon de Alexandria e Maimônides. Reunindo essas obras e as elaborações
precedentes, baseadas nas três tradições mencionadas, o cristianismo
reorganizou a metafísica grega, adaptando-a às necessidades da religião cristã.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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